A pergunta é: o processo de desdemocratização culminará ou não em uma ruptura institucional explícita? Entrevista especial com Adriano de Freixo

A democracia brasileira vem sofrendo um “gradual processo de desdemocratização”, sendo erodida por dentro, “com a complacência ou a conivência das instituições”, diz o historiador

Presidente Jair Bolsonaro em ato com apoiadores no Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, na zona Sul do Rio | Foto: Fernando Frazão - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 14 Julho 2021

 

No terceiro ano do governo de Jair Bolsonaro não são mais as declarações do presidente que causam surpresa, estranhamento ou preocupação. A questão fundamental na atual conjuntura, segundo Adriano de Freixo, é outra: “saber se esse processo de desdemocratização culminará ou não em uma ruptura institucional explícita, como defendem os setores mais radicalizados do bolsonarismo. E a resposta é sim: há sempre esse risco”, afirma. “Nas últimas semanas, o tom dessas ameaças tem se elevado devido ao avanço dos trabalhos da CPI da Covid-19, cujas investigações chegam cada vez mais próximas do círculo palaciano, e dos resultados negativos das últimas pesquisas realizadas por diferentes institutos, que mostram um rápido derretimento da popularidade de Jair Bolsonaro”, exemplifica.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Freixo comenta o processo de instrumentalização das polícias pelo bolsonarismo e a adesão e as divergências do setor em relação ao governo. “Embora esse não seja um processo linear, há uma ‘bolsonarização’ em curso nas polícias estaduais. Esse fenômeno ficou bem explícito em paralisações recentes de policiais em vários estados, sendo o caso do Ceará o mais emblemático”, assegura.

 

Segundo ele, o “discurso punitivista” e de “eliminação do outro” encontra eco na sociedade brasileira por conta de dois fenômenos que estão “intimamente articulados”. “Por um lado, os problemas de segurança pública constituem-se numa preocupação central da sociedade brasileira, não só das camadas médias e dos setores mais abastados, mas principalmente das populações mais vulneráveis que são obrigadas a viver e trabalhar em territórios controlados por facções e milícias criminosas, além de conviver cotidianamente com a truculência policial, no que sempre foi um ‘estado de exceção permanente’, que nas periferias do mundo é a regra”, explica. Por outro, observa, “não se pode ignorar que, historicamente, a direita tem conseguido certo monopólio no discurso e na agenda da segurança pública – e isto é um dos calcanhares de Aquiles dos setores progressistas –, demonizando os direitos humanos e colocando em seus defensores a pecha de ‘defensores de bandidos’. Essa retórica fácil vai ao encontro de uma sociedade profundamente desigual, estruturalmente violenta, com longa tradição autoritária e com a construção amigo/inimigo fortemente enraizada em seu imaginário”.

 

Adriano de Freixo (Foto: Divulgação)

Adriano de Freixo é graduado em História, especialista em História das Relações Internacionais e mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense - INEST-UFF, onde coordena o Laboratório de Estudos sobre a Política Externa Brasileira - LEPEB, atuando também nos Programas de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos - PPGEST e Ciência Política - PPGCP. É autor de "Os militares e o governo Jair Bolsonaro: entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo" (Zazie Edições, 2020) e organizador, com Rosana Pinheiro-Machado, de "Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova Direita e Desdemocratização" (Oficina Raquel, 2019)".

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Quando e como iniciou o que o senhor chama de “bolsonarização das polícias”?

Adriano de Freixo - As relações de Bolsonaro e seu círculo mais próximo com as forças de segurança antecedem bastante a sua chegada à presidência. Se a base eleitoral original do ex-capitão vinculava-se mais aos praças e oficiais subalternos das Forças Armadas (como “porta-voz” de suas demandas corporativas), com o tempo ela foi se ampliando e abarcando também segmentos das chamadas forças auxiliares – Policiais e Bombeiros Militares – e das polícias civis, concomitantemente ao crescente peso da pauta da Segurança Pública junto à opinião pública. Após sua ascensão à presidência, Bolsonaro tem procurado estreitar ainda mais esses laços não só procurando atender – no que tange à esfera do governo federal – a reivindicações corporativas das forças de segurança – como a defesa da ampliação do “excludente de ilicitude” para agentes de segurança ou o apoio à reforma das polícias estaduais, em discussão no Congresso, por exemplo –, mas também se tornando presença constante em formaturas de policiais (de diferentes corporações: PM, PF, PRF) nos diversos estados da federação.

