A vida da moeda. Um substrato da violência e um dispositivo de mediação da paz

A crise sanitária global com a pandemia da covid-19 faz um corte diagonal no debate econômico mundial e joga luz sobre as contradições da moeda

Imagem Pxhere Creative Commons

Por: Ricardo Machado | 28 Novembro 2020

Pensar as complexidades da moeda está longe de ser uma tarefa simples. Comecemos, então, por uma alegoria. Imagine dois helicópteros. Um deles tem alto poder de fogo e sua função é decolar e matar pessoas sob a justificativa da lei e da ordem. O outro tem como objetivo decolar e jogar dinheiro lá de cima, de tal modo que todos que estão no chão podem pegar as notas que caem, sem intermediários, e há dinheiro para todo mundo. O paradoxo, no entanto, é que os dois helicópteros nunca podem decolar ao mesmo tempo, para que um voe o outro precisa estar no chão. Assim são as faces da moeda, de um lado capaz de produzir a guerra, de outro capaz de funcionar como mediação pacificadora.

Foi em torno dessas complexidades da discussão que se deu o debate do evento A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança, realizada no dia 26-11-2020, com os professores Giuseppe Cocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, e Bruno Cava, da Uninômade, na programação do IHU ideias. “A dialética dos dois helicópteros ajuda a entender como o auxílio emergencial foi uma distribuição de dinheiro direta para as pessoas, sem intermediários. Isso coincidiu, temporalmente, com a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF de proibir o uso de helicópteros nas ações da polícia na favela. Ou seja, para fazer com o que o helicóptero que distribui dinheiro voe, é necessário que o helicóptero que mata permaneça no chão”, explica Cocco.

 

 

 

Moeda e suas ambiguidades

Para o professor, compreender a ambiguidade da moeda passa por reconhecê-la como um processo de relações sociais em constante transformação. “O permanente conflito que a constitui é que a moeda contém uma violência – uma apropriação, um saque –, mas também um dispositivo de mediação, que é o fato de que podemos pagar e com isso produzir paz. Essa dinâmica do conflito é difícil de lidar, porque a tendência ao encarar o problema é cair em uma das duas contradições”, pontua Cocco.

O título do evento também dá nome ao livro lançado durante a pandemia por Cocco e Cava, A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança (Rio de Janeiro: Mauad X, 2020). Bruno Cava explica que o livro se propõe a ser uma ferramenta para se situar, do ponto de vista histórico e conceitual, na discussão sobre a renda universal. Para tentar escapar das mútuas acusações entre fiscalistas e estatistas-keynesianos, Cava propõe um corte diagonal no debate.

 

 

Bruno Cava, na webconferência do IHU Ideias (Imagem: reprodução YouTube)

 

“O livro é uma tentativa de pensar o contrapé deste debate e a pandemia é um evento deste tipo, um acontecimento do contrapé, que fez com que no instante seguinte ao debate de corte de verbas públicas e preservação do teto de gastos se passasse à maior política de transferência de renda de todos os tempos no Brasil, com um vulto maior que o Bolsa Família”, avalia.

Dogmática em xeque

Ainda sobre essa dimensão dos gastos públicos, Cocco adverte que toda a dogmática econômica de que não pode gastar mais que o teto do Produto Interno Bruto – PIB, a política do teto de gastos, foi posta em xeque do dia para a noite. “Na França, entre abril e maio – onde havia greves contra a reforma da previdência – se criou 500 milhões de euros. Ou seja, essa coisa da dívida pública não poder ultrapassar 100% do PIB foi ignorada”, recorda.

 

Giuseppe Cocco na webconferência do IHU Ideias (Foto: nome do fotógrafo)

 

 

“O que isso mostra, teórica e tecnicamente, é que se pode criar moeda de acordo com o desejo político e que a política de austeridade é uma política de morte. Entre a crise de 2007/2008 e a pandemia percebemos que a dívida deixou de ser problema e se tornou a solução”, complementa Cocco. Embora não saibamos as consequências de longo prazo destas políticas, o que a pandemia mostrou, é que as placas tectônicas da economia se movem, não são estanques.

O que pode a moeda

Para Cava a pergunta fundamental não versa sobre o que é a moeda, mas sobre “o que pode a moeda”. “A questão é: de que maneira a contínua invenção da moeda impacta no pensamento? Nesse sentido, o livro é uma crítica e uma provocação aos três primeiros capítulos de O capital, volume 1, que critica o capitalismo a partir da noção de fetichismo do dinheiro”, pondera Cava. “O livro tem uma simpatia pela perspectiva mercadológica – compreendendo-a como uma multiplicidade intotalizável –, de tal modo que aquilo que interessa não é a mão invisível, mas, justamente, o invisível”, sustenta Cava. “E a multidão, compreendida como essa união de singularidades, é justamente o invisível”, complementa Cocco.

O que fica claro na discussão dos autores é que o debate econômico, especialmente da moeda, está longe de ficar restrito às ortodoxias (neo)liberais e keynesianas. A moeda é, no fundo, correlação de forças e depende das relações sociais que a constituem e a modificam constantemente. Para entender mais a fundo este debate e os outros temas tratados nesta edição do IHU Ideias, assista ao vídeo da conferência na íntegra disponível acima.

 

Giuseppe Cocco

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Publicou, entre outros livros, New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava.

Bruno Cava

Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e  oferece cursos livres presenciais e online, por meio do canal Horazul (Youtube). Autor de vários livros, como "A multidão foi ao deserto" (Annablume, 2013) e, com Alexandre Mendes, "A constituição do comum" (2017).  No próximo semestre, juntamente com Giuseppe Cocco, lançará o livro "A vida da moeda; crédito, imagens, confiança", pela editora Mauad.

 

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