Atualidades sobre o Padre Murray, teólogo da liberdade religiosa, para a Igreja e para o pensamento democrático. Entrevista com Stefano Ceccanti

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19 Janeiro 2021

A vitória de Joe Biden, que tomará posse como Presidente dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro próximo, levou à redescoberta do pensamento democrático católico estadunidense. Um dos padres contemporâneos dessa linha de pensamento é o padre John Courteney Murray, jesuíta amigo de Paulo VI, Luigi Sturzo e do filósofo católico francês Jacques Maritain.

A entrevista é de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 18-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Murray, mediante sua atuação na Pax Romana, a organização internacional de estudantes universitários católicos, era bem conhecido internacionalmente. Sua influência se estendeu, graças a Paulo VI, também ao Concílio Vaticano II (em particular no documento Dignitatis Humanae, que trata da liberdade religiosa).

E é significativo que, às vésperas da posse do segundo presidente católico dos EUA, a editora Morcelliana republique uma de suas obras. De fato, chega hoje às livrarias o livro de John Courtney Murray, Noi crediamo in queste verità. Riflessioni cattoliche sul “principio americano”(Nós acreditamos nessas verdades. Reflexões católicas sobre o “princípio estadunidense”, em tradução livre, Morcelliana, 2021), editado e com introdução de Stefano Ceccanti. Trata-se da reedição da primeira tradução italiana (1965, de Carlo De Roberto) do texto original, We Hold These Truths: Catholic Reflections on the American Proposition (1960). Nesta entrevista com Stefano Ceccanti, deputado do Partido Democrata e constitucionalista, vamos relembrar seu pensamento.

Eis a entrevista.

Sr. Ceccanti, estamos há dois dias do juramento de Joe Biden como Presidente dos Estados Unidos e o senhor, às vésperas deste importante evento, é editor, para a editora Morcelliana, de um importante livro de John Courtney Murray, o grande teólogo jesuíta e constitucionalista, estadunidense, We hold these Truths (Nós acreditamos nessas verdades). Nós sabemos que o livro foi lançado, no início dos anos 1960, na véspera da eleição de John Fitzgerald Kennedy como presidente dos EUA. Já se passaram 60 anos desde então, por que repropor um texto como este?

Estamos às vésperas da posse do segundo presidente católico da história dos EUA, é está se propondo um interessante entrelaçamento entre religião e política. Obviamente não da mesma forma, mas acho que a provocação possa resultar interessante. Na época, o sentido do texto era bidirecional. Para a sociedade estadunidense, contra os vários preconceitos protestantes, era uma questão de demonstrar que o catolicismo era aliado da democracia, que essa era a sua opção preferencial e natural e que os leigos católicos engajados na política assumiam uma responsabilidade própria, não dependiam mecanicamente do clero. O texto deve, portanto, ser lido em conjunto com o discurso de Kennedy em Houston aos pastores protestantes, amplamente influenciados por Murray.

Em relação à Igreja tratava-se de trabalhar para que a liberdade religiosa fosse assumida como um bem e não como um mal a ser tolerado. A visão tradicional, expressa com particular intransigência pelo cardeal Ottaviani, era o fruto de um embate não com a modernidade, mas com uma das modernidades, a jacobina, que se apresentava como uma religião alternativa secular. Os EUA com sua visão de uma amizade, mesmo na distinção, entre religiões e democracia, de uma autolimitação do Estado que não recorria à coerção para limitar o pluralismo, era um possível modelo positivo.

Era uma questão de arquivar as simpatias por regimes confessionais-autoritários como aquele espanhol, valorizando o que realmente havia acontecido com a candidatura Kennedy e também, em outros aspectos, com as democracias cristãs europeias. Hoje, o desafio é diferente, como também explica Massimo Faggioli no livro que sai simultaneamente para a mesma editora, "Joe Biden e o catolicismo nos Estados Unidos" [em tradução livre], é sempre bidirecional, mas ambos os contextos mudaram.

Há um conflito interno no catolicismo estadunidense: ao lado da vertente democrática de que Biden é expressão, que se move na onda longa de Murray, cresceu uma abordagem neo-intransigente mais próxima de Maurras e Orban, que desvaloriza as aquisições conciliares e se baseia em uma versão radicalizada pela retórica dos princípios não negociáveis dos dois pontificados anteriores, vivendo o pluralismo como um mal e não como um recurso a ser superado com uma hegemonia confessional.

E além disso há, conectada, a nova radicalização que se expressou com o trumpismo a que aquele neo-intransigentismo deu cobertura, que no entanto foi derrotada por Biden, poderíamos dizer com aquela ideia de Constituição e de uma política que vê o apelo às regras comuns como aceitação de artigos de paz e não como elementos de crença partidários nos quais Murray insiste.

