O que deu errado em Roma em relação às bênçãos das uniões homossexuais?

Foto: Pixabay

03 Mai 2021

 

O alto custo da decisão do Vaticano contra as bênçãos de uniões entre pessoas do mesmo sexo foi exposto em termos severos pelo bispo de Antuérpia, na Bélgica. Durante um debate promovido pela The Tablet, o bispo Johan Bonny explicou que, em sua diocese, um grande número de jovens cancelou suas certidões de batismo por causa da decisão. Em pleno coração tradicionalmente católico das dioceses flamengas da Bélgica, ele acredita que o número de pessoas desafiliadas da Igreja foi de cerca de 2.000. É provável que fatos semelhantes já estejam ocorrendo em outros lugares.

A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 30-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Então, o que pode ser feito para resgatar o rebanho que está indo embora? Durante um webinar organizado pela The Tablet no dia 28 de abril, o bispo Bonny e um painel de teólogos exploraram como a Igreja pode incluir e reconhecer os casais do mesmo sexo e os católicos e católicas LGBT.

No entanto, essa questão é mais profunda do que se é possível ou não abençoar as uniões gays. Em vez disso, ela levanta questões eclesiológicas profundamente importantes, incluindo o modo como viver a “catolicidade” da Igreja de maneira diferente.

 

Tomada de decisão sobre temas controversos

Três áreas de discussão estão emergindo como cruciais para o debate.

 

Primeiro, trata-se do processo que a Igreja adota ao tomar decisões sobre temas controversos. Agora, é crucial que o tempo e o espaço sejam assumidos para o discernimento, em vez de Roma entrar em pânico e emitir julgamentos prematuros. É aqui que entra a sinodalidade, que o Papa Francisco deseja ver e em todos os níveis da Igreja.

Algumas vozes argumentam que processos sinodais como o da Alemanha resultarão em “cismas”, porque levarão as Igrejas locais a tomar posições divergentes sobre questões relacionadas à sexualidade ou que desafiem o ensino oficial.

Mas o bispo Bonny, que já trabalhou no Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos do Vaticano, apontou que a ameaça à unidade está em outra direção.

“Você não pode ter uma verdadeira unidade ou comunhão a menos que as Igrejas locais possam encontrar as melhores soluções para seus problemas”, disse ele durante o webinar. “Existem linhas básicas, isso é claro, mas, para muitas questões como o ministério na Igreja ou a teologia moral, precisamos de soluções mais diferenciadas, pois as questões não são as mesmas.”

Sobre as bênçãos das uniões entre pessoas do mesmo sexo, Bonny disse que teria havido “um resultado diferente” se Roma tivesse convidado bispos de um grupo de países onde o casamento gay é lei para “sentarem juntos e fazerem uma proposta comum”.

E prosseguiu: “Poderíamos ter ido a Roma para discutir o assunto com o papa, não com todos os cardeais, mas com o próprio papa, para encontrar a melhor saída possível, de acordo com o Evangelho e com aquilo que Jesus está nos ensinando, no interesse geral da Igreja e da salus animarum [o bem das almas], Isso seria uma verdadeira colegialidade”.

Isso requer um papel diferente para Roma e uma relação reimaginada entre o papado e as Igrejas locais . Apenas repetir fórmulas antigas para questões pastorais complexas é inadequado. O documento da Congregação para a Doutrina da Fé, que disse que as bênçãos de uniões entre pessoas do mesmo sexo são impossíveis porque Deus “não abençoa nem pode abençoar o pecado”, foi publicado sem uma consulta aos bispos ou aos dicastérios vaticanos relevantes.

Em contraste, a Amoris Laetitia, o ensino do papa sobre a vida familiar, surgiu após duas assembleias sinodais sobre a família. A sinodalidade oferece meios para que um julgamento discernido seja alcançado. Ao invés de emitir condenações, a Amoris laetitia se foca no acompanhamento, na integração e no discernimento, e nos elementos positivos das chamadas relações “irregulares”.

O Pe. James Alison, outro painelista do webinar, vê nisso o magistério da Igreja que caminha ao lado das pessoas. O processo de aprendizagem, segundo ele, ocorre “lateralmente” e por meio do “diálogo”. Ele explicou: “É pelos lados que aprendemos quem somos. É a partir do outro e de quem ele é”.

 

Atualização do ensino católico sobre homossexualidade

A segunda área é como o ensino católico sobre a homossexualidade pode ser atualizado. O Pe. Alison, que é abertamente gay, argumentou que o obstáculo no ministério da Igreja aos católicos e católicas LGBT continua sendo a definição do Catecismo de que a orientação ao mesmo sexo “é objetivamente desordenada” e que os atos homossexuais são “intrinsecamente desordenados”.

Ele acrescentou: “Até que alguém deixe de nos tratar como uma definição negativa do ato heterossexual, nós nunca vamos seguir em frente. Essa é a raiz disso”. Uma proposta de emenda ao Catecismo poderia ser a mudança da expressão “objetivamente desordenado” por “diferentemente ordenado”, algo que o padre jesuíta James Martin pediu.

O bispo Bonny destacou que o Catecismo pode ser atualizado, acrescentando: “Acho que há parágrafos que, de uma forma muito razoável e colegial, poderiam ser modificados pelo bem da Igreja e pelo trabalho pastoral que temos que fazer”.

A teóloga moral Lisa Sowle Cahill, outra painelista, argumentou que é mais provável que a mudança venha de “baixo para cima” na Igreja, e menos de cima para baixo.

“Eu acho que é um erro continuar tentando trabalhar a realidade dos casais do mesmo sexo ou de gays e lésbicas dentro dessa terminologia mais antiga, que está tão preocupada em amarrar todos em definições muito cuidadosas, de modo que saibamos exatamente onde colocar cada um e como estabelecer limites ao redor deles”, disse ela.

“A Igreja Católica nunca muda o seu ensino rejeitando ou revisando aquilo que é do passado. Em vez disso, permitimos que ele tenha uma morte decente.”

A professora Cahill, que leciona no Boston College, Massachusetts, disse que o papa está oferecendo uma moral de “cuidado, compaixão e proximidade” baseada no Evangelho, que deveria estar no centro das tomadas de decisão. A Amoris laetitia, destacou ela, se baseia no ensino de São Tomás de Aquino sobre a aplicação da lei natural e a maneira como ela leva em consideração diferentes fatores, mesmo “naquilo que é objetivamente verdadeiro e correto”.

A professora Cahill destacou que a Amoris laetitia afirma que até mesmo os casais em situação “irregular” não estão privados da “graça santificadora”.

 

Modelos de Igreja

A terceira área é qual modelo de Igreja as pessoas estão usando. O bispo Bonny disse que gosta de ver a Igreja como uma família, vendo o seu papel como pai ou avô. A responsabilidade dele, afirmou, é fazer com que os católicos e católicas LGBT “se sintam parte da família que é a Igreja, não apenas os acolhendo, mas também lhes dando uma responsabilidade”. Ele também recomendou que os bispos reservem um tempo para se encontrar com casais do mesmo sexo em suas casas.

“Convide o seu bispo para um jantar em sua casa e converse com ele. Será uma conversão para ele”, foi o seu conselho aos católicos gays.

“Uma vez, eu fui convidado por duas mulheres casadas no civil com dois filhos. Naquela noite, eu mudei as minhas ideias sobre o que significa viver juntos como um casal homossexual, mesmo tendo filhos. Eu posso ter muitas perguntas, mas isso mudou as minhas ideias.”

Se a Igreja é uma família, então ela não pode adotar as características de uma seita. As seitas tendem a se ver como um clube fechado e estão dispostas a excluir ou a expulsar as pessoas que não se conformam. Se a Igreja é uma família, então sempre será angustiante ouvir falar de pessoas que vão embora.

A Ir. Gemma Simmonds, do Instituto Margaret Beaufort em Cambridge, disse que a Igreja não pode operar um sistema de “você não tem o ingresso, por isso não é bem-vindo”.

“Estamos perdendo pessoas, estamos sangrando pessoas, que descobrem que a realidade em que vivem não encontra mais uma resposta dentro da Igreja em termos de aceitação e bênção”, disse ela. Ela indicou o versículo de 1João 4,16 como um encorajamento para os casais do mesmo sexo: “Deus é amor: quem vive no amor vive em Deus, e Deus vive nele”.

O escritório doutrinal do Vaticano pode ter pensado que emitir uma decisão contra as bênçãos das uniões entre pessoas do mesmo sexo seria o suficiente para encerrar uma discussão mais aprofundada sobre o assunto. Na verdade, isso teve o efeito contrário, gerando ainda mais debates que vão ao cerne do que significa ser Igreja.

 

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