28 Novembro 2020
Na rica monarquia absoluta de Brunei, onde o islã é a religião oficial, “nos é pedido trabalhar sem chamar a atenção”, explica o vigário apostólico. Devido à pandemia, Cornelius Sim não estará no consistório do próximo 28 de novembro, o qual o fará o primeiro cardeal de Brunei.
A entrevista é de María Martínez López, publicada por Alfa&Omega, 26-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis a entrevista.
Seus avós foram os primeiros católicos de sua aldeia. Como receberam a fé?
No século XVI, alguns franciscanos visitaram esta região, porém por um tempo curto. Depois não veio ninguém mais até o século XIX, quando um padre do PIME, começou uma missão aqui. Somente esteve três ou quatro anos, antes de que o destinassem a Hong Kong. E não voltou a ocorrer nada até final dos anos 1920. Por aqueles então que começaram a busca de petróleo e gás, e os missionários pensaram que era uma boa opção se instalar aqui, porque quem viesse necessitaria escolas e as escolas são um bom meio de evangelização. E isso foi o que ocorreu com meus avós: alguns padres da Sociedade Missionária de São José (Mill Hill) instalaram-se em Sabah, que hoje é parte da Malásia, e vinham aqui evangelizar. Meus avós enviaram seus filhos à escola que abriram, e foram os primeiros a serem batizados.
Ao ser criado cardeal, o Papa pede que o ajude no governo da Igreja universal. O que pode contribuir desde Brunei, um país onde a Igreja é tão pequena?
Muitos elementos do Evangelho são assim. O rei Davi, pequeno de sete irmãos, nem sequer estava na lista para escolhido rei. A Virgem era de Nazaré, uma pequena aldeia da qual disse Natanael que não poderia sair nada bom. As vezes existe um preconceito contra os pequenos, porém também eles têm algo a dizer. Em nosso caso, ter aprendido a ser e viver como uma minoria em um país muçulmano e nos adaptar a nosso entorno. Muitas vezes nos pede para permanecer em silêncio, ser invisíveis, contribuindo à sociedade sem chamar muita atenção. Creio que onde a Igreja é grande e tende a operar em grande escala, isso pode intimidar o povo. A forma de Jesus atuar é de pessoa a pessoa, sendo pequeno com os pequenos.
E como vês desde este pequeno e distante lugar a Igreja universal?
Hoje em dia com a globalização e as redes sociais tudo está à disposição do povo. E aqui os católicos, e também aos não católicos, chega-lhes uma imagem não muito agradável, que não mostra o rosto de Jesus. Sempre digo que parecemos tribos que sempre têm problemas umas com as outras. Obviamente, sempre que há mais de duas pessoas há “política”, porém não como se reflete nos meios de comunicação: conservadores e liberais, esquerda e direita... Ler essas coisas nesta parte do mundo é perturbador porque o resto da população pode receber uma ideia errônea do que é o catolicismo. Não é o Evangelho. Se eu não fosse católico e visse as notícias...
De forma extraordinária, será criado cardeal em seu próprio país. O que significaria isto para seus fiéis?
O delegado apostólico para Brunei (não é núncio porque não há relações diplomáticas com a Santa Sé) é o núncio na Malásia. Nomearam-no há pouco e não virá até janeiro. Imagino que quando possa virá e lhe pedirei ter algum tipo de celebração, porque creio que é bom que a gente o veja. A Roma somente teria podido ir com um padre. Ser cardeal é uma surpresa. Porém, para as pessoas como eu é prudente aceitar porque é uma espécie de reconhecimento do povo. Espero que significa que a Igreja aqui tenha qualidade que o Santo Padre considere boas, que os católicos estejam vivendo bem a sua fé. Não sei se me enviarão um livro de instruções, e espero que não me deem muito trabalho... eu já o tenho aqui. E estou certo de que não me levarão a Roma.
Creio que tampouco gostaria.
Para dois ou três dias estaria bem (risos).
No vicariato há somente três padres, mais você. Como se organizam?
Na capital estamos eu e um deles. Os outros dois estão em outras duas cidades. Porém nos reunimos com frequência e uma vez ao mês passamos a noite juntos em uma das paróquias para compartilhar nossas alegrias, pesares e preocupações, e para nos apoiarmos. Estamos muito unidos, não há problemas de comunicação e isso me alegra. Os conheço, todos antes de que fossem padres, estive implicado em sua formação. Somos como uma família.
Quais são os principais desafios que enfrentam?
Muitos de nossos fiéis vêm à Missa regularmente e mantém a fé que aprenderam no colégio em seus países. É mais difícil trabalhar com os jovens, porque na Ásia os estudos são a principal prioridade e os pais não estão muito dispostos a deixar que se impliquem em atividades. Ademais, a influência dos meios de comunicação é forte e se distraem com facilidade. É a minha principal preocupação.
Quase 90% dos católicos são imigrantes, principalmente filipinos. Como é sua realidade, e como pode ajudá-los na Igreja desde sua posição?
Os católicos não têm os melhores empregos, não podem ter folga aos domingos e às vezes só descansam um dia por mês. Vêm à igreja porque lhes é familiar, aqui encontram um lar e procuramos integrá-los. Mas ajudá-los é um desafio. Eles têm problemas econômicos, ou crises e emergências, e suas embaixadas não os apoiam muito. O principal apoio que damos a eles é espiritual. Por exemplo, nós os encorajamos a ter grupos em seus idiomas. Em seguida, a Legião de Maria e a Sociedade de São Vicente de Paulo ajudam-nos com alimentos ou em casos de emergência. Se alguém morre e a família quer mandar o corpo de volta ao seu país, fazemos o possível para ajudar.
E a dimensão pública da fé?
Acima de tudo, fazemos isso por meio de nossas escolas, onde 70% dos alunos não são católicos. Temos três grandes, cerca de 3 mil alunos no total. E eles são bem vistos pela disciplina e pelos resultados acadêmicos, os alunos têm orgulho de ter estudado aqui.
Como a fé é compartilhada em um centro onde a religião não pode ser ensinada?
Uma escola católica tem que ter seu ethos integrado em tudo o que faz: os procedimentos, a administração, o trabalho dos professores... Cuidamos para que os alunos se comportem bem, não toleramos nenhum tipo de abuso. E nós compartilhamos o Evangelho certificando-nos de que tratamos todas as crianças da mesma forma, e que se elas têm uma deficiência, seu valor também seja visto e abordado de forma adequada, ou dando ajuda financeira para aqueles que não podem pagar as mensalidades.
Você faz alguma coisa para aliviar as excessivas demandas acadêmicas das famílias?
É importante ter um programa equilibrado, mas sempre de olho nos pais. Oferecemos diversas atividades extracurriculares de cunho cultural, procurando oferecer oportunidades também para embaixadas. Isso também incentiva a integração entre os alunos, que incentivamos a compreender as origens do outro, a não ter medo dele e a aprender com ele. E quando é feriado de algum grupo étnico ou religioso, fazemos festas.
Uma das prioridades do Papa é o diálogo inter-religioso. Como se vive isso em Brunei?
Oficialmente, desde 2004, o Governo promove a formação de delegações com membros de diferentes religiões para participarem num diálogo mais formal fora do país. Participamos em 13 ou 14. Por isso visitei Madri há alguns anos. Temos acima de tudo o diálogo da vida. Onde quer que você esteja, há uma troca de ideias e um esforço para compreender o outro. Além disso, quando há algum tipo de festa, como o Ano Novo Chinês ou o fim do Ramadã, esses grupos abrem suas casas e centros para celebrá-la, como dias de portas abertas.
Não é a Igreja?
Eu não tentei. Isso poderia ser feito em particular, mas não como uma Igreja.
Como você combina a exigência da missão como uma parte essencial da vida da Igreja com limitações como a proibição de todo proselitismo ou atividade pública?
A conversão é algo espiritual, acontece dentro das pessoas e pode ser promovida de diferentes maneiras. Na minha experiência, uma abordagem mais intelectual funciona com poucas pessoas. Aqui, a maioria das pessoas aborda a vida de uma forma mais experiencial, mais próxima do solo, e aprecia mais como você vive e como trata os outros. É o encontro pessoal que faz as pessoas começarem a fazer perguntas sobre Jesus. A maior parte do nosso trabalho está neste nível.
Ou seja, eles não podem propor, mas podem responder às perguntas que lhes são feitas.
Não em todas as áreas. Na interação com os muçulmanos, devemos ter muito cuidado porque sua conversão é proibida. Nós o evitamos, porque acreditamos que é melhor ficar dentro do sistema. Também acho que você deve primeiro ver se sua própria religião não oferece o que você está procurando, como dizemos aos católicos que se tornam pentecostais. Ainda temos escopos amplos para trabalhar. Muito importante é o dos católicos que se afastaram. Quando uma porta se fecha, uma janela se abre. Pode não parecer o melhor ou é visto como contrário ao princípio da evangelização, mas acho que é prudente e apropriado nessas circunstâncias.
Quando o governo introduziu a sharia em 2014, a Igreja não a viu como uma ameaça. Isso se aplica de forma diferente a outros lugares?
Existem dois sistemas jurídicos: um inspirado na lei anglo-saxônica (common law) e a sharia, com tribunais próprios, que se aplica principalmente aos muçulmanos, embora em casos como o de adultério possa afetar um não muçulmano. Além disso, há o que está escrito e como é aplicado. Em sua época, havia preocupação com as duras penas contra as pessoas LGBT, mas elas foram esclarecidas após a introdução da lei. Há quase 70 anos que existe uma moratória à pena de morte e o rei deixou bem claro que ela vai continuar.
Por outro lado, vivíamos com isso antes de que se oficializasse. Muçulmanos e não-muçulmanos convivemos em paz, aprendemos uns com os outros o que é preciso fazer ou não. Quando se codifica pode parecer intimidação, mas nós que vivemos nesta realidade seguimos como sempre.
Outra polêmica semelhante foi quando nessa mesma época proibiu-se o Natal.
A imprensa internacional focou de forma muito negativa. Aqui, o 25 de dezembro é festivo. Nesse dia as Igreja lotam, e também no Simbang Gábi (tradição filipina de celebrar a Missa ao amanhecer na novena antes do Natal). Nunca fazemos nada fora porque é o melhor, como minoria temos o espaço suficiente. Nos colégios não fazemos nada porque nesse mês há férias. E na Véspera de Natal organizamos uma grande festa para aproximadamente 2 mil imigrantes, com cantos, brincadeiras e comida, e não há queixas de nenhuma parte.
Com Francisco, o número de cardeais eleitores asiáticos passou de 9% para 13% do colégio cardinalício. Ele também colocou asiáticos em postos importantes, como o cardeal Tagle. Ao mesmo tempo, a evangelização deste continente, tarefa que João Paulo II designou ao terceiro milênio, não parece avançar muito. Como é o rosto asiático da Igreja atual?
Talvez seja um exagero, mas na Federação das Conferências Episcopais da Ásia sempre dizemos que Jesus nasceu na Ásia. Portanto, é natural que se torne o novo foco da Igreja. Pelo grande número de pessoas que aqui vivem, mas também pelo desafio de encontrar as grandes religiões, que às vezes existem há mais tempo que nós. Aprendemos a interagir uns com os outros, a valorizar o melhor uns dos outros e, ao mesmo tempo, manter nossa fé sem transigir. Não é apenas preto e branco. Às vezes, a teologia ocidental tende a ser bastante rígida, não lida bem com áreas cinzentas. Acho que é por isso que existem tantas guerras culturais. Há pessoas que ficam felizes quando têm ideias muito claras, e eu agradeço. Mas, ao mesmo tempo, você tem que lidar com outras realidades.
Uma área onde a evangelização pode percorrer um longo caminho é entre os povos tribais, que vivem muito próximos da natureza. Mas, além disso, em outros lugares onde somos minoria em comparação com religiões majoritárias como o budismo, o hinduísmo ou o islamismo, temos que saber como nos adaptar. E estamos mais acostumados que os ocidentais. Para nós não é importante vencer um debate rapidamente, mas sim o processo de escuta, de adaptação. Acho que é algo que a Ásia pode ensinar.
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“O encontro pessoal faz com que o povo se pergunte por Jesus”. Entrevista com Cornelius Sim, primeiro cardeal de Brunei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU