Fratelli Tutti: A encíclica do último dos No Global?

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14 Outubro 2020

Em um debate público caracterizado pela ausência de alternativas ao liberalismo, Bergoglio divulga “Fratelli tutti”. Um texto que se propõe como radicalmente realista e que quer ser o ápice do seu pensamento e marcar a aspecto principal do seu papado. Como ele nos questiona?

 

A entrevista é de Antonio Montefusco, professor Literatura Latina Medieval na Universidade Ca 'Foscari, com Gian Luca Potestà, professor de História do Cristianismo na Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão em debate publicado por Jacobin, 13-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Como se sabe, o Papa Francisco não dorme nos costumeiros quartos do Vaticano, mas sim em Santa Marta. Uma das muitas opções que enlouquecem o mundo conservador, católico e não somente, que o elegeu como "inimigo público". Para alguns, ele é até um papa herético: um grