A Economia de Francisco e Clara como mutirão pela vida

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

14 Abril 2021

 

“O desafio de enfrentar a doutrina da competição, acumulação e consumismo está na recomposição de corpos territoriais que conscientizem uma ação revolucionária. O Mutirão pela Vida por Terra, Teto e Trabalho proposto pela 6ª Semana Social Brasileira traz esse elo aos desafios econômicos. A solidariedade é construída pelas engrenagens da coletividade e da cultura do encontro que hoje se encontra no chamado global para realmarmos a economia a partir do mutirão pela vida.”, escreve Eduardo Brasileiro, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

Eduardo Brasileiro é educador na Zona Leste de São Paulo, sociólogo (FESPSP) e consultor do Instituto Cultiva. Selecionado para o evento Economia de Francisco, é membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e membro da Coordenação Executiva da 6ª Semana Social Brasileira.

 

Eis o artigo.

 

No Brasil a Economia de Francisco e Clara e a 6ª Semana Social Brasileira se encontram com um objetivo programático: Novas economias surgem no chão da vida e da luta das pessoas por meio de mutirão.

O Papa Francisco abre as portas do século XXI com uma proposta de conversão integral: Uma ecologia integral e uma economia anticapitalista está na seiva de suas reflexões na encíclica Laudato Si’ e na Fratelli Tutti. Ele, por mais que dialogue com grandes pensadores desse século, em busca de reflexões pertinentes diante de inúmeras crises que nos assolam, crê firmemente no que viu, ouviu e pensou diante dos imigrantes de Lampedusa - Itália (2013), dos movimentos populares em Santa Cruz de La Sierra-Bolívia (2015), e com os povos indígenas em Puerto Maldonado - Peru (2018). Esses encontros marcados pela cultura do encontro, são filhos do mutirão, porque gestam o povo dono de sua história. Tateiam o ensejo de povos do mundo inteiro numa “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda” [1].

Acertadamente, Francisco quer reunir povos de todo o planeta e com eles construir um projeto que abarque jovens ativistas de movimentos populares, cientistas e empreendedores. Com esses, numa pressão imediata de mudança de processos econômicos, sociais e políticos, também ir criando condições concretas ao reivindicar o imaginário popular do que foi aclamado pelo Fórum Social Mundial de 2001 em Porto Alegre (Brasil): Um outro mundo é possível!

No Brasil, recebendo os ecos do chamado do Papa Francisco, como Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara afirmamos: “Nossa proposta de uma economia baseada no feminino, no cíclico, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nos modos e nas formas de produção linear, masculinizada, que impôs uma visão de progresso baseada na extração. Assumimos uma compreensão circular dos processos produtivos. Também expressa um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir” (2).

Clara de Assis entra no mutirão brasileiro de novas economias a partir de uma inflexão contestatória: uma proposta na qual feminino e masculino caminham necessariamente lado a lado, sem primazia. Rejeitando, portanto, a perspectiva patriarcal ligada à economia marcadamente materialista, produtivista e extrativista. Essa perspectiva marca a passagem da acumulação para a cooperação, da exploração à sustentabilidade, do egoísmo à generosidade.

A pandemia da covid-19 desnudou mesmo para quem não queria ver todas as agudas desigualdades sociais existentes no país. Muito embora ela afetou toda a população, sem distinção de classe, raça e gênero, é muito diferente a intensidade com que a doença chegou nas periferias em oposição aos bairros ricos. Fruto de efeitos maléficos de privatização, sucateamento das políticas públicas que há 30 anos tem sido imposta pelo capitalismo neoliberal.

A política de austeridade imposta pelo neoliberalismo erigiu uma grande doutrina: A partir do esvaziamento do Estado (nosso mediador), reduzindo política e democracia ao mercado financeiro. Impondo o domínio de uma narrativa tecnicista e meritocrática, não enfrentando os problemas estruturais do Brasil, como o racismo, machismo, desigualdade de renda e espacial, para uma política sufocante de precarização da vida. Iniciou uma necropolítica por meio da redução dos investimentos públicos, - portanto daquilo que nos é comum a todos – e aprofundou a distorção dos organismos de participação e consulta.

O desafio de enfrentar a doutrina da competição, acumulação e consumismo está na recomposição de corpos territoriais que conscientizem uma ação revolucionária. O Mutirão pela Vida por Terra, Teto e Trabalho proposto pela 6ª Semana Social Brasileira traz esse elo aos desafios econômicos. A solidariedade é construída pelas engrenagens da coletividade e da cultura do encontro que hoje se encontra no chamado global para realmarmos a economia a partir do mutirão pela vida.

Realmar a economia corresponde a centrar esforços em uma crescente autodependência comunitária. Pois, a partir de um grau de desigualdade, não é possível mais governar. Portanto, cabe reconhecer uma nova arquitetura econômica trazida debaixo, dos mutirões onde se delimita as dimensões locais, os traços autônomos de economias regionalizadas, convergindo em bancos comunitários e em economia solidária. Nas palavras de Jurgen Schuldt: “dissociação seletiva e temporal do mercado mundial”, retomando a soberania alimentar, o controle da moeda pelos Bancos de Desenvolvimento Comunitário, as Cooperativas Solidárias retomando o trabalho, como alguns exemplos.

Realmar a economia está em superar o modelo de desenvolvimento. Reconhecer que o problema não é da economia, e sim de organização da vida econômica. E, portanto, estabelecer a economia de suficiência, onde Francisco e Clara de Assis e os povos amazônicos e andinos têm muito a nos ensinar, freando a lógica de eficiência que se desdobra na acumulação global materialista. Nas palavras do equatoriano Alberto Acosta, presidente de Assembleia Constituinte que reconhece no Equador os direitos da mãe terra, é “[...]crer no autocentramento como desenvolvimento das força produtivas endógenas, incluindo recursos produtivos locais e os correspondentes controle da acumulação e centramento dos padrões de consumo. Tudo deve ser acompanhado de um processo político de participação plena, de tal maneira que se construam contrapoderes com crescente níveis de influência no âmbito local” (3). Para economistas ortodoxos é importante ressaltar que não se trata de “substituições de importações”, e sim, uma essência se destaca: Um mercado interno que capacita o viver com o nosso e para os nossos.

Realmar por uma economia da proximidade. Vandana Shiva, a indiana, ecofeminista, fundadora do movimento Navdanya e uma das parceiras do Papa Francisco nesse processo de novas economias, ensina que ao longo de três décadas, as periferias do mundo provaram, a partir do mutirão que os sistemas de produção de policultivos locais e ecológicos são capazes de prover alimento à população sem empobrecer o solo, poluir a água e danificar a biodiversidade. Shiva realma a economia na percepção de dialogar com a terra, compreendendo seus processos é o fio condutor para superação da indústria do remédio e da doença, em busca da saúde integral.

Urge realmar a organização popular que no aspecto político está por repensar profundamente um processo autodependente e participativo, criando fundamentos para uma ordem que se concilia economias solidárias e sociedades democráticas na prática dos bairros, comunidades, entidades, amarrando um projeto coletivo de várias redes de solidariedade. Para isso, nasce no Brasil o projeto das Casas de Francisco e Clara espaço de organização coletiva, de territorialização das práticas emancipadoras, e possui também essa necessidade da economia vivida na dimensão de uma espiritualidade integral, afinal, a espiritualidade de Francisco e Clara não é etérea, abstrata, mas encarnada na vida e na história, possuindo uma capacidade de viver com o divino em toda criatura exigindo uma economia a partir de todos.

Realmar a economia com o mutirão é entender que não há receita pronta, e somente com o encontro e participação de todos as pessoas que acreditam em outros mundos possíveis é possível tatear essas possibilidades. Há uma geografia submersa no Brasil de povos gestando a mudança. Esse fator denota a importância de levar a saber as inúmeras iniciativas globais de projetos alternativos, que nos ungem de esperança.

A solidariedade como nova economia toma destaque no cenário da pandemia que nos assola em 2020. Possuem, potencialmente, espaços para nova resistência e enfrentamento às ideias autoritárias ressurgidas com ímpeto nos últimos tempos. A solidariedade possui potências econômicas absurdamente poderosas ao exigir para todas as pessoas terra, teto e trabalho.

Esses gestos introduzem valores na sociedade, processo que será acompanhado certamente, por uma nova forma de organizar a economia. A Economia de Francisco e Clara é filha do mutirão, das periferias urbanas e rurais desse país, corre nas veias dos povos, sacramenta-se na história quando dois ou três sonham, concretizam e partilham. Vida longa ao mutirão.

 

Notas

(1) FRANCISCO. Carta convite para o Encontro Mundial Economia de Francisco. Roma, maio de 2019.

(2) Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara. Carta da delegação brasileira ao encontro em Assis, Itália. Novembro de 2019:

(3) ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Autonomia Literária. São Paulo. 2016

 

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