Por outro lado, não se pode ignorar uma forte cultura autoritária presente nas corporações policiais, mesmo após mais de três décadas de governos democráticos. O fato de, desde a década de 1930, as polícias militares estaduais aparecerem nos textos constitucionais brasileiros como forças auxiliares e reservas do Exército ajudou, historicamente, a fortalecer essa cultura. Basta olharmos para a atuação dessas forças de segurança durante os anos da ditadura. Portanto, do ponto de vista ideológico, também há uma identificação de parte expressiva dos agentes policiais – não se pode generalizar, deixemos claro – com a visão de mundo expressa pelo bolsonarismo.

 

 

IHU - De que modo as forças de segurança e as policiais poderiam contribuir para o projeto político do presidente? Que papel elas desempenhariam nesse projeto?

Adriano de Freixo - O presidente da República e o seu círculo de colaboradores mais próximos – civis e militares – têm, recorrentemente, insinuado a possibilidade de uma ruptura institucional, notadamente em momentos em que o presidente encontra-se sob pressão. Nas últimas semanas, o tom dessas ameaças tem se elevado devido ao avanço dos trabalhos da CPI da Covid-19, cujas investigações chegam cada vez mais próximas do círculo palaciano, e dos resultados negativos das últimas pesquisas realizadas por diferentes institutos, que mostram um rápido derretimento da popularidade de Jair Bolsonaro. As ofensas pessoais do presidente a integrantes da CPI e ao ministro do Supremo Tribunal Federal - STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral - TSE, Luís Roberto Barroso; os constantes ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral brasileiro, com direito à ameaça explícita de que se não houver “eleições limpas” (com voto impresso, como defende), não haverá eleições; a nota, vários tons acima e com ameaças veladas, do ministro da Defesa e dos comandantes militares contra declarações absolutamente normais e nada generalizantes do presidente da CPI sobre a participação de alguns militares em esquemas de corrupção; ou a entrevista do comandante da Aeronáutica ao jornal “O Globo”, reiterando tais ameaças, são exemplos disto.

Neste sentido, a bolsonarização das polícias estaduais é um processo extremamente preocupante, visto que em caso de uma tentativa de ruptura os setores mais extremistas dessas corporações poderiam vir a servir de “braço armado” das forças antidemocráticas. A invasão do Capitólio, nos EUA, no início deste ano, em que há fortes indícios da participação de policiais e outros agentes de segurança, e o golpe contra Evo Morales na Bolívia, em 2019, que contou com a participação de corporações policiais, acenderam um sinal amarelo em relação à cooptação/adesão de forças policiais pela extrema direita.

 

 

IHU - Qual diria que é a adesão ideológica das Forças Armadas, policiais e forças de segurança ao governo Bolsonaro? Há consenso entre todos esses atores acerca das linhas gerais do governo Bolsonaro?

Adriano de Freixo - A candidatura de Jair Bolsonaro à presidência foi, antes de tudo, um projeto das Forças Armadas, do “Partido Militar”, articulado em torno da defesa de interesses corporativos, do desejo de retomar o protagonismo político e de persistência de uma forte ideologia anticomunista – ou mais genericamente, antiesquerdista – nos quartéis. Portanto, a intensa participação de militares das três forças no governo é um desdobramento lógico disso. Nesse sentido, é importante ressaltar que a diferenciação – feita por comentaristas políticos da grande imprensa e mesmo por alguns acadêmicos – entre a “ala militar” – pretensamente mais racional e técnica – e a “ala ideológica” do governo é bastante forçada, já que há inúmeros pontos de convergência entre os dois grupos, que compartilham uma visão de mundo bastante conservadora e elitista, além de professarem uma forte ideologia anticomunista e contrária, até mesmo, ao progressismo mais moderado.

Mesmo a crença que ainda persiste, inclusive em parte da esquerda, de que os militares seriam mais desenvolvimentistas e nacionalistas – o que os diferenciaria também da ala ultraliberal do governo, personificada em Paulo Guedes –, também não se sustenta, já que nas últimas três décadas os militares foram gradativamente se afastando das teses desenvolvimentistas e abraçando o ideário neoliberal. Já os integrantes das forças de segurança se incorporam a esse projeto, como copartícipes, a partir das questões já levantadas nesta entrevista.

 

 

IHU - As forças de segurança e as polícias estão sendo instrumentalizadas pelo governo? Sim, não e quais são as evidências disso?

Adriano de Freixo - Até certo ponto sim, pois embora esse não seja um processo linear, há uma “bolsonarização” em curso nas polícias estaduais, como eu disse anteriormente. Esse fenômeno ficou bem explícito em paralisações recentes de policiais em vários estados, sendo o caso do Ceará, no início do ano passado, o mais emblemático. Não se pode ignorar que lideranças da categoria identificadas com o bolsonarismo tiveram papel de destaque e contribuíram bastante para a radicalização – até o limite do confronto – desses movimentos, conseguindo, em certa medida, instrumentalizá-los politicamente.

Eventos como a repressão injustificada da PM de Pernambuco aos manifestantes contrários ao governo em 19 de maio, o tratamento diferenciado dado a manifestantes pró e contra Bolsonaro em diversas manifestações desde 2019, a presença de integrantes das forças de segurança nas “motociatas” em apoio ao presidente ou um discurso recente do comandante da PM de Brasília que foi encerrado com o slogan de campanha de Jair Bolsonaro, também sinalizam essa identificação de parte expressiva das forças policiais com o bolsonarismo. Mas, como assinalei, esse não é um processo linear e nem há uma homogeneidade nas posições dos integrantes das forças de segurança.

Também há, nas corporações policiais, segmentos – mesmo que minoritários – críticos ao governo e ao bolsonarismo, assumindo, inclusive, posições progressistas como os “Policiais Antifascismo”. Até mesmo entre os setores mais identificados com as teses bolsonaristas, há pontos de divergência em relação às políticas implementadas pelo governo no campo da segurança pública. Por outro lado, há uma forte presença de nomes oriundos das várias corporações policiais em diversos escalões do Executivo e em fundações e órgãos governamentais. Se não chega a ser um quantitativo tão numeroso quanto o de integrantes das três Forças Armadas, ainda assim é um número expressivo. É importante ressaltar também que nas bancadas bolsonaristas no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas Estaduais há um grande número de parlamentares oriundos das forças de segurança pública. Por tudo isto, por exemplo, a possibilidade de rebeliões pontuais de setores das polícias estaduais contra ordens de governadores da oposição é algo que começa a ser bastante palpável e não pode ser minimizado.

 

 

IHU - Há riscos para a democracia?

Adriano de Freixo - Na verdade, a democracia brasileira já se encontra bastante fragilizada. Vivenciamos, já há alguns anos, um gradual processo de desdemocratização, com o estado de direito e a nossa jovem – e ainda inconclusa – democracia sendo erodidos por dentro, por vezes, com a complacência ou a conivência das instituições que deveriam zelar por eles. A forma como se deu o afastamento da presidente Dilma Rousseff; os métodos “heterodoxos” da força-tarefa da “Lava Jato”; os ataques à liberdade acadêmica por parte de grupos como o “Escola sem Partido” ou por parlamentares, integrantes do judiciário e do Ministério Público Federal - MPF e outros agentes governamentais; a repressão policial a manifestantes contrários ao governo; os ataques à liberdade de imprensa por integrantes do governo, inclusive o próprio presidente da República; o indiciamento de opositores – o que inclui jornalistas e acadêmicos – em uma anacrônica Lei de Segurança Nacional ou a radicalização e a banalização, em escala crescente, das históricas práticas repressivas e punitivas sobre os grupos mais vulneráveis são indicativos disto.

A questão hoje é outra: é saber se esse processo de desdemocratização culminará ou não em uma ruptura institucional explícita, como defendem os setores mais radicalizados do bolsonarismo. E a resposta é sim: há sempre esse risco.

 

 

IHU - Até que ponto a adesão de parte da população ao discurso “bandido bom é bandido morto”, reiterado pelo presidente, reflete o medo e a insegurança da população diante da violência, e até que ponto é uma expressão de uma visão de mundo calcada na eliminação do outro?

Adriano de Freixo - Creio que esses dois elementos estão forte e intimamente articulados. Por um lado, os problemas de segurança pública constituem-se numa preocupação central da sociedade brasileira, não só das camadas médias e dos setores mais abastados, mas principalmente das populações mais vulneráveis que são obrigadas a viver e trabalhar em territórios controlados por facções e milícias criminosas, além de conviver cotidianamente com a truculência policial, no que sempre foi um “estado de exceção permanente”, que nas periferias do mundo é a regra. Por outro, não se pode ignorar que, historicamente, a direita tem conseguido certo monopólio no discurso e na agenda da segurança pública – e isto é um dos calcanhares de Aquiles dos setores progressistas –, demonizando os direitos humanos e colocando em seus defensores a pecha de “defensores de bandidos”. Essa retórica fácil vai ao encontro de uma sociedade profundamente desigual, estruturalmente violenta, com longa tradição autoritária e com a construção amigo/inimigo fortemente enraizada em seu imaginário. Por isto, o discurso punitivista e de “eliminação” do inimigo/outro encontra tanto eco.

 

 

IHU - Por que, na sua avaliação, a política de segurança do governo Bolsonaro é falha? Em que aspectos ela se diferencia das políticas de governos anteriores?

Adriano de Freixo - Bem, para além dos discursos exaltados, de críticas aos direitos humanos e das manifestações de apoio a ações policiais nas redes sociais por parte de integrantes do governo, é difícil identificar avanços efetivos na atual política de segurança. A prioridade dada a questões como a adoção de medidas que flexibilizam a compra e a posse de armas é um bom exemplo disto. A articulação com os governos estaduais também é bastante deficiente. Por sinal, um ponto de tensão com os governadores é justamente o projeto em discussão no Congresso sobre a reforma das polícias que tem a simpatia do Executivo. A partir de uma proposta genérica de uniformização mínima das polícias estaduais feita há 20 anos, a bancada da segurança pública quer aumentar a autonomia das corporações policiais e limitar o poder da autoridade civil democraticamente eleita – os governadores de estado – sobre elas. Ou seja, na contramão do que se discute nas democracias mais avançadas, há a tentativa de se restringir o controle da sociedade sobre uma força policial militarizada, especificamente – militarização essa que, por si só, já deveria estar sendo discutida no bojo de um debate mais amplo sobre a unificação das polícias –, e sobre o conjunto das forças policiais em geral (já que o projeto também inclui as polícias civis).

Assim, no fim das contas, o que parece restar é só uma retórica fortemente punitivista – bem ao gosto da base política do bolsonarismo – e, como carta na manga, a utilização das Forças Armadas em Operações GLO (de Garantia da Lei e da Ordem), em momentos de crise na segurança pública de algum estado da Federação.

 

 

IHU - Como o senhor compreende o fenômeno do bolsonarismo?

Adriano de Freixo - Eu vejo o bolsonarismo como um fenômeno político que transcende a própria figura de Jair Bolsonaro, se caracterizando por uma visão de mundo ultraconservadora, que prega o retorno aos “valores tradicionais”, e por uma retórica nacionalista e “patriótica”, sendo assim profundamente crítica a tudo aquilo que esteja minimamente identificado com a esquerda e o progressismo.

Esta visão de mundo ganhou bastante força nos últimos anos em várias partes do mundo, se alimentando, por um lado, da crise da representação, da descrença generalizada na política e nos partidos tradicionais, do incômodo e da sensação de desnorteamento de amplos setores com as quebras de laços e vínculos sociais tradicionais decorrentes das grandes transformações do capitalismo global nas últimas décadas e, por outro, da reação de segmentos privilegiados da sociedade ao que eles consideram como “perda” de privilégios que possuíam – e que viam como “naturais” – devido às mudanças culturais e sociais e à implementação de políticas públicas voltadas para minorias historicamente oprimidas. No Brasil, ela iria encontrar a sua personificação no ex-capitão e em seu estilo de fazer política, calcado na lógica do “contra tudo que está aí”, apesar de ele mesmo ser parte do establishment político – fazendo parte do chamado “baixo clero” – desde 1988, quando disputou e venceu sua primeira eleição.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU

 

Nesta quinta-feira, 15-07, às 17h30min, o IHU realiza a webconferência Regulações pela violência: impacto das operações policiais e as ações das milícias, com o Prof. Dr. Daniel Hirata.

 

 

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