Ultraprocessados são consumidos pelas classes de renda mais alta. O risco da proliferação nas mais baixas. Entrevista especial com Ana Paula Bortoletto

Decisão da Anvisa sobre a rotulagem das embalagens dos ultraprocessados é influenciada pela pressa da indústria alimentícia, diz a nutricionista

Alimentos ultraprocessados | Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 29 Outubro 2020

Com o aumento da insegurança alimentar e da fome no Brasil, fenômenos que atingem 10,3 milhões de pessoas no país, o que representa quatro em cada dez famílias, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a educação alimentar ainda é um grande desafio a ser enfrentado. Segundo a nutricionista Ana Paula Bortoletto, “o excesso de informações é uma barreira para isso, porque as pessoas têm tantas informações disponíveis sobre alimentação – todo mundo hoje fala sobre alimentação, desde blogueiros, influenciadores –, que não sabem o que escolher. Cada um quer falar da sua dieta ou do seu alimento milagroso e isso gera uma dificuldade na compreensão sobre o que é de fato uma alimentação saudável e, na verdade, ela é muito mais simples do que se propaga nas redes sociais”.

 

Referência para o mundo todo na promoção da saúde e redução das doenças, o Guia Alimentar para a População Brasileira é, de acordo com a nutricionista, “o caminho para a alimentação saudável”. Ao contrário de solicitar a sua revisão, como fez recentemente a indústria alimentícia através de nota técnica divulgada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa, Ana Paula diz que as indústrias “deveriam olhar para ele e aproveitar para desenvolver produtos que sigam a sua linha ao invés de questionar a sua existência e validade científica”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, ela também comenta a recente decisão da Anvisa de alterar a rotulagem das embalagens dos produtos ultraprocessados e, especialmente, a adesão ao modelo de lupa e não ao do triângulo, que seria o mais indicado para que as pessoas pudessem fazer escolhas alimentares mais saudáveis.

 

Ana Paula também menciona quais são as políticas públicas que deveriam ser adotadas pelo Estado a fim de promover a segurança alimentar e enfrentar o problema agravado pelos efeitos da pandemia. “Garantir outras formas de valorização do abastecimento de alimentos saudáveis é fundamental para reverter esse processo de insegurança alimentar, ao invés de esperar que as grandes empresas, através de doações de produtos, ou as tecnologias, que vão produzir produtos enriquecidos, vão garantir o fim dessa crise”, assegura.

 

colocar aqui a legenda (Foto: Idec)

Ana Paula Bortoletto é graduada em Nutrição pela Universidade de São Paulo - USP, com mestrado e doutorado em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é pesquisadora em alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde - Nupens.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Há mais de cinco anos o Idec defende o direito de o consumidor saber o que come e pressiona a Anvisa por mudanças nas regras dos rótulos dos ultraprocessados. Que avanços foram alcançados nesse período, apesar de a Anvisa ter aprovado, recentemente, o modelo de lupa para as novas rotulagens?

Ana Paula Bortoletto – O Idec trabalha há muitos anos para avançar na melhoria das informações nos rótulos dos alimentos. Durante este tempo, tivemos um avanço, primeiro, em relação à necessidade e à relevância do tema para as políticas públicas no Brasil, com mais preocupação dos consumidores sobre as informações. Particularmente em relação às regulações, houve um avanço sobre a informação dos alimentos que provocam alergias alimentares – teve uma nova resolução sobre isso –, um avanço em relação à discussão sobre a rotulagem nutricional e, recentemente, a aprovação de uma nova norma, que atualizou a anterior, e que prevê algumas melhorias, principalmente na tabela nutricional que fica na parte de trás da embalagem. Agora vai ser obrigatório ter um contraste de cores com fundo branco e letra preta (com um tamanho mínimo) nas embalagens, o que vai melhorar a legibilidade – as pessoas vão conseguir ler a informação –, e vai ter uma informação adicional sobre cada 100 gramas do produto, que vai fazer com que o consumidor consiga comparar qualquer categoria.

Hoje, é necessário fazer um cálculo para saber essa informação, porque a quantidade dos produtos é classificada em bases diferentes. Apesar de a resolução avançar neste aspecto, o modelo de rotulagem a ser adotado será o da lupa – o Idec trabalhou para que outro modelo, o do triângulo, mais efetivo do que esse, fosse implementado. Fizemos várias pesquisas mostrando que o modelo do triângulo permitiria que o consumidor compreendesse e enxergasse a informação nutricional de uma forma muito mais clara, identificando igualmente os riscos de determinados ultraprocessados à saúde, para poder fazer escolhas mais saudáveis. Mas a escolha da Anvisa foi pelo modelo de lupa, o qual entendemos que é muito fraco. Muitos alimentos que têm uma quantidade razoável de açúcar, sódio e gordura saturada vão ficar de fora dessa informação. Essa é uma preocupação grande que nós temos.

Ainda em relação aos avanços acerca das rotulagens, a proibição do uso de gordura trans será um avanço e isso vai melhorar as informações sobre esse tipo de gordura para os consumidores. Isso porque hoje as informações sobre gordura trans são incompletas e podem levar o consumidor ao engano.

 

 

O modelo triângulo seria o mais adequado e vamos cobrar a Anvisa para que faça estudos sobre a efetividade do modelo de lupa, porque ele nunca foi testado, embora tenha sido desenvolvido com base em evidências. Nos preocupa se, daqui a dois anos, quando tivermos as informações nos rótulos, o consumidor vai conseguir enxergá-las para poder fazer escolhas mais saudáveis. Nesse período de dois anos, vamos cobrar a Anvisa para garantir que o modelo a ser implementado tenha o máximo de efetividade. Não podemos chegar ao final desse período com um modelo que não serve para nada.

Na semana passada, foram divulgados os dados sobre o aumento da obesidade no Brasil e, se não fizermos algo em relação a isso, corremos o risco de ficar patinando na busca de políticas públicas efetivas. O grande motivo disso é a pressão da indústria de alimentos, que fez o máximo de pressão para que a Anvisa não aprovasse o modelo de rotulagem mais efetivo.

 

 

IHU On-Line – A Anvisa, ao contrário, adotou o design de lupa para a rotulagem nutricional frontal. Quais são suas críticas a este modelo e por que o alerta frontal nas embalagens é fundamental?

Ana Paula Bortoletto – As nossas principais críticas ao modelo da lupa é porque ela não tem um tamanho, um formato e um isolamento da embalagem que garanta a visibilidade adequada. As bordas em volta da informação deveriam ser maiores para isolar a informação do resto da embalagem e o formato não chama a atenção do consumidor, diferentemente do formato do triângulo que, inclusive, é muito utilizado no Brasil como mensagem de alerta, de atenção, de destaque.

O design e o perfil de nutrientes precisam estar juntos porque o perfil indica qual vai ser o ponto de corte para denominar “alto em açúcar”, “alto em sódio”. O perfil que a Anvisa adotou é muito flexível, ou seja, o valor é muito alto e produtos que tiverem 10 gramas de açúcar a cada 100 gramas, que é uma quantidade razoável, não serão informados.

 

IHU On-Line - Segundo o Idec, o modelo de lupa está em avaliação no Canadá, mas já recebeu críticas de especialistas em saúde pública do país. Que problemas os pesquisadores evidenciaram nesse modelo?

Ana Paula Bortoletto – No Canadá, os especialistas avaliaram a baixa efetividade do modelo de rotulagem de lupa porque em cada embalagem repete uma única imagem, mesmo tendo um, dois ou três nutrientes em excesso. A única coisa que  muda é a linha, ou seja, se a linha fica mais preta ou branca em relação à advertência. Esse tipo de informação utilizando a mesma imagem dificulta a noção do maior ou menor risco, porque você sempre vai ter a mesma imagem para um, dois ou três nutrientes em excesso.

 

 (Foto: Idec)

 

IHU On-Line - O Chile adotou um novo modelo de rotulagem há quatro anos. O que os pesquisadores relatam acerca da eficiência desse tipo de rotulagem tanto em relação à mudança de hábito quanto no entendimento da população sobre o consumo dos ultraprocessados?

Ana Paula Bortoletto – O Chile adotou um modelo de octógonos pretos, que tem a mesma abordagem de advertência do triângulo. Os pesquisadores reforçam os dados de que houve um entendimento dos consumidores sobre as informações e, a partir delas, eles fazem escolhas alimentares mais saudáveis. Também informaram, nas primeiras análises, a redução do consumo de bebidas açucaradas por opções mais saudáveis. Este é um modelo que serve de exemplo para o Brasil e o resto do mundo.

 

IHU On-Line - Como a indústria alimentícia reagiu à proposta de incluir os alertas, inclusive os triângulos, na parte da frente das embalagens? Quais são as causas da resistência, quando ocorre?

Ana Paula Bortoletto – A indústria, neste momento, está dizendo que vai seguir a norma da Anvisa e diz que sempre defendeu e vai continuar defendendo o modelo de semáforo alimentar como o mais adequado.

Além da defesa pública deste modelo de rotulagem, a indústria tem se manifestado nos últimos anos de forma a dificultar o avanço da abordagem de advertências, apresentando para a Anvisa estudos de impacto econômico, dizendo que este tipo de abordagem causa medo nas pessoas.

Esses argumentos não têm nenhum embasamento científico e são feitos em cima de estimativas muito irreais. A indústria também visa evitar ao máximo que as mudanças aconteçam; tem uma abordagem de dificultar o avanço da política pública, mas quando percebe que ela vai avançar, tenta retardar ao máximo esse avanço para que seja o menos efetiva possível. Vimos o posicionamento da Rede Rotulagem e sabemos que houve manifestações públicas da Anvisa, do ministro da Saúde e outras tentativas de retardar ou evitar o processo. Vamos seguir monitorando e denunciando casos de interferência.

 

 

IHU On-Line - É possível estimar que percentual da população brasileira tem uma alimentação baseada exclusivamente ou significativamente à base de ultraprocessados e qual é o perfil socioeconômico dos brasileiros que seguem essa dieta?

Ana Paula Bortoletto – Hoje, a parcela da população brasileira que se alimenta mais de ultraprocessados é a mais rica porque o ultraprocessado ainda tem um padrão de consumo predominante entre as classes com renda mais alta. Felizmente, no Brasil, ainda temos um percentual grande da população que consome alimentos in natura e comida de verdade. No entanto, houve um aumento do consumo de ultraprocessados no Brasil nos últimos anos e isso aumentou em todos os estratos sociais. Nesse momento, há uma preocupação em relação ao aumento maior dos ultraprocessados nas classes de renda mais baixa, porque o processo desses alimentos está ficando cada vez mais barato e isso gera um maior alcance entre aqueles de menor renda.

O consumo de utraprocessados é elevado no Brasil, mas não se compara ao consumo em países como os EUA ou outros países da Europa, onde o consumo desses alimentos chega a 60% das calorias consumidas; no Brasil, estamos por volta de 20%. Este número está aumentando e nos preocupa, porque não temos noção de onde isso vai parar.

 

 

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios no sentido de convencer a população acerca dos malefícios dos ultraprocessados para a saúde? A falta de informação ainda é um problema ou não se trata de falta de informação?

Ana Paula Bortoletto – Este é um desafio. Sabemos que a educação alimentar é a base para garantir que as pessoas consigam se alimentar de forma adequada, mas diria que o excesso de informações é uma barreira para isso, porque as pessoas têm tantas informações disponíveis sobre alimentação – todo mundo hoje fala sobre alimentação, desde blogueiros, influenciadores –, que não sabem o que escolher. Cada um quer falar da sua dieta ou do seu alimento milagroso e isso gera uma dificuldade na compreensão sobre o que é de fato uma alimentação saudável e, na verdade, ela é muito mais simples do que se propaga nas redes sociais.

Diria que há o desafio de filtrar as informações que circulam nas redes e permitir que as informações baseadas em pesquisas e evidências cheguem de forma fácil e simples para as pessoas. Informações desse tipo estão no Guia Alimentar para a População Brasileira.

 

 (Arte: IHU)

 

Existe um desafio de massificar o Guia Alimentar, que traz informações gerais para a população saudável. O guia tem a perspectiva de promover alimentação saudável para pessoas que não têm condições específicas de saúde nem dependem de uma dieta especial. Então, ele vem no sentido de promover a saúde e prevenir as doenças. É um desafio massificar essa informação e isso depende de estratégias combinadas entre profissionais de saúde, articular esse trabalho em escolas e, por que não, de influenciadores e nas redes sociais, mas isso apenas não é suficiente. Se não tivermos medidas que favoreçam mudanças de hábitos por meio dos estímulos para as pessoas, dificilmente, mesmo sendo superconhecedora do Guia Alimentar, uma pessoa vai poder fazer escolhas mais saudáveis. Por exemplo, hoje temos um excesso de publicidade e oferta de utraprocessados em toda parte: nos mercados, nas redes sociais. Esse tipo de abordagem de marketing e de oferta em qualquer lugar atrapalha. Por mais que a pessoa seja bem informada, se não tiver condições econômicas ou acesso a uma abordagem positiva dos alimentos saudáveis, fica mais difícil ela fazer uma escolha mais saudável.

Já é comprovado que políticas públicas baseadas apenas na orientação da população não são efetivas, não funcionam. A educação tem que ser a base, mas se não houver o apoio e o reforço de estimular o consumo de alimentos saudáveis, a mudança de hábitos é muito difícil, especialmente entre os adultos.

 

 

IHU On-Line - Recentemente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento divulgou uma nota técnica com o objetivo de alterar as recomendações de redução do consumo de ultraprocessados e alimentos de origem animal do Guia Alimentar para a População Brasileira. Qual sua interpretação deste episódio?

Ana Paula Bortoletto – O episódio de recomendar a revisão do Guia Alimentar por parte do Mapa nos preocupa bastante porque é um sinal de entendimento de que ele não é adequado e apropriado para o Brasil. Mas na verdade, esse guia é um exemplo para o mundo todo em relação à orientação do que é alimentação saudável.

A necessidade de revisão seria cabível numa situação em que existissem pesquisas que questionassem a validade desse guia, mas o que acontece é o contrário: cada vez mais pesquisas e evidências reforçam que as orientações do guia são as mais atualizadas e eficazes para a promoção da alimentação saudável e a prevenção das doenças crônicas. Vejo que esta abordagem vem do setor produtivo. Há um equívoco da indústria de alimentos, que acha que a classificação de alimentos industriais fere definições da produção de alimentos, mas, na verdade, é diferente. A ideia não é questionar conceitos, e sim trazer conceitos e abordagens que contribuam para uma compreensão mais ampla da alimentação e sua relação com a saúde da população.

Esta foi uma investida do setor produtivo, via o Mapa, para questionar a validade e o embasamento científico do guia, porém as pesquisas reforçam esse material. O Guia Alimentar não é uma legislação e não proíbe a produção de nenhum alimento e tampouco fere a livre iniciativa. Ele mostra qual é o caminho para a alimentação saudável, e as indústrias deveriam olhar para ele e aproveitar para desenvolver produtos que sigam a sua linha ao invés de questionar a sua existência e validade científica.

 

 

IHU On-Line - Em função da pandemia e das crises econômica e social, os pesquisadores alertam para o crescimento da insegurança alimentar no país. Como evitar esse quadro a partir da alimentação sugerida pelo Guia Alimentar para a População Brasileira e outras políticas públicas?

Ana Paula Bortoletto – Essa crise econômica e de insegurança alimentar aumentará no Brasil. Por isso precisamos caminhar para a disseminação do Guia Alimentar e pensar em como mudar a organização das redes de abastecimento, da oferta de alimentos em ambientes funcionais, como escolas. Além disso, é preciso rever a forma como a publicidade de alimentos é feita, para que os alimentos saudáveis, produzidos pela agricultura familiar, orgânicos e ecológicos, sejam priorizados com incentivos fiscais, com ofertas nas escolas, com todo tipo de incentivo e apoio para a sua produção.

O que temos visto hoje no país é o contrário: a permissão de isenção tributária para agrotóxicos. Recentemente, um decreto presidencial aumentou os benefícios fiscais para a produção de refrigerantes. Ou seja, esses são dois exemplos claros que estão indo na contramão do que precisamos para garantir a segurança alimentar no Brasil.

Garantir outras formas de valorização do abastecimento de alimentos saudáveis é fundamental para reverter esse processo de insegurança alimentar, ao invés de esperar que as grandes empresas, através de doações de produtos, ou as tecnologias, que vão produzir produtos enriquecidos, vão garantir o fim dessa crise. Entendemos que o Brasil tem uma biodiversidade incrível, uma potência de produção de alimentos saudáveis incrível, que não está sendo priorizada e valorizada o suficiente para garantir a segurança alimentar. Quem sabe nas eleições municipais possamos introduzir este tema.

 

 

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