Charlie Hebdo: a liberdade de expressão é sagrada. Mas a humilhação é outra coisa e é repugnante

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29 Outubro 2020

“Somos todos Charlie!” Lembro-me do orgulho com que levei a Paris, às redações das TVs francesas, o exemplar do jornal Il Fatto Quotidiano, que o diretor Padellaro quisera revestir com a capa do Charlie Hebdo no dia seguinte às bárbaras agressões aos redatores do jornal satírico. Era janeiro de 2015.

O comentário é de Marco Politi, publicado por Il Fatto Quotidiano, 28-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Estamos todos do lado da liberdade de expressão. Estamos todos, hoje, do lado dos professores da França. Somos todos contra o fundamentalismo e o terrorismo islamistas e também estamos do lado do presidente Macron, quando ele anuncia a batalha contra o separatismo religioso-cultural pregado pelos integralistas em nome da sharia.

Sobre as caricaturas de Maomé, foi levantada a interrogação sobre se existe também o direito à blasfêmia. A resposta só pode ser afirmativa, se nos colocarmos na perspectiva da primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos: a proteção da ilimitada liberdade de expressão e de imprensa.

Ilimitado significa que não há santuários políticos, nem étnicos, nem religiosos, nem institucionais. Tudo pode ser objeto de sátira, julgamento ou ataque. No entanto, também faz parte da tradição cultural do Ocidente a liberdade de julgar, o direito irreprimível de submeter tudo à análise crítica.

Tem sido assim desde que os primeiros pensadores gregos submeteram ao escrutínio da razão as crenças religiosas relacionadas aos fenômenos naturais. E é assim, mais ainda, desde que Sócrates considerou que era dever do filósofo submeter todas as opiniões ao método da investigação racional e do contraditório.

Portanto, nenhuma caricatura, nenhum artigo, nenhum livro, nenhum vídeo, nenhum tuíte pode escapar dessa regra da liberdade. Porque existe – igualmente sagrada – a liberdade de análise crítica e de julgamento.

Não há dúvida de que o “Mein Kampf” de Hitler é um produto da livre (e doentia) expressão de um indivíduo. Assim também são as publicações supremacistas que constituem uma arquitrave da estrutura mental racista nos Estados Unidos.

Também é sátira a infame produção de caricaturas antissemitas desde os tempos do nazismo até hoje. Também é produto do pensamento livre o livro chamado “Protocolos dos Sábios de Sião”, que surgiu nos ambientes reacionários czaristas para propagar a ideia de uma conspiração mundial judaica.

Será que essas expressões do pensamento não podem ser submetidas a julgamento? Então, também é lícito colocar sobre a mesa a caricatura que mostra Maomé nu e com quatro patas, com uma estrela amarela plantada na altura do traseiro. O que esse desenho transmite? Existe uma relação direta entre o valor simbólico de Maomé e o terrorismo islamista? Existe uma motivação de crítica política que estabelece um nexo entre Maomé e a estrela presumivelmente natalícia que foi plantada no seu traseiro? A imagem de Maomé retratado como um animal agachado tem algo a ver com a denúncia de fundamentalismo ou de violência (que pretende se inspirar em valores religiosos, mas na realidade é a sua manipulação brutal e obtusa)?

A resposta é três vezes não. Essa imagem não tem nada a ver com a denúncia e a luta contra o terrorismo islamista. Ninguém pensaria em desenhar Abraão ou Moisés para denunciar o terrorista judeu Baruch Goldstein que, há um quarto de século, massacrou 29 fiéis muçulmanos no túmulo de Abraão em Hebron.

Ninguém desenharia Cristo para condenar os torturadores fascistas da América Latina, que, no século passado, teciam hinos à defesa da civilização cristã e a Deus (pátria e família).

E ninguém pensaria em desenhar Buda para criticar os fanáticos fundamentalistas budistas que se lançaram contra os Rohingya em Mianmar.

E se alguém – usufruindo da sua garantida liberdade de expressão – publicasse coisas desse tipo, seria legítimo considerar tais produtos repugnantes em nome do igualmente sacrossanto direito de crítica. Porque, indo ao fundo da questão, Maomé com quatro patas inspira unicamente escárnio e humilhação.

Em outras palavras, alimenta desprezo e ódio para aquela parte do mundo que – referindo-se a um direito inalienável consagrado nas constituições – segue a sua própria crença e não tem nada a ver com o terrorismo. Uma mensagem de pura incitação ao desprezo e ao ódio é ignóbil.

Eu estava em Nova York em setembro de 2015, quando o Papa Francisco participou de uma oração inter-religiosa no Ground Zero, o abismo provocado pelo atentado da al-Qaeda no dia 11 de setembro de 2001, onde 2.977 pessoas morreram e mais de 6.000 ficaram feridas. Rezaram lado a lado o rabino e o imã, expoentes cristãos e das outras religiões. Porque, na luta contra o fanatismo terrorista, o imperativo é unir as comunidades. Unir, não dividir.

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