08 Mai 2021
As autoridades italianas publicaram as escutas telefônicas de grampos feitos do padre eritreu Mussie Zerai e de jornalistas que relataram o trabalho de resgate no Mediterrâneo e os centros de detenção na Líbia.
A reportagem é de Victoria Isabel Cardiel, publicada por Alfa & Omega, 04-05-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ambos dão voz ao que normalmente são apenas números. Ambos defendem os direitos dos imigrantes na rota mais mortal do mundo: o Mediterrâneo. Ambos sofreram ameaças de morte por seu trabalho. Ambos foram grampeados pelo Ministério Público italiano. O padre eritreu Mussie Zerai e o jornalista Nello Scavo, do Avvenire, se conheceram em uma viagem de negócios a centros de detenção na Líbia em 2009. O primeiro atuava como tradutor para o segundo, que documentava as atrocidades que essas pessoas sofrem no que o Papa Francisco definiu como “modernos campos de concentração”: tortura, humilhação, estupro de mulheres e crianças... Dom Barcone, como é conhecido na Itália, deixou seu número de telefone escrito nas paredes daquele inferno. Desde então, ele não parou de receber ligações desesperadas de barcos à deriva. “Contato com Malta ou Itália, os dois países mais próximos; com organismos internacionais, como a ACNUR, ou mesmo associações da Igreja Católica que os possam ajudar”, garante.
No início, eu atendia essas ligações sem ajuda no meio da noite. Ele então canalizou ajuda e resgate por meio da Fundação Habeshia, com a qual salvou mais de 150 mil pessoas desde 2011. Seu trabalho humanitário custou-lhe uma firme acusação de favorecer a imigração clandestina por um tribunal na Sicília. “A União Europeia não está interessada nos direitos dessas pessoas”, exclama ele após lembrar as 130 pessoas que morreram na sexta-feira passada em um naufrágio. Eles haviam navegado da Líbia com ondas de até seis metros. Uma tragédia que poderia ter sido evitada. O Alarm Phone, serviço telefônico de auxílio a imigrantes, vinha alertando há mais de 48 horas que as embarcações nas quais viajavam estavam em grande dificuldade por conta da tempestade. “As autoridades sabiam disso; o avião da Frontex os viu e ninguém interveio. Falar sobre direitos humanos na Europa hoje é hipocrisia”, diz ele.
Por fim, o processo judicial de Zerai foi encerrado por falta de provas em 2017. Mas as ligações que chegaram a seu telefone agora foram tornadas públicas na Itália.
As autoridades italianas grampearam o padre eritreu e jornalistas que relatavam o trabalho de resgate no Mediterrâneo e os centros de detenção na Líbia, como parte de uma investigação aberta pelo Ministério Público da Sicília para esclarecer se eles haviam contribuído para o tráfico ilegal de pessoas. A lei exige a destruição de escutas telefônicas se elas não forem importantes para a investigação, mas “as conversas que não foram úteis foram transcritas para a ata. Eu me pergunto por que depois de quatro anos eles os preservaram e por que não foram destruídos”, diz ele. O Ministério Público as mantém desde 2017, quando abriu o processo com centenas de páginas de escutas telefônicas sobre fontes, contatos, depoimentos e relações pessoais que foram divulgados apesar de serem irrelevantes para a investigação e com o caso arquivado. Nas convocatórias aparece, por exemplo, o senador Luigi Manconi, que na época era presidente da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos da Itália, com quem o padre fala sobre a situação de uma centena de imigrantes eritreus que ocuparam um prédio em Roma. “A polícia os despejou com mangueiras de água fria. É o que é usado para limpar o lixo das ruas. E naquele edifício havia mulheres e crianças, muitas famílias, idosos, deficientes...”, recorda. Em sua opinião, as investigações contra ele são um exemplo de “criminalização da solidariedade” que coloca qualquer pessoa que se encarregue deste trabalho humanitário sob a lupa da suspeita.
“Suas vidas estão em perigo”
Também são vários os jornalistas que foram vigiados. Nas conversas também aparece Nello Scavo. “Falávamos das violações de direitos humanos que são cometidas na Líbia. Porém os investigadores passaram isso por cima. Interessava-lhes sobretudo como havia conseguido essas provas”, assegura. O jornalista há anos denuncia os mau tratos e os assassinatos que se cometem impunemente nos campos da Líbia, pagos com dinheiro da União Europeia. Em parte, isso foi exposto graças ao material fotográfico e às gravações que chegaram desde a Líbia até o padre eritreu, sua fonte. “As fontes devem ser sempre protegidas, mas a divulgaram. Isso é gravíssimo. A informação que Zerai recebeu foi através de seus contatos na Líbia, cujas vidas agora estão em perigo”. Ainda, há outro risco. “As fontes agora tem medo de falar com a imprensa. E isso é um problema para a democracia”, relata o jornalista italiano, que desde 2019 vive sob proteção policial por ter desvelado um encontro secreto mantido em 2017 pelas autoridades italiana e o atual comandante da guarda costeira líbio, Abdul Rahman Milad Bija, considerado pela ONU um dos contrabandistas de pessoas mais importante do norte do Mediterrâneo. O diagnóstico do jornalista de Avvenire é claro: “Informar da imigração e do que ocorre na Líbia é buscar problemas”.
Leia mais
- "O círculo se fecha, é guerra aos migrantes”, constata Padre Mussie Zerai
- Tirem as mãos de padre Zerai, anjo da guarda dos refugiados africanos
- “Eu sempre agi de acordo com a Guarda Costeira.” Entrevista com o Pe. Mussie Zerai
- Uma blitz nos campos de concentração da Líbia
- “Eles me deram uma versão ‘destilada’. Isso acontece hoje com a Líbia: nos dão uma versão ‘destilada’”, afirma o Papa
- À deriva há cinco dias, refugiados fogem da Líbia. 47 salvos pelo navio Ocean Viking
- "Cooperação da UE com a Líbia é escândalo"
- Alarm Phone: “Oitenta migrantes fugindo da Líbia desaparecidos após o naufrágio na costa da Tunísia”
- Refugiados. "Eu tratei 300 mil pessoas, e eu digo que a Líbia é um porto de morte"
- Hollerich em missão a Lesbos: "Que a Europa não se diga cristã se não se abrir aos pobres e aos migrantes"
- “Sonho uma Europa onde ser migrante não seja delito”, afirma Francisco
- A Europa se cala diante do drama dos imigrantes
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Falar de direitos humanos hoje na Europa é hipocrisia”, afirma o padre Mussie Zerai - Instituto Humanitas Unisinos - IHU