Passar para a outra margem com fé, sem medo e com máscara (Mc 4,35-41)

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18 Junho 2021

 

"Os discípulos começaram a romper com o mar, mas ainda não foram capazes de compreender o caminho de Jesus. O mar, os opressores, ainda os aterrorizam. Mar é o ambiente caótico da ideologia do sistema opressor, que ainda está presente na vida dos discípulos. Eles ainda não têm fé suficiente para romper com ele", escreve Frei Jacir de Freitas FariaOFM, ao comentar o Evangelho de Marcos 4:35-41.

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o comentário.

 

O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é Mc 4,35-41. Nos capítulos anteriores, Jesus entra na sinagoga para ser reconhecido pelos demônios e ser confrontado com as lideranças judaicas dos grupos dos fariseus, saduceus e herodianos. Nessa ocasião, Jesus entra também na casa de Pedro, onde cura sua sogra, doentes e é confrontado pela sua família.

Nessa passagem, o ambiente é outro, o mar. Por que o mar? Jesus está com os discípulos num barco. Jesus dorme. Os discípulos têm medo? Medo de quê? Medo do vento. Você teve medo em sua vida? Qual a origem do medo? Jesus e os discípulos haviam passado para a outra margem. Você já mudou de rumo, de margem em sua vida?

Passemos às possíveis respostas. A cena parece interessante. Jesus, na sua humanidade, dorme tranquilo. Os apóstolos o protegem. Mar e vento sopram violentamente. Esses representam o poder (mar) e o espírito (vento) do mal. Leviatã era o demônio do mar, assim como Azazel era o demônio do deserto. O rei selêucida Antíoco IV Epífanes, que significa “revelação de Deus” e considerado uma “besta’ pelos judeus, julgava-se “Senhor do vento e do mar”. Entre os romanos, do cônsul Pompeu se dizia que o mar e o vento lhe obedeciam.

Contrário aos poderosos, Jesus age como Deus criador que pode acalmar o mar e o vento. Em Jesus, Deus se desperta do sono para reger o mar. Contrário a Jonas, que dormia para não enfrentar os perigos do mar. Às palavras de Jesus: silêncio e quieto, o vento serena e tudo volta ao normal.

Em seguida, Jesus chama a atenção dos discípulos: “Não tendes fé? Nisso está a questão central da passagem: a falta de fé dos discípulos. O medo dos discípulos está relacionado com a falta de fé. Na pergunta dos discípulos, por quem é este que até o mar e o vento obedecem, está a prova de que eles não foram capazes de reconhecer a ação de Deus em Jesus.

Os discípulos começaram a romper com o mar, mas ainda não foram capazes de compreender o caminho de Jesus. O mar, os opressores, ainda os aterrorizam. Mar é o ambiente caótico da ideologia do sistema opressor, que ainda está presente na vida dos discípulos. Eles ainda não têm fé suficiente para romper com ele.  

As primeiras comunidades estavam se aproximando dos gentios que ficam na outra margem. Uns defendiam o caráter judaico da missão de Jesus, outros, não. Havia o conflito entre as propostas de Pedro e as de Paulo. Jesus estava “dormindo”, isto é, morto, parecia ausente. A barca dos discípulos, das primeiras comunidades, estava à deriva. Muitos cristãos estavam aderindo ao império romano. [1]

O objetivo de Marcos, com essa passagem, era convocar a comunidade para ter fé em Jesus ressuscitado da morte, vivo e atuante na comunidade com a força de Deus, capaz de dominar o caos e de vencer as potências infernais satânicas que ameaçam as comunidades. No mar da vida, encontramos muitas dificuldades. Sem a fé podemos afundar, mas quem crê está salvo. O barco é a comunidade, que sofre tormentos de todos os lados, mas que precisa ter fé.

O que Marcos quis dizer para nós, hoje, com essa passagem? Permita-me apontar duas situações, uma de cunho pessoal e outra, comunitária, ainda que as duas se entrelacem.

Na dimensão pessoal, ficando com o sentindo existencial, tão bem expresso naquela música de Nelson Mota, tão cara às comunidades: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura nas mãos de Deus e vai. Se as tristezas desta lida quiserem te sufocar. Segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará. Não temas, segue adiante, e não olhes para trás

Segura na mão de Deus e vai.”  A fraqueza faz parte de condição humana. Ninguém é super-homem ou super-mulher. Precisamos reconhecer o nosso limite, mas acreditar sempre. Como disse o Papa Francisco, recentemente, aos sacerdotes que se creem os tais, mas que vale para todos nós. Ele disse: “Os sacerdotes super-homens terminam mal, todos eles. O sacerdote frágil, que conhece suas fraquezas e fala delas com o Senhor, esse irá bem”.

Na dimensão social e coletiva, chamo a sua atenção para a atual conjuntura brasileira, dividida entre os projetos de construção da sociedade. Estamos, como na comunidade de Marcos, com medo e sem saber a qual projeto seguir. Havia dúvida se deveria “usar máscara ou não”, pois o medo os paralisava e os impedia de passar para a outra margem. Passamos a vida inteira trocando de margem: do bebê para a criança, da criança para o jovem, do jovem para o adulto. Com medo não se vence as passagens!

É bem verdade que o medo faz parte de nossa condição humana. Quem disse que nunca teve medo, está mentindo. Coragem, diria Jesus, para passar da margem do sofrimento para a alegria, da fome para a abundância, da injustiça para a justiça, da política desonesta para a verdadeira política.

Por fim, o segredo, na passagem do mar da vida, é levar Jesus conosco na barca, pois só ele pode cuidar de nós diante dos ventos nefastos e dos demônios do mar. Ele é como uma máscara que nos protege na travessia, na turbulência vida infestada de nefastos vírus. Segura nas mãos de Deus e vai. Boa viagem. Paz e bem.

Referência: 

[1] SOARES, Armando Sebastião Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia; OLIVA, José Raimundo. Marcos. São Paulo: Fonte Editorial/Santuário, 2013, p. 189.

 

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