“Salvar a fraternidade – juntos”. Um apelo

Logo do apelo publicado pela Pontíficia Academia pela Vida | Imagem: Reprodução Libreria Editrice Vaticana

09 Junho 2021

 

Salvar a fraternidade – juntos” é um apelo, escrito por um grupo de 10 teólogas e teólogos, convocado por Dom Vincenzo Paglia e pelo Mons. Pierangelo Sequeri. É um apelo à Igreja em todos os seus componentes e aos Sábios, homens e mulheres de boa vontade. É um apelo a ser debatido, não simplesmente uma análise a ser aceita ou rejeitada.

 

A reportagem é publicada por L’Osservatore Romano, 08-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Não é um “diretório” de teses às quais se pede a adesão, mas um “repertório” de temas sobre os quais nos parece decisivo refletir e discutir. O apelo surge diretamente da provocação da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco.

 

A proposta é recolher o sentido profundo dessa provocação definitiva – dirigida a uma Igreja solicitada a se abrir e a um mundo tentado a se fechar – inaugurando o clima de uma “fraternidade intelectual” que reabilite o sentido alto do “serviço intelectual” do qual os profissionais da cultura – teológica e não teológica – estão em dívida em relação com a comunidade.

 

O Senhor é o único Salvador. “Essa é a nossa certeza segura. Mas, no atual kairós da Igreja, existem muitos e preocupantes sinais de ocultamento dessa verdade luminosa. A incômoda obstinação das minuciosas e sufocantes disputas que transformam a prática da teologia em guerra de gangues (‘Eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Cefas’, 1Cor 1,12), é hoje até dominado pela flagrante incapacidade de discernimento das simulações e das perversões que vão de mãos dadas com o exercício da responsabilidade pastoral. O excesso dessa inépcia dos aparatos eclesiásticos já é uma evidência planetária. As litigiosidades e as imoralidades que habitam a província eclesiástica são agora percebidas como um índice da fragilidade do sistema, não simplesmente como fraquezas ocasionais”.

 

Na linha da encíclica Fratelli tutti, “desejamos, em primeiro lugar, compartilhar com os teólogos, os pastores, os discípulos e todo o povo dos fiéis a percepção da krisis que a atual condição nos impõe e a determinação da metanoia que a fé demanda da teologia. Diante de uma convivência humana moldada pelos valores do interesse próprio e indiferente à ética da partilha, a teologia eclesial deve adquirir o estilo de um pensamento criativo e hospitaleiro para todos, não reduzido a um jargão para iniciados. Parece evidente que isso envolverá uma significativa mudança das instituições eclesiais”.

 

O apelo “é um convite apaixonado à teologia profissional – e em geral a todo fiel – para que ofereça um espaço privilegiado e comum para o compromisso de desconstrução do duplo dualismo que atualmente nos mantém como reféns: entre a comunidade eclesial e a comunidade secular; entre o mundo criado e o mundo salvado. A Igreja não é uma aristocracia espiritual dos eleitos, mas uma tenda hospitaleira que guarda o arco-íris da aliança entre Deus e a criatura humana. A aprenderá a habitar as linguagens do mundo secular, sem prejuízo do seu anúncio da proximidade de Deus. E a proximidade eclesial da fé será habitável também para a Cananeia, a Samaritana, Zaqueu, o Centurião. Sem prejuízo da sua distância”.

 

É um apelo também para os Sábios. “Nós lhes propomos uma inversão de tendência no pensamento da época. Não desprezem o Nome de Deus, ao qual a invocação dos fiéis sinceros se dirige por todos os homens e as mulheres do planeta, e pelo qual os próprios fiéis se colocam à disposição para interceder por todos os pobres e abandonados. Critiquem-nos quando devem – e até quando não deveriam –, mas guardem com respeito o mistério – insondável também para vocês – do Nome de Deus.”

 

É mais do que nunca necessário salvar a fraternidade para permanecer humano. “Sem a contribuição das razões humanas do sentido, procuradas sempre de novo por tentativas e erros, o pensamento cristão da fé não pode realmente habitar a terra com a honestidade intelectual que o seu testemunho da encarnação de Deus exige. Depois de ter passado alguns séculos impondo às consciências a necessidade do seu recíproco afastamento, estamos convencidos de que chegou o momento de experimentar a liberdade da sua empática frequentação, em vista de novas políticas do espírito. Dispostos ao sublime desprezo de todos os aparatos religiosos e seculares que, nas guerras fratricidas – das religiões e contra a religião –, sobreviveram até demais, às nossas custas e dos nossos filhos. Irmãos e irmãs todos e todas: nem um/a a menos”.

 

Como explica Dom Vincenzo Paglia no posfácio que encerra o apelo, “as instituições eclesiais são chamadas a fazer a sua parte na promoção de um diálogo mais profundo e assíduo entre a inteligência da fé e o pensamento do humano. Nessa renovação, a teologia e a pastoral convergem, como as duas faces de uma idêntica ação. A recente encíclica Fratelli tutti encoraja a imaginar a nova perspectiva desse diálogo como a conjugação eficaz e necessária de uma fraternidade intelectual a serviço de toda a comunidade humana. O impulso à redescoberta da perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar, por parte da própria teologia, vai nessa direção (Veritatis gaudium)”.

 

A íntegra do apelo pode ser lida, em italiano, aqui.

 

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“Salvar a fraternidade – juntos” - Carta aberta aos Sábios

 

Pierangelo Sequeri, K. Appel, C. Casalone, D. Cornati, J. Duque, I. Guanzini, M. Neri, G. C. Pagazzi, V. Rosito, G. Serrano, L. Vantini

 

“Sendo assim exercemos a função de embaixadores em nome de Cristo, e é por meio de nós que o próprio Deus exorta vocês. Em nome de Cristo, suplicamos: reconciliem-se com Deus” (2Cor 5,20).

 

Nós pedimos humilde e firmemente aos intelectuais do nosso tempo que purifiquem a cultura dominante de toda concessão complacente aos espíritos conformistas do relativismo e da desmoralização. Os povos já estão bastante exaustos com a prepotência da tecnocracia econômica e da indiferença ao humano compartilhado: a idolatria do dinheiro tornou-se uma ideologia sofisticada e inaferrável, capaz de mil justificativas racionais e dotada de meios extraordinários para se afirmar.

 

Nós lhes suplicamos, em primeiro lugar, que não ofereçam à injustiça do dinheiro a cumplicidade da razão e do pensamento, da ciência e do direito. Devemos impedir que o dinheiro divida aquilo que Deus une: os seres humanos, em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa.

 

Nós lhes suplicamos que restituam aos povos o pensamento amigável da nossa origem comum e da nossa destinação comum. Chegou o tempo de restituir ao saber do humano a honra da sua retidão e o ônus da sua responsabilidade: o conhecimento da verdade nunca está isenta da paixão pela sua justiça. Não podemos sustentar ainda por muito tempo uma prática do conhecimento que concede que a ciência seja exonerada da sensibilidade responsável pelo humano que é comum.

 

A exasperada autorreferencialidade do indivíduo moderno, sujeito de um desejo que busca a realização de si mesmo na separação do outro, contaminou as formas da comunidade. Elas mesmas estão se tornando permeáveis a um espírito da competição hostil pela fruição dos bens disponibilizados pela natureza e pela cultura.

 

Retornam – ou pelo menos retomam um vigor inesperado – os velhos fantasmas: o racismo, a xenofobia, o familismo amoral, a seleção elitista, a manipulação demagógica. A desconfiança na comunidade e a desmoralização do indivíduo se sustentam reciprocamente, na circularidade viciosa induzida por uma visão do humano que perde razões de cooperação e acumula motivos de desconfiança.

 

No entanto, assim que interrogados fora dos lugares comuns e das respostas prontas, milhões de indivíduos atestam a sua espontânea aspiração a uma política e a uma legalidade protetora da livre e feliz reciprocidade dos seres humanos de todas as religiões e culturas. Assim como também a sua esperança em uma economia e em uma técnica disponíveis ao cuidado das nossas vulnerabilidades e generosa no sustento do nosso esforço de viver.

 

Esses milhões são aqueles em que se reconhecem – em todos os cantos da terra e debaixo de todos os céus – homens e mulheres que, todos os dias, se consomem para cumprir os seus compromissos, para honrar a palavra dada, para criar dignamente os seus filhos, para serem de ajuda à comunidade de pertencimento e à hospitalidade do estrangeiro. Uma vida humana digna desse nome continua existindo graças à sua resistência.

 

A cultura não é generosa para com esses milhões: muitas vezes até ironiza a sua ingenuidade, a sua generatividade, a sua disponibilidade. Fá-los se sentir antiquados. Não encoraja a admiração pela beleza da sua dedicação. Acha anômala a sua sobriedade e se maravilha com a sua generosidade. Não sustenta o entusiasmo de uma visão do humano em que todos possam se orgulhar de serem reconhecidos como partícipes: justamente porque redescobrem a alegria de apoiar juntos a luta contra as suas degradações e de se apaixonarem juntos pelas suas conquistas.

 

Quando prometemos aos nossos semelhantes bem-estar e justiça em troca de poder e de riqueza, nossos lábios deveriam tremer diante do pensamento de um juramento proferido com presunção e desonrado com leviandade. O poder dos livres e iguais não é uma proteção evidente para os direitos dos pobres e para a fraternidade dos povos.

 

Nós lhes propomos, a esse respeito, uma inversão de tendência no pensamento da época. Não desprezem o Nome de Deus, ao qual a invocação dos fiéis sinceros se dirige por todos os homens e as mulheres do planeta, e pelo qual os próprios fiéis se colocam à disposição para interceder por todos os pobres e abandonados. Critiquem-nos quando devem – e até quando não deveriam –, mas guardem com respeito o mistério – insondável também para vocês – do Nome de Deus.

 

Ninguém é sem salvação e sem esperança, enquanto esse nome for guardado por todos. Todos nós somos mais nus e mais malvados quando o crucificado é zombado, e o ressuscitado, ridicularizado. A fé cristã ousa o anúncio e o testemunho de um Deus destinado ao ser humano de modo irrevogável, eterna, sem hesitação: disposto a honrar o seu vínculo, trazendo-o de volta para casa de toda a perdição. A honra de Deus – a justiça do querer bem que gera vida e promessa de vida – é posta em jogo de uma vez por todas e para sempre com esse vínculo: a sua glória, pelo seu livre e soberano enternecimento, é o nosso resgate.

 

Nós suplicamos. Não zombem do santo Nome de Deus: deixem-se reconciliar com ele. Protejam conosco – instando a nós mesmos – o mistério desse querer bem e a fé na sua justiça, que ninguém mais pode criar. A própria religiosidade, exposta ao impacto estupefaciente e tremendo dessa revelação, pode perder de vista, de vez em quando, a sua ternura e a sua força. Na vertigem do paradoxo de amor e de justiça que habita o nome de Deus, a própria religião pode permanecer vítima da sua cisão. Pode esvaziar a ternura da sua força, entregando-a à anestesia de uma mística da bela alma, sem amor pela justiça e sem cognição da dor. Assim como também pode empunhar a sua força, erguendo muros e acendendo conflitos em nome de Deus.

 

Devemos vigiar juntos sobre os efeitos do impacto do sagrado na mente do ser humano. O Evangelho põe um selo de ouro nessa proteção: a própria religiosidade deve aceitar ser posta à prova. Esse selo é o amor ao próximo, que o Evangelho eleva definitivamente à mesma altura do mandamento do amor a Deus. O Único que pode e deve ser amado “com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente”. Porque só Ele é o mistério bendito e salvífico do querer bem que deve habitar todas as coisas: de toda a ternura e de toda a potência que está na origem da nossa vida e nos une na promessa da sua destinação.

 

O “próximo” do evangelho não é nem o próximo nem o distante. O próximo do evangelho é “qualquer um” que seja humano e esteja em dificuldade. A proximidade evangélica mede – sem poder defini-la – a seriedade das boas intenções e das belas almas. E estabelece a seriedade dos modos com que a comunidade – e cada um nela – é posta à prova do seu verdadeiro amor pela justiça em favor de qualquer pessoa que se encontre, assim, no “limite” do querer bem, a ponto de se sentir praticamente “fora” de toda comunidade humana. Não porque tenha querido dela sair, mas porque a comunidade recuou em vez de se ampliar.

 

Nós mesmos, pensadores internos ou externos à, comprometidos como Dom Quixote no obsessivo torneio da razão e da – no qual, alternadamente, nos é designada a parte dos moinhos de vento –, não negligenciamos, talvez, culposamente, as vítimas reais do nosso academicismo inutilmente polêmico?

 

As gerações que perderam a confiança na desinteressada mediação intelectual de vínculos melhores do que o indivíduo e da comunidade obtiveram disso, talvez, alguma paixão feliz pela busca da sabedoria que a todos nos diz respeito?

 

A história humana, antes de ser história de governos e de administrações, de impérios e de guerras, de tecnologias e de conquistas, é história de alianças de vida e de fraternidade de caminho. Não haverá nada para nos alegrarmos, precisamente por isso, se a comunidade cristã recomeçar a olhar a história humana do ponto de vista da bênção que Deus representa para o humano que nos é comum, sem exclusões e sem privilégios?

 

A ternura e a força da abertura evangélica à partilha e à destinação das bênçãos da vida – no Filho ressuscitado e no Espírito criador – é o fundamento e o argumento do testemunho fiel. Ou antes e depois do abismo alguém nos ama, ou nada. Para ninguém.

 

A Igreja hoje é solicitada, pelo seu próprio magistério mais alto, a reconsiderar, com um olhar mais humilde e mais inescrupuloso, ao mesmo tempo, quais sonhos e quais visões realmente alimentou, quais invocações e intercessões realmente fez circular, qual honra e qual dignidade concretamente soube inserir na dramática da condição humana dos indivíduos e dos povos.

 

Enfim, a humana communitas deve habitar dignamente a terra e fazer de tudo para não habitá-la em vão: isto é, por nada ou como se não fosse nada. Salvar a fraternidade para permanecer humanos. Sem a contribuição das razões humanas do sentido, procuradas sempre de novo por tentativas e erros, o pensamento cristão da fé não pode realmente habitar a terra com a honestidade intelectual que seu testemunho da encarnação de Deus existe.

 

A teologia, por sua vez, deve aceitar enfrentar criticamente as perversões do sagrado, por tentativas e erros, para que não gozem da cumplicidade da fé. Por essa aliança do pensamento sensível ao humano e da decifração salvífica do sagrado estamos em dívida com as gerações futuras. Depois de ter passado alguns séculos impondo às consciências a necessidade do seu recíproco afastamento, por puro assujeitamento às disciplinas de partido, estamos convencidos de que chegou o momento de experimentar a liberdade da sua empática frequentação, em vista de novas políticas do espírito. Dispostos ao sublime desprezo de todos os aparatos religiosos e seculares que, nas guerras fratricidas – das religiões e contra a religião –, sobreviveram até demais, às nossas custas e dos nossos filhos. Irmãos e irmãs todos e todas: nem um/a a menos.

 

Obrigado, com espírito de sincera amizade, pela sua atenção.

 

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“Salvar a fraternidade – juntos” - Posfácio de Vincenzo Paglia

 

Com a encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco ofereceu tanto à Igreja quanto ao mundo um horizonte para inscrever o futuro próximo deste nosso tempo, que se tornou ainda mais dramático pela pandemia.

 

O impetuoso avanço do individualismo radical, junto com a perda de afeição pela humanidade compartilhada, abriu uma lacuna perigosa para o afinamento da qualidade ética e afetiva, comunitária e espiritual do humanismo.

 

Essa degradação pegou de surpresa os próprios herdeiros da modernidade, que imaginavam a despedida da civilização secular do testemunho religioso da transcendência como um fator decisivo de promoção do humanismo civil.

 

A “fraternidade”, que na carta Humana communitas enviada à Pontifícia Academia para a Vida o Papa Francisco havia apresentado como uma promessa não cumprida da modernidade, volta a se repropor na sua força neste momento da história que todos sentimos inscrito em um momento “axial”, ou seja, crucial para o hoje e para o futuro.

 

O mundo – a cidade secular – há muito deixou de se deixar instruir por Deus quanto ao humanismo da pessoa e da comunidade. O vazio de fraternidade – que a pandemia parece ter aprofundado – está destinado a ser preenchido por uma cumplicidade contrária. A indiferença individual às afeições comuns (não apenas aos bens e aos interesses comuns!) gera monstros – políticos, econômicos, jurídicos – que também ameaçam as partes boas da liberdade e da igualdade (e a sofisticação do aparato anônimo das regras acaba premiando os espertos que tiram vantagem disso!).

 

As páginas que publicamos – fruto de um trabalho colegiado de um grupo de teólogos e filósofos ligados à Pontifícia Academia para a Vida – pretendem se inscrever neste tempo de mudança, sentindo-o também favorável para uma retomada de iniciativa da fé: que não pode se limitar a sofrê-lo passivamente ou torná-lo objeto de puro ressentimento, à espera de tempos melhores.

 

A passividade e o ressentimento obscurecem os olhos da fé e impedem de entrever, nos tempos da história que compartilhamos com os homens e as mulheres desta época, os tempos de Deus.

 

Estamos em uma mudança de época, o Papa Francisco repete muitas vezes, e não mais em um tempo simplesmente de transição. O cristianismo europeu parece ter perdido o seu impulso propulsor neste continente. Sabemos que os elementos constitutivos da verdade cristã chegaram até nós graças ao testemunho escriturístico e à tradição apostólica, como fermento sempre vivo da fidelidade à Palavra de Deus, que devemos conservar intacta entre os tempos. Esse patrimônio de fé representa, no entanto, a semente pela qual, sempre de novo, ele é semeado no campo que é o mundo, de modo que o reino de Deus envolva toda a história do ser humano.

 

Devemos, portanto, nos dispor com alegria ao discernimento do kairós que a vinda do Senhor nos atribui, pondo a mão com entusiasmo no arado que deve traçar o sulco para a semeadura. Sem olhar para trás.

 

E eu diria que o Papa Francisco, nisso, está na nossa frente. E ele pede a nossa disponibilidade para fazer o nosso – não o dele – trabalho. O Senhor nos assegura o Espírito, necessário para o pensamento e para a ação correspondente.

 

A história dos indivíduos e dos povos, nas suas esperanças e nas suas dificuldades, é o lugar do exercício – não há outro – das palavras e das práticas do testemunho evangélico confiado à comunidade cristã, em todas as suas distintas instituições eclesiais. As dificuldades do tempo atual certamente não devem ser subestimadas: pelo contrário, devem ser analisadas com cuidado atento e responsável. No entanto, a responsabilidade criativa que este tempo solicita, do ponto de vista da fé, deve ser assumida sem reticências: com toda a inteligência e com toda a paixão que a fé nos inspira.

 

A vive sempre no mundo e nunca é deste mundo. A palavra de Jesus deixa claro que não existe um mundo apto por natureza para o estabelecimento histórico do reino de Deus, e não existe um mundo simplesmente impermeável ao trabalho do Reino.

 

A Pontifícia Academia para a Vida é uma instituição da Santa Sé dedicada ao serviço intelectual – e, por isso, também testemunhal e pastoral – das profissionalidades diretamente envolvidas na ética do cuidado da vida humana em todas as suas idades e condições: estando cientes da vulnerabilidade, da fragilidade, das feridas que a mortificam e que ameaçam a sua esperança.

 

A severidade dessa prova não está ligada apenas à fraqueza da nossa condição mortal, mas também à prepotência das nossas deliberadas indiferenças e prevaricações.

 

Nessa perspectiva, a Academia nasceu com o mandato de constituir uma rede de excelências profissionais, tanto no campo da ciência e da técnica, quanto no campo da filosofia e da teologia, idôneas para orientar e para apoiar o discernimento bioético dos saberes e das práticas envolvidas no cuidado da vida humana.

 

Esse discernimento foi direcionado para uma atenção especial voltadas aos limiares extremos do arco da existência humana, nas quais a vulnerabilidade é máxima e a dependência da ação do outro – individual e comunitária – é praticamente total. Por isso, por implicação natural, o trabalho científico e reflexivo dos cientistas partícipes da Academia desenvolveu uma atenção específica a todas as passagens em que a vulnerabilidade humana se apresenta.

 

Na conjuntura atual, a Academia sentiu a necessidade de ampliar ainda mais o raio da sua atenção. Por um lado, porque os extraordinários recursos da ciência e da técnica abrem o caminho para a identificação do organismo vivo – também humano – como matéria disponível para a ambiciosa construção de formas de vida geneticamente selecionadas e tecnicamente equipadas em modalidades incomparáveis com as do sujeito humano até aqui conhecido.

 

Por outro lado, porque a sensibilidade ética relativa ao cuidado da vida, tradicionalmente ligada ao respeito pelos limites naturais do ser humano, se encontra agora comprometida com um tipo de desafio inédito, que põe em discussão justamente esses limites. E não apenas no que diz respeito ao nascimento e à morte: mas também ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, à injunção e à liberdade que dizem respeito à vida como tal.

 

A Academia se mobilizou prontamente, nestes últimos anos, precisamente em relação aos horizontes da questão da “bioética global” levantados por essa evolução. Alinhada com a herança da sua própria tradição, mas também com o compromisso para antecipar sábia e responsavelmente os termos da evolução em curso. A questão “bioética” já se sobrepõe direta e totalmente à questão “antropológica”: precisamente em razão dos termos em que ela é posta na nova época.

 

Nessa perspectiva, a Academia quis potencializar esse lado – requintadamente filosófico e teológico – da consultoria que lhe compete, a serviço da Igreja e da comunidade humana. Um documento específico, inspirado na amplitude do nexo entre bioética e antropologia, está em fase de elaboração por uma equipe de especialistas no campo da filosofia e da teologia moral. O documento que apresento, redigido no âmbito de uma colaboração entre especialistas da teologia fundamental e da antropologia teológica, convocados por conta da direção da Academia, inscreve-se nesse sulco de ampliação e de aprofundamento.

 

Não é mais possível, diante das urgências dos novos desafios que enfrentamos, permanecer inertes e continuar repetindo cansativamente o pensamento de sempre. Em vez disso, há uma urgência de que a teologia e a ciência empreendam com criatividade o confronto com os novos cenários que o desenvolvimento tecnológico e as mudanças antropológicas colocam diante dos nossos olhos.

 

O magistério de autoridade, marcadamente no ensinamento do Papa Francisco, refere-se contínua e explicitamente à necessidade desse envolvimento. As instituições eclesiais são chamadas a fazer a sua parte na promoção de um diálogo mais profundo e assíduo entre a inteligência da fé e o pensamento do humano. Nessa renovação, a teologia e a pastoral convergem, como as duas faces de uma idêntica ação.

 

A recente encíclica Fratelli tutti encoraja a imaginar a nova perspectiva desse diálogo como a conjugação eficaz e necessária de uma fraternidade intelectual a serviço de toda a comunidade humana. O impulso à redescoberta da perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar, por parte da própria teologia, vai nessa direção (Veritatis gaudium).

 

A Pontifícia Academia para a Vida com humildade, mas na consciência da urgência do momento, oferece estas páginas para suscitar uma reflexão mais ampla. Trata-se de um breve texto que gostaria de iniciar uma reflexão que parta da mensagem profunda e da visão profética do próprio ato de promulgar a encíclica Fratelli tutti.

 

Pouco tempo depois, seguirá a publicação de artigos de aprofundamentos relativos aos pontos nodais individuais da perspectiva aberta pela encíclica.

 

O desejo é de que esta proposta encoraje um novo espírito de fervor e de transparência, capaz de envolver em grande medida a comunidade teológica e também a comunidade intelectual e científica, sensíveis aos temas atuais do humanismo e à genuína identificação da experiência religiosa, no contexto atual.

 

A fragmentação do trabalho intelectual, também dentro da teologia, especialmente quando ela encoraja o impasse de polêmicas de baixo perfil, deve ser arquivada com decisão. E a alegria de uma comunidade científica habitada pelo espírito de uma comunidade fraterna, em vista do bem comum da vida compartilhada, é o lugar certo para se apaixonar e debater sobre o melhor modo de honrar a tarefa de orientar o pensamento do humano que é comum. Pensamento desgastado até demais pelos espíritos tristes do individualismo planetário e pela desmoralização resignada da comunidade humana que quer voltar a viver. Começando por aquela à qual foi confiado o ônus e a honra de dar testemunho do amor que nos restitui à esperança e à .

 

+Vincenzo Paglia

 

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