Uma gramática de privilégios revelada na história das empreiteiras. Entrevista especial com Carolina Lima

Socióloga observa que o Brasil esteve preocupado com modernização e urbanização, enquanto de fato não olhava para o aumento das desigualdades

Autoridades inspecionam obras de construção do Palácio do Planalto, época em que Brasília era erguida | Foto: Agência Brasília

Por: João Vitor Santos | 10 Novembro 2020

Desde o Brasil Colônia que a desigualdade assola este país, mas o que chama a atenção de muitos pesquisadores é o fato de não se ter aproveitado as oportunidades para reverter esse quadro, seja no processo de independência, na instauração da República, seja nos reveses e reformas pelos quais o republicanismo vai passar. Para a socióloga Carolina Lima, “nos estruturamos enquanto grupo em torno de uma gramática de privilégios e não de direitos”. “Acontecimentos como a Revolução de 1930, por exemplo, estiveram longe de representar uma ruptura com arranjos antigos que sustentavam a sociedade”, exemplifica. E completa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line: “os governos que se seguiram a ela [Revolução de 30] promoveram uma modernização que passou pela urbanização e industrialização da nação, mas não pela adoção literal de princípios democráticos”.

 

Sua constatação se deu a partir da pesquisa em que analisou a trajetória de vida de grandes empreiteiros que atuam na cidade de Brasília. “O que pude verificar como principalmente importante em seu percurso de expansão de recursos econômicos foi a possibilidade de, em sua juventude, investir em escolarização e o seu capital social, que cumpriu papel central na abertura de oportunidades de negócios e alcance de posições”, observa. A isso ainda se alia uma onda desenvolvimentista que clamava por grandes obras e uma certa facilidade de acesso desses grupos de empresários aos governos. “Proprietários de algumas grandes empreiteiras tendem a manter uma relação próxima com esferas do poder público. Eles pressionam para que seus interesses sejam atendidos”, pontua.

 

Carolina ainda destaca que não há problema em lutar pelos próprios interesses, isso faz parte do jogo democrático e os empresários desse ramo são agentes políticos como quaisquer outros. No entanto, observa que “devido à posição que ocupam e aos recursos que possuem, eles são capazes de operar uma maior pressão do que a maioria, quer dizer, seus recursos econômicos se convertem em capital político”. E, assim, instala-se um círculo, pois aqueles mais abastados são capazes de investir mais na educação dos seus filhos, que se qualificam acima da média, enquanto relações estreitas com o poder público vão assegurando a longevidade de poderes, de políticos a econômicos, de um grupo bem seleto.

 

Logo, tem-se a receita ideal para não só perpetuar como também para gerar ainda mais desigualdade. Não é preciso voltar muito ao passado para ver como essas empresas crescem na mesma proporção da urbanização do Brasil, enquanto seus funcionários são jogados às margens. O exemplo mais clássico é a construção da própria cidade de Brasília, capital federal que joga os calangos para as cidades-satélites, nas bordas da urbanização e do desenvolvimento e no centro da desigualdade. “Precisamos desnaturalizar a desigualdade socioeconômica significativa com a qual convivemos e trazer à tona os mecanismos que permitem que esse estado de coisas se perpetue”, resume Carolina.

 

Carolina Lima (Foto: Arquivo pessoal)

Carolina Vicente Ferreira Lima é socióloga, graduada em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia e Sociologia, e mestre em Sociologia, ambas pela Universidade de Brasília - UnB. Doutora em Sociologia pela UnB, é autora da tese “A riqueza e suas diferentes formas de apropriação: hierarquias sociais no Brasil contemporâneo”. Entre suas publicações, destacamos “Os empresários da construção civil e a distinção social em Brasília: objeto, implicação e justificativa” (In: Nunes, Christine; Penso, Maria Aparecida; Silva, Pedro (Org.). Diálogos em Sociologia Clínica: dilemas contemporâneos. 1. ed. Brasília: Editora IFB, 2018).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como compreender o conceito de riqueza na experiência brasileira? Que relações podemos estabelecer com a propriedade privada?

Carolina Lima – Não existe uma definição única e acabada do conceito de riqueza. Tendemos a associar a riqueza à posse ou à posse da abundância de recursos. Mas a que tipo de recursos estamos nos referindo? Falamos de renda, patrimônio, anos de escolaridade, poder de influência nas decisões políticas, capacidade de consumo de bens e mercadorias? O que significa dispor de riqueza, afinal?

Em termos sociológicos podemos definir a riqueza de diferentes formas. Se analisarmos a realidade a partir de teorias com vieses marxistas, aí teremos uma maior centralidade do papel da propriedade privada; mais especificamente, a posse dos meios sociais de produção será decisiva na definição de riqueza. Em sociedades complexas como as nossas, e em tempos de capitalismo financeiro, no entanto, o capital econômico e o acúmulo deste é associado às mais diversas formas.

Em se tratando da minha pesquisa de doutorado, na qual analiso a trajetória de vida de empreiteiros na capital do país, o que pude verificar como principalmente importante em seu percurso de expansão de recursos econômicos foi a possibilidade de, em sua juventude, investir em escolarização e o seu capital social, que cumpriu papel central na abertura de oportunidades de negócios e alcance de posições.

 

Capital social

O capital social é um conceito que tomo emprestado do sociólogo Pierre Bourdieu e se refere a uma rede durável de relações diretamente utilizáveis capaz de, ao ser mobilizada, proporcionar ganhos materiais e simbólicos a determinado ator social. É uma espécie de patrimônio a ser utilizado nas disputas e jogos sociais. O volume de capital social possuído por um indivíduo em particular depende da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico e cultural) possuído por aqueles com os quais está relacionado.

 

 

IHU On-Line – De que forma a senhora explica as hierarquias sociais do Brasil contemporâneo? Que relações podemos estabelecer com os estamentos e classes sociais do passado?

Carolina Lima – As hierarquias sociais no Brasil contemporâneo passam por uma diversidade de marcadores que incluem, além de questões de classe, aspectos regionais, raciais e de gênero também. No que concerne ao meu trabalho de doutoramento, concentrei-me em aspectos relativos à classe social. Podemos afirmar que o estado de coisas que verificamos na atualidade, de um quadro de desigualdade social significativa, tem suas raízes no passado, tem uma história, e é a partir da reconstrução e análise desta que podemos compreender o presente.

Por meio do exame da trajetória de vida de empreiteiros, pude percorrer boa parte da história social e política do país ao longo do século XX. Quis encontrar, a partir de histórias particulares, algo que tocasse à nossa história coletiva. Eu parti de um conflito: a coexistência entre, por um lado, uma ordem dita republicana e democrática, que pressupõe igualdade civil, política e econômica entre os indivíduos de uma sociedade e, por outro, a manutenção da persistente desigualdade social.

E cheguei à conclusão de que nos estruturamos enquanto grupo em torno de uma gramática de privilégios e não de direitos. Percebemos, portanto, que acontecimentos como a Revolução de 1930, por exemplo, estiveram longe de representar uma ruptura com arranjos antigos que sustentavam a sociedade. E que os governos que se seguiram a ela promoveram uma modernização que passou pela urbanização e industrialização da nação, mas não pela adoção literal de princípios democráticos.

 

 

Empresários

Os empresários que compõem minha pesquisa nasceram em famílias que já gozavam de poder econômico e, em alguns casos, político também. Esse poder esteve relacionado à terra, ao ambiente rural. Eles souberam e puderam operar transformações e investimentos que permitiram a eles converter esse capital em algo que lhes garantisse ganhos em novas áreas que se insinuavam com o processo de modernização e urbanização do país.

Dois fatores foram centrais nesse processo: primeiramente, o forte investimento em educação formal, em anos de estudo, que se deu em momento em que não tínhamos uma escolarização massificada, e lhes permitiu obter diplomas e formar um capital cultural precioso e escasso em seu período de inserção laboral. Outro fator que se demonstrou decisivo foi possuírem alto capital social, como apontei anteriormente.

 

IHU On-Line – O que assegura a manutenção da desigualdade e da hierarquia social no Brasil?

Carolina Lima – A reprodução ao longo do tempo de um arranjo social e de poder que permite a perpetuação de determinados grupos e atores em posições privilegiadas. O que permite sua manutenção é a naturalização e o recalcamento dos processos que tornam esse arranjo possível.

 

IHU On-Line – O que mais a surpreendeu na sua pesquisa acerca da trajetória de vida de empreiteiros da cidade de Brasília?

Carolina Lima – Não houve nada específico que me surpreendeu no sentido de estar esperando encontrar no trabalho empírico determinada coisa e encontrar algo totalmente diferente disso. O que me espantou foi descobrir de maneira bastante aguda aspectos que já constituíam minhas hipóteses de pesquisa. Foi, portanto, a severidade do quadro que causou maior surpresa.

 

 

 

IHU On-Line – No documentário Democracia em vertigem, Petra Costa usa uma analogia para compreender a relação entre os empresários, donos de grandes empreiteiras, e os movimentos da democracia no Brasil. Como analisa essa relação?

Carolina Lima – O que podemos afirmar é que proprietários de algumas grandes empreiteiras tendem a manter uma relação próxima com esferas do poder público. Eles pressionam para que seus interesses sejam atendidos. A princípio não há problema nisso, uma vez que buscar atender seus interesses faz parte da atividade política. Os empresários também são atores políticos, como todos nós.

Obviamente que devido à posição que ocupam e aos recursos que possuem, eles são capazes de operar uma maior pressão do que a maioria, quer dizer, seus recursos econômicos se convertem em capital político. Cabe à sociedade, entretanto, por meio de suas instituições, vigiar para que esses interesses, caso se efetivem na realidade, não prevaleçam em detrimento do bem comum. E, obviamente, cabe também às nossas instituições vigiar e punir tudo o que, no que concerne a suas atividades, se dê de forma ilegal.

 

 

IHU On-Line – Qual o papel do regime militar, seu desenvolvimentismo e a ideia de fazer ‘o bolo crescer’ à base de grandes obras, na ascensão do império das empreiteiras no Brasil?

Carolina Lima – Nosso processo de modernização, leia-se a industrialização e urbanização de nossa sociedade, esteve relacionado ao desenvolvimentismo, entendido como uma posição política, econômica e social, adotada por governos que definiam a industrialização como mudança estrutural e o principal meio para atingir o desenvolvimento, aceitavam a tese do crescimento com endividamento e defendiam o papel ativo do Estado nesse processo. Teve início ainda nos governos de Getúlio Vargas, com o que conhecemos como nacional-desenvolvimentismo, e prosseguiu por outros governos como o de Juscelino Kubitschek, que abriu o país para o capital estrangeiro.

 

 

Os governos militares também fizeram parte desse longo processo. A relação entre as empreiteiras e o desenvolvimentismo foi próspera para as primeiras por razões óbvias, elas puderam crescer e lucrar com grandes obras. Acho que todos esses governos contribuíram para o que você nomeou de “império das empreiteiras”, ou seja, o crescimento e fortalecimento destas em ambiente nacional.

 

 

IHU On-Line – Qual o impacto da Operação Lava Jato na história das construtoras e empreiteiras no Brasil?

Carolina Lima – Acredito que o impacto foi gigantesco, visto que as principais empresas de construção civil do país se viram envolvidas em investigações policiais, processos judiciais e condenações; tendo, em alguns casos, seus dirigentes detidos. Imagino que o impacto disso poderá ser notado a longo prazo, seja em mudanças de conduta por parte de tais empresas e governos, o que esperamos que aconteça, seja na dificuldade de realização de projetos de grande porte no país, visto que alguns deles apenas construtoras de tal vulto podem realizar.

 

 

 

IHU On-Line – Como, a partir da sua experiência na pesquisa de sua tese, a senhora compreende a desigualdade brasileira?

Carolina Lima – Entendo a desigualdade brasileira como algo secular que, a despeito das mudanças pelas quais passamos (modernização, alternância entre regimes políticos autoritários e democráticos, momentos de crise e prosperidade econômica), se mantém.

 

IHU On-Line – Quais os caminhos possíveis para enfrentar e superar a desigualdade no Brasil?

Carolina Lima – Precisamos desnaturalizar a desigualdade socioeconômica significativa com a qual convivemos e trazer à tona os mecanismos que permitem que esse estado de coisas se perpetue. Penso que a adoção de políticas públicas que visem a redistribuir renda, assim como reformas em nosso sistema tributário, com vista a taxar mais o patrimônio do que o consumo, traria benefícios no sentido de apaziguar um pouco esse quadro. Ademais, acredito que um sistema educacional mais equânime, tanto no que se refere à qualidade de ensino, quanto ao acesso e anos de estudo, faria uma enorme diferença a longo prazo.

 

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