É um texto que trata, entre outras coisas, da primeira emenda à Constituição dos EUA (que garante pluralismo religioso). Então se coloca na vanguarda da reflexão católica sobre a liberdade religiosa. Nós podemos dizer que a obra de Murray influenciou o Concílio Vaticano II. Até que ponto?

Existe uma influência direta e uma indireta. Aquela direta é conhecida, diz respeito ao papel de Murray como perito conciliar, em conexão com Paulo VI e com Maritain, de quem eu falo na introdução. Mas foi baseada em uma influência indireta, aquela já exercida ajudando Kennedy a desenvolver uma linha cultural coerente e vencedora em 1960. Os bispos estadunidenses com Murray se apresentam ao Concílio como o episcopado da primeira superpotência do mundo em que um católico venceu pela primeira vez.

Conseguem fazer valer sua posição também porque ela venceu primeiro no plano histórico concreto.

Chegamos ao catolicismo estadunidense contemporâneo. Nós sabemos que é um catolicismo dividido, como de resto a sociedade e a política estadunidense. Existe uma parte conservadora que olhou para Trump e seu soberanismo. E existe uma parte mais próxima do Papa Francisco que votou em Biden. O próprio Biden foi obstaculizado por alguns bispos conservadores. Como o senhor acha que Biden se moverá nesse contexto?

Há uma sobreposição quase total entre católicos, bispos em primeiro lugar, opositores do Papa e defensores de Trump. Biden tentará não exacerbar os conflitos e, enquanto isso, como aconteceu no passado em sentido inverso, isso será facilitado pelas nomeações episcopais e cardinalícias de Francisco, que em parte já ocorreram.

Vamos voltar ao Padre Murray. Sabemos que para ele a separação entre o estado e Igreja é um progresso. Qual é o valor da laicidade em Murray?

O termo laicidade, como tal, não é usado explicitamente na América do Norte e alguns autores duvidam (se não mesmo são contrários como, por exemplo, o sociólogo Diotallevi, que é um dos principais estudiosos italianos de Murray, que também animou um intenso debate a favor da abordagem de Kennedy em Houston com o bispo conservador Chaput, uma das pontas de lança do setor altamente crítico ao Papa) que se possa utilizar. Eles usam o termo "liberdade religiosa" que, através das duas cláusulas da Primeira Emenda (proibição de religião de Estado, livre exercício da liberdade) expressa duas verdades complementares, a separação institucional entre estado e Igrejas, mas também o primado da sociedade, animada pelas experiências religiosas, sobre o Estado. A separação, na distinção, é, portanto, amigável e não hostil. Para mim, em essência, é equivalente ao que dizemos na Europa com os termos “laicidade positiva”, para distingui-la da separação hostil e da confusão que ocorre no confessionalismo.

Para Murray, os valores da Constituição dos Estados Unidos são mais aceitáveis para um espírito religioso do que os da Revolução Francesa. É assim mesmo?

Claro, os jacobinos tendem a afirmar uma religião secular, uma religião que não sabe que é e que tende a substituir aquelas anteriores, é uma visão monista.

Por outro lado, a Revolução estadunidense, como explica Murray, é constitutivamente pluralista. A religião cristã não visa uma hegemonia a ser afirmada por meio do Estado, mas respeita e promove o pluralismo no mesmo sentido com que De Gasperi, Adenauer e Schuman promoveram instituições europeias não substitutivas, mas complementares, subsidiárias às nacionais.

Sim, para um duplo perfil. Aquele eclesial porque Murray, que trabalhou na Pax Romana durante a guerra (o movimento internacional da Fuci e do Meic) e que interagiu com os auditores leigos do Concílio, também provenientes da Pax Romana, demonstra maior vitalidade a longo prazo, que, no entanto, deve ser explicitada em novos termos, de um tipo de catolicismo que muitas vezes havia sido visto nas décadas anteriores como superado em favor de formas mais intimistas ou integrista, valorizadas erroneamente como mais eficazes.

No plano civil e político porque, como sempre assinalava Pietro Scopola, devemos desconfiar de sínteses políticas que se baseiam apenas em recursos do catolicismo e da esquerda não se preocupando em acertar as contas também com o pensamento liberal e, portanto, com o que os EUA representam. Corre-se o risco de somar dois fragmentos de culturas nobres e vivas, mas também, tomadas isoladamente, demasiado finalísticas e intransigentes, pouco pragmáticas, com muita ênfase no estado ao invés que na sociedade.

Existem três elementos que devem interagir, incluindo a cultura liberal. Murray nos lembra do valor político de seus amigos Sturzo e Maritain, o Maritain regenerado do período estadunidense, de "Cristianismo e democracia" e de “O Homem e Estado”.

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Atualidades sobre o Padre Murray, teólogo da liberdade religiosa, para a Igreja e para o pensamento democrático. Entrevista com Stefano Ceccanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU