Estamos precisando de uma nova economia

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

13 Março 2021

 

“A convergência das crises evidenciada com força pela pandemia está nos levando a repensar o próprio conceito de economia. Em vez de 'leis' às quais deveríamos nos submeter, trata-se de pactos que devem servir ao bem-estar das populações e à sustentabilidade ambiental. São escolhas que dependem de nós, visando uma sociedade economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Temos de retomar o controle, depois de 4 décadas de austeridade, privatização e caos financeiro”, escreve Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia e professor da PUC-SP e da Umesp, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

O Prof. Ladislau Dowbor completou 80 anos na última sexta-feira (12/3/2021), e esta publicação é uma homenagem à sua pessoa, bem como agradecimento por sua obra e atuação tão profícuas e inspiradoras. O artigo também foi publicado por Jornal dos Economistas do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro e no site dowbor.org.

A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.

 

Eis o artigo.

 

Já muito antes da pandemia, com a convergências das crises ambiental, social, política e econômica, a busca de um novo pacto pelo desenvolvimento estava se generalizando. Aqui apresentamos alguns princípios que estão norteando a discussão.

A visão de que a “ciência econômica” é uma ciência que estuda “leis” que regem os mecanismos da economia, é enganador. Trata-se de regras do jogo que a sociedade adota ou rejeita, ou vai adequando à medida que o mundo se transforma. Nesse sentido, trata-se de mais uma dimensão das ciências sociais, sujeita a todas as variações políticas e culturais. Justificar a desigualdade, por exemplo, ou as fortunas de intermediários financeiros, como sendo resultado de inevitáveis leis econômicas, constitui uma fraude científica. O New Deal de Roosevelt, o Welfare State do pós-guerra, constituíram pactos que a sociedade adotou. Trata-se de escolhas da sociedade. Podemos perfeitamente democratizar a sociedade em termos econômicos.

O conceito de crescimento é muito estreito. As regras do jogo e os pactos sociais devem ser estabelecidos no sentido de se assegurar uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável, o chamado “triple bottom-line” que define os rumos. Detalhado em diversas épocas como Nosso Futuro Comum, Metas do Milênio, ou Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030), esse triplo objetivo econômico, social e ambiental constitui a base sobre a qual devem ser desenhadas as regras do jogo que nos viabilizem como humanidade e como planeta. Preconizar a liberdade é essencial, mas liberdade sem ética, com atores sociais muito desiguais, leva-nos às tragédias que hoje constatamos. A ausência ou fragilidade das regras gera o caos.

Os objetivos econômicos, sociais e ambientais não podem ser dissociados dos mecanismos de gestão. A própria democracia política não funciona se não houver uma razoável democracia econômica. Hoje as corporações se apropriaram dos mecanismos de concorrência, dos processos políticos, e criaram inclusive sistemas jurídicos paralelos. A comunicação social, e o tão vital acesso à informação, são hoje controlados por corporações de formação de opinião pública. Uma sociedade que funcione precisa resgatar o equilíbrio entre o Estado, as empresas e a sociedade civil, tripé básico da gestão, tão importante quanto o tripé de objetivos. As privatizações, que consistem na apropriação privada de bens públicos, apenas aprofundam o desequilíbrio. O poder descontrolado dos interesses corporativos desarticula o sistema. A busca de maximização individual de vantagens, numa sociedade desigual, leva à barbárie.

As absurdas simplificações das teorias econômicas herdadas, baseadas num personagem fictício que buscaria racionalmente a maximização de vantagens individuais, divorciaram a economia dos objetivos de melhoria do bem-estar da sociedade. O vale-tudo baseado na liberdade de qualquer pessoa, grupo ou corporação se apropriarem do que possam conseguir, conquanto estejam dentro da lei, deforma os valores básicos do convívio social, ao transformar a capacidade de arrancar mais riqueza em critério social de sucesso. A economia precisa voltar a ser organizada em função do ser humano realmente existente, com suas dimensões sociais e sua riqueza de motivações.

Um princípio ético básico é que todos devem ter acesso ao necessário. O PIB mundial de 2019 foi de US$85 trilhões, para uma população de 7,8 bilhões de pessoas, o que significa que produzimos, como ordem de grandeza, 18 mil reais de bens e serviços por mês e por família de 4 pessoas. O que produzimos no mundo permite assegurar, com uma moderada redução da desigualdade, vida digna e confortável para todos. O equivalente para o Brasil, com um PIB de 7,3 trilhões de reais e uma população de 212 milhões, seria de 11 mil reais. Nosso desafio não é produzir mais, mas distribuir de maneira equilibrada. Entre março e julho de 2020, em plena pandemia, em 4 meses, 42 bilionários (em dólares) brasileiros aumentaram as suas fortunas em 180 bilhões de reais, o equivalente a 6 anos de Bolsa Família. São isentos de impostos. A economia se tornou sistemicamente disfuncional: é a legalidade divorciada do que é legítimo.

A lógica básica do sistema capitalista de deslocou em profundidade, na sua base técnica. O empresário tradicional, corretamente denunciado por Marx por explorar os trabalhadores, pelo menos produzia bens e serviços úteis para a sociedade, gerava empregos e pagava impostos. O sistema financeiro fomentava a dinâmica ao canalizar as poupanças para financiar o consumo das famílias e os investimentos produtivos. Os impostos gerados permitiam financiar o funcionamento do Estado, e em particular as infraestruturas, que melhoram a produtividade das empresas, e as políticas sociais que asseguravam, com o Estado de bem-estar, o acesso aos bens de consumo coletivo como saúde, educação, segurança e semelhantes. O sistema, na sua fase de economia de bem-estar, apesar das tensões, funcionava.

Com a financeirização as políticas de moeda e crédito se transformaram em mecanismos de apropriação do excedente produzido pela sociedade. O dinheiro impresso pelos governos representa menos de 10% da liquidez em circulação: é hoje essencialmente emitido por bancos, sob forma de sinais magnéticos. A apropriação corporativa das políticas de moeda e crédito e a facilidade de manejo e transferência, inclusive internacional, da moeda imaterial, aumentaram de forma exponencial a apropriação do excedente por meio endividamento das famílias, das empresas e dos Estados. O rentismo dos grupos financeiros se tornou um poderoso mecanismo de apropriação do produto social por agentes improdutivos.

Por sua vez, a separação entre quem administra a empresa, e os acionistas que são proprietários – detentores de ações e de diversos tipos de papéis que trocam diariamente de dono segundo as flutuações dos mercados – colocou no centro do processo decisório empresarial o objetivo de maximizar o rendimento dos acionistas, deixando para segundo plano os interesses ambientais, sociais, e inclusive da expansão da própria empresa. Maximizar o rendimento das ações em geral significa também aumentar a remuneração e os bônus dos próprios administradores. O lucro e reinvestimento produtivos foram em grande parte substituídos pelas aplicações financeiras, gerando dividendos e o rentismo correspondente.

O impressionante travamento econômico planetário numa época de expansão muito acelerada de tecnologias, que melhoram a produtividade, resulta dessa apropriação do excedente por agentes econômicos não produtivos, tanto pelos mecanismos do endividamento como pelos dividendos pagos aos acionistas. É o que tem sido qualificado de processo de financeirização, que gera por sua vez o capitalismo extrativo (extractive capitalism). Ao se referir à dominação do sistema financeiro sobre os processos produtivos, os americanos comentam que hoje “o rabo abana o cachorro”. O neoliberalismo constitui, nas palavras de Joseph Stiglitz, um rotundo fracasso.

Os caminhos são conhecidos, bastando olhar as experiências que funcionam, e os potenciais das novas tecnologias. Ao orientar os recursos para a base da sociedade, dinamiza-se o consumo das famílias, o que estimula as atividades empresariais, que trabalham no Brasil com capacidade ociosa de 30%, justamente por falta de demanda, e por juros abusivos. O aumento do consumo das famílias gera receita para o Estado (40%, por imposto sobre o consumo), e a dinamização das atividades empresariais também gera receita para o Estado (impostos sobre os processos produtivos), resultando em superávit. As receitas mais elevadas do Estado permitem financiar as políticas sociais (educação, saúde, segurança etc.), essenciais para o bem-estar das famílias, e infraestruturas, que melhoram as atividades das empresas. Neste ciclo virtuoso, as contas fecham.

Não há nada de novo aqui em termos de economia aplicada, e o sistema funciona em numerosos países, com sistema tão diferentes como o Canadá, a China, a Coreia do Sul ou o Vietnã. A economia que funciona é a que organiza os seus recursos, financeiros, tecnológicos, administrativos – e em particular a sua mão de obra – em função do bem-estar da sociedade. A farsa do neoliberalismo, do Estado mínimo, da privatização, do déficit público, e do merecimento dos rentistas financeiros é apenas isso: uma farsa. A pandemia apenas escancarou o que já estava se tornando óbvio.

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