Alimentação para o singular. Pensamentos em torno da nutrição em tempos difíceis

Comida ultraprocessada prejudica a comunicação do intestino com o cérebro | Foto: Pixabay

10 Junho 2021

 

"Com uma ampla gama de tecnologias de agricultura industrial alterando a qualidade e o componente informacional de nossos alimentos, a linguagem de transmissão da informação começou a mudar. Irradiaçãomodificação genéticaagrotóxicosqualidade do soloultraprocessados, uso de plásticos para armazenagem desses alimentos, acabam por alterar significativamente a forma e a qualidade dessa comunicação [entre o intestino e o cérebro]", escrevem Monica Machado, pesquisadora em Nutrição e Educação, e Bia Machado, pesquisadora em Filosofia e Educação, pertencem ao Coletivo Faculdade da Imaginação.

 

Eis o artigo. 

 

A gente não quer só comida.
A gente quer comida, diversão e arte. (Titãs)

 

Deus está onde o põe teu desejo: todo inteiro no corpo humano. (Yunus Emré [1])

 

Quando Foucault, nos seus últimos anos, passou a dedicar-se a uma experimentação filosófica em torno do cuidado de si, a sociedade civil ainda não conhecia essa grande abertura a que assistimos no séc. XXI: os conhecimentos indígenas, orientais e medievais alimentando de modo sistemático as práticas de autoconhecimento e autocuidado.

 

De origem indígena, temos como exemplo, entre outros, as práticas agroflorestais, cujo impacto tanto sobre a nossa saúde quanto sobre o meio ambiente e a política envolve uma questão complexa – e nem um pouco complicada – que exige de nós algumas técnicas bem aplicadas para que possamos navegar com tranquilidade, relaxamento e prazer neste rio aberto ao mar dos novos tempos.

 

De origem medieval e/ou oriental, temos os diversos conhecimentos que hoje, em maior ou menor escala, já pertencem ao cotidiano de uma parte cada vez mais abrangente da população: as medicinas chinesa e ayurvédica, a yoga e o tai-chi, o Taoísmo, o Budismo, o Sufismo, etc.

 

Com isso, somos constantemente surpreendidos por experiências há pouco tempo inimagináveis como, por exemplo, o diálogo entre os conhecimentos neurológicos e ayurvédicos sobre… o intestino!

 

Trata-se, sem dúvida, de uma grande abertura, de um tempo venturoso de novos e surpreeendentes aprendizados que, seguramente, transformarão muitos aspectos da vida atual. Isto é, se a vida no planeta não acabar antes…

 

Agora, uma questão não pode ser negligenciada: se queremos obter os benefícios reais dessa grande abertura, não podemos simplesmente "importar" práticas de outras culturas e "aplicá-las" à nossa vida como se tudo fosse uma questão de comprar um vinho em Paris ou um macbook em Nova York e vir usá-los no Brasil. Necessitamos inventar e pesquisar formas rigorosas de tradução dessas práticas na nossa vida diária, nossa dura vida diária.

 

É nesse contexto que queremos falar de alimentação. Sabemos da importância de buscar receitas de qualidade, de adotar regras de boa conduta alimentar e de produzir críticas severas tanto à indústria "alimentar" atual quanto às políticas governamentais. Ao mesmo tempo, queremos contribuir com este vasto movimento alimentando o campo das pesquisas sobre os fundamentos que possam sustentar criteriosamente o diálogo com outras culturas, outras medicinas e outras práticas alimentares.

 

Para começar, nossa proposta é articular dois fundamentos que hoje ainda estão presentes de forma desarticulada no campo destes diálogos: o holístico e o singular.

 

Um pequeno exemplo para abrir a conversa: quando estudamos os alimentos por diversos ângulos e pesquisamos as visões de várias ciências antigas sobre eles, frequentemente somos levados a compor e recompor listas de alimentos que consideramos saudáveis em oposição aos não-saudáveis. E esta seria, na hipótese mais otimista, a perspectiva holística. Ao mesmo tempo, se não levarmos em conta cada pessoa em sua singularidade, num momento em particular, numa situação em particular, não teremos de fato aprendido grande coisa com essas outras culturas.

 

Cada uma dessas ciências possui fundamentos que lhes permitem singularizar suas leis, exercitar um dinamismo tão vasto quanto eficiente: pimenta pode ser um tratamento para uma certa pessoa em uma certa circunstância e pode ser um veneno para outra, na mesma ou em outra situação. O "desequilíbrio vata" da Ayurvédica pode levar a uma dispersão grave em certos momentos ou a uma experiência de timidez quase patológica. A alimentação correta para cada caso pode, sim, operar tanto no campo da fisiologia quanto no da psicologia e no da sociologia e produzir resultados de grande relevância. Em outras palavras, a pessoa é o critério[2] (e não o alimento ou o comportamento), e a pessoa é fundamentalmente misteriosa, não pode ser definida, controlada ou, como diz o Riobaldo: "O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão"[3].

 

Um segundo fundamento que as autoras do presente artigo consideram de suma importância é o pensamento analógico. A maior parte dessas artes-ciências utiliza a analogia como fundamento epistemológico. Eis um exemplo banal: um jovem estudante de acupuntura afirmou em uma consulta a um cliente que "antigamente a acupuntura pensava em energias perversas como o vento, o frio, o calor, etc. Hoje, porém, sabemos que há muitas outras questões a ser tratadas além destas que são muito limitadas". Há uma notável confusão nesta afirmação. O vento, o frio, o calor, etc. não são literalmente os estados físicos que, em nossa sociedade, designamos por esses nomes. São séries analógicas. Assim, tudo o que pode ser tomado, analogicamente, como, por exemplo, contração, será "frio". A rigidez do corpo, o autoritarismo na postura, a distância na alma, a impiedade no gesto, todas essas formas podem pertencer à mesma série analógica do frio e – o que é fundamental – ser tratadas como "frio". A ingenuidade atribuída aos "antigos" acupunturistas é, na verdade, ignorância nossa sobre os fundamentos desta ciência de impressionante complexidade.

 

Portanto, não se trata de "causa e efeito". A causalidade eficiente aparece nas ciências antigas como parte do pensamento analógico, e não o contrário, como na ciência moderna.

 

Vamos ver um tratamento analógico para abordar uma área de experiência que passaremos a chamar de intestino.

 

O intestino, uma galáxia

O intestino tem a função de permitir a entrada de tudo aquilo que nutre, que nos faz pessoas mais vitalizadas e também de impedir que tudo o que é tóxico entre no nosso organismo. Nesse processo, ele produz uma quantidade enorme de substâncias como enzimas, vitaminas, antioxidantes, neurotransmissores. Estamos acostumados a crer que este órgão tem apenas duas funções: absorção e excreção, porém, bem sabem os profissionais de nutrição que ele possui muito mais funções.

 

Usando o processo analógico para compreender melhor todas as funções do intestino, podemos pensá-lo inicialmente como uma grande alfândega! É nela que acontece a distribuição do que pode entrar, passar direto, ficar retido, ser distribuído e onde os agentes da aduana vão verificar cada item para ver se pode passar, se não tem contrabando, etc. Pode acontecer também desses agentes deixarem passar algumas coisas porque, naquele momento, não pareciam ser importantes. E muitas coisas são apreendidas. Nosso intestino é assim também: alguns subprodutos de alimentos acabam ficando retidos nas paredes, provocando mais tarde, um extravasamento de substâncias acumuladas ao longo do tempo.

 

Então a alfândega funciona como a primeira função do intestino que é a digestão. Seguindo este processo, vamos ver que a alfândega não pode operar sozinha, ela espera o movimento de entrada dos passageiros vindos de fora. E, no organismo, o nosso portão de entrada são as mucosas que se encontram ao longo de todo o sistema. Temos mucosas na boca, no esôfago, no estômago e todas elas são interligadas.

 

Assim como os agentes dos aeroportos, nosso estômago deve estar preparado para receber os alimentos/passageiros. Se ele está preparado, sentimos fome. Essa sensação nos avisa que o estômago está se preparando para receber o alimento, produzindo o suco gástrico.

 

Pensemos agora num aeroporto lotado com muitos passageiros chegando de todas as partes do mundo. Será que a alfândega vai aumentar o seu ritmo de trabalho ou será que vai deixar passar todo tipo de coisas, sem fazer a distribuição adequada? Da mesma forma, quando comemos sem sentir fome, o estômago não vai receber o alimento de maneira apropriada. Se a digestão do que comemos antes ainda não terminou e comemos algo em cima, ele vai parar o processo para começar tudo de novo! E o que ficou sem digerir vai ser acumulado, causando uma série de inconvenientes.

 

Por outro lado, se ficamos muito tempo sem comer, mesmo sentindo fome, todo o processo fica prejudicado. Se o estômago se prepara para receber o alimento e ele não vem, o suco gástrico não vai ficar parado, ele vai agir como se tivesse alimento ali. A longo prazo, temos uma série de problemas como hipocloridria ou hipercloridria e até mesmo gastrite e outros ites, ou seja, inflamações!

 

Como todos sabemos, uma das formas mais embrutecedoras que a nossa educação-voltada-para-o- mercado nos impôs foi a pressa. No meio da "correria do dia a dia" não nos damos conta da importância de (imagine aquele emoticon de surpresa e horror ao mesmo tempo) parar para comer! Uma prática absolutamente comum é a gente "enganar a fome" – como se isso fosse possível! – para não deixar de fazer o que o mercado de trabalho espera que façamos.

 

Muitas doenças são provocadas pelo simples fato de não percebermos se o portão da aduana está aberto ou fechado ou se perdemos o lugar na fila atrás do portão! Daí a importância da observação do momento presente.

 

Evidentemente, essa observação se faz por meio de uma disciplina, isto é, por meio de um conjunto de técnicas inteligentes. Não se trata, portanto, de uma disciplina ao gosto da nossa sociedade industrial, de controle e punição, de repetição mecânica. A Yoga, já mencionada aqui, é um excelente exemplo dessa disciplina inteligente.

 

O que aprendemos com outras culturas é que essa disciplina inteligente consiste num diálogo com as coisas, com o tempo, com o lugar, consigo mesmo. A "pressa" – ou ansiedade, imediatismo, ou qualquer outro termo de nossa preferência – corresponde a uma relação com o conhecimento na qual tudo tem que ser aplicado imediatamente, caso contrário, não interessa. A disciplina inteligente trabalha com aberturas, com possibilidades e com o parâmetro fundamental de que há coisas que não sabemos, que não controlamos e que pertencem à ordem dos mistérios. O problema é que, ao começarmos a abordar esse tema, logo fica parecendo que estamos tentando trazer uma dimensão religiosa ao nosso tratamento. E aí a confusão aumenta (emoticon de surpresa e horror ao mesmo tempo de novo!). Não se trata de religião, trata-se de um pensamento complexo.

 

Outras duas funções, que acontecem uma em seguida da outra: absorção e excreção. Usamos a imagem de uma usina de reciclagem. Podemos imaginar todo o processo: chega aquele fardo de materiais para serem separados por cor, tamanho, tipo de material para depois serem distribuídos e encaminhados a locais específicos. Estamos falando dos nutrientes e lipídeos que percorrerão caminhos diferentes para tornar aqueles alimentos em fontes de energia para o nosso corpo. E o que não pode ser distribuído, é eliminado. Isso se o intestino estiver com todas as suas "esteiras" limpas e desobstruídas! Aqui entra a função detox: depois do trabalho da distribuição, as células vão "lavar o galpão". Uma vez ou outra, sobram sujeirinhas que vão se acumulando e, mais tarde, obrigam o "dono da usina" a fazer uma faxina mais severa. Mas o intestino tem essa função também!

 

Mais 3 funções deste órgão surpreendente: de imunidade, endócrina e neurológica. A nossa imagem agora é a da Rede de Comunicações, tudo no nosso corpo está em comunicação. E, claro, se houver um impedimento, uma falha de transmissão, uma torre derrubada, a informação não vai chegar ao seu destino, ou vai se perder no meio do caminho.

 

Um exemplo de torre derrubada é a inflamação e posterior retirada do apêndice, aquela bolsinha minúscula ligada ao intestino grosso. Sua função é fabricar e servir como depósito de bactérias que auxiliam na digestão. Além disso, ele possui células linfoides (glóbulos brancos), que produzem anticorpos e ajudam nas defesas do organismo. Sem ele, temos um exército a menos para ajudar a combater invasores, deixando todo o trabalho para o baço.

 

O intestino envia todo tipo de mensagem ao cérebro, 90% segue pelo nervo vago e informa ao cérebro sobre as produções de hormônios, por exemplo, a leptina que é o hormônio da saciedade e muitos outros. Toda a comunicação com as glândulas endócrinas se dá entre intestino e cérebro. E os humores, segundo a medicina chinesa, dependem diretamente dessa boa conversa entre esses dois órgãos.

 

Atualmente, com uma ampla gama de tecnologias de agricultura industrial alterando a qualidade e o componente informacional de nossos alimentos, a linguagem de transmissão da informação começou a mudar. Irradiação, modificação genética, agrotóxicos, qualidade do solo, ultraprocessados, uso de plásticos para armazenagem desses alimentos, acabam por alterar significativamente a forma e a qualidade dessa comunicação. É como se fosse um dialeto para o qual o cérebro não possui um tradutor e, na maioria das vezes, o que acontece é uma "queda de fase", ou seja, ele desliga para não haver curto-circuito. A consequência desse tipo de falha da comunicação são as epidemias do nosso século como obesidade, hipertensão, doenças autoimunes, diabetes tipo II etc.

 

Chegamos na função neurológica. A analogia com o cérebro é antiga, o conceito de 2º cérebro já é um termo corriqueiro. O intestino, além de suas várias funções, ainda produz neurotransmissores, assim como o cérebro. 90% da serotonina é produzida nele, além da dopamina e são esses neurotransmissores que se comunicam com o sistema hormonal. E a endorfina, que dá a sensação de ficar mais alerta e produtivo, parte dela também é produzida no intestino.

 

Além dos pseudoalimentos consumidos hoje em dia, temos também o uso de remédios que promovem a falha na comunicação. Antibióticos, antidepressivos e até mesmo analgésicos podem prejudicar o bom funcionamento da microbiota, derrubando as torres de transmissão e impedindo que a rede cumpra o seu trabalho de forma apropriada.

 

Então, essa rede deve sempre estar livre para que a comunicação seja clara, sem interferências e dessa forma os interruptores ficam ligados e os alarmes funcionando.

 

Aqui, um parêntesis torna-se fundamental: quando trazemos o foco na pessoa e não "nas coisas", uma das consequências é que passamos a pensar nossas práticas como arte, isto é, como criações, portanto, também, como adaptações. Conhecer todos esses aspectos das funções intestinais não deveria traduzir-se em comportamentos obsessivos, medrosos ou mecânicos, do tipo "não posso fazer isso porque isso vai me deixar doente". Nosso objetivo é sobretudo trazer material informativo para abrir nosso campo experiencial, não para fechá-lo. Queremos, na verdade, abrir as janelas para que entrem todos os incertos, em uma paráfrase para a música de Caetano. A pesquisa permanente é, portanto, uma expressão-chave: estamos buscando aprender, experimentando, descobrindo. Fecha parêntesis.

 

Agora vamos juntar todas essas imagens: alfândega, reciclagem, comunicação, cérebro e vamos pensar em formas de prevenção para não deixar que as bactérias "corruptas" tomem conta do processo. Chegamos à imagem da floresta.

 

Entrando na floresta, podemos ver todo um cenário de vida dinâmica bem diante de nossos olhos. Terra fértil e bem nutrida com folhas e frutos que caíram das árvores altas, os cipós balançando no ritmo dos ventos, água corrente, flores cheirosas por todos os caminhos e insetos de todos os tamanhos e cores, fazendo todo tipo de barulhinhos esquisitos. A atividade é intensa e não cessa. A cada estação do ano, como demonstra de forma inequívoca a medicina Ayurvédica, mudam as necessidades da terra, das árvores, e a dinâmica também muda. E tudo ali trabalha para contribuir para um bom desenvolvimento funcional e ecológico.

 

Da mesma forma, nosso intestino trabalha intensamente produzindo vida para o corpo inteiro. Assim como na floresta, ele possui uma microbiota responsável por manter a nossa saúde em dia e que faz toda a distribuição dos macro e micronutrientes, ou seja, Proteínas, Gorduras e Carboidratos, Vitaminas e Sais Minerais e Água, tudo trabalhando de forma a nos tornarmos fortes, com energia e calor.

 

Não precisamos saber tudo a respeito disso, mesmo porque corremos o risco de ficarmos preocupados com os nutrientes, obcecados com "o equilíbrio", com "as toxinas", reduzindo assim a nossa percepção do todo. O que precisamos mesmo é estar em contato com o ritmo, os barulhinhos esquisitos, aromas, cores, sensações que fazem toda a diferença! Se conseguirmos, cada um do seu próprio jeito, recriar a conexão inteligente, há muito perdida, com as formas possíveis de desenvolvimento do planeta, estaremos renovando, a cada estação do ano, a nossa saúde integral.

 

Assim, como se vê, não se trata de receita, nem de regras, nem de bem-e-mal. Trata-se de trabalhar com um entendimento ao mesmo tempo holístico e singular, a partir desta interessante fórmula de místicos medievais: "Deus é Um e um para cada um".

 

Quadro-resumo das metáforas intestinais:

 

 

 

Referências:

Guia alimentar para a população brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, departamento de atenção Básica. – 2. ed., 1. reimpr. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 

Gabriel de Carvalho

GreenMedInfo

Livro: Sayer Ji, Regenerate – Unlocking your body’s radical resilience through the new biology. Hay House Inc., 2020

 

Notas: 

[1] Poeta sufi do séc. XIII, considerado na Turquia como um de seus maiores poetas.

[2] Dizemos "pessoa" e não: "indivíduo". Para falar de modo bastante sintético, a distinção com a qual trabalhamos é a seguinte: o indivíduo, invenção moderna, pertence a um campo ideológico que baseou uma visão abstrata das pessoas. A ideia de pessoa, presente de diversos modos em outras culturas, aparece aqui em conexão com realidades concretas, no sentido marxista do termo.

[3] João Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas, p. 20-1.

 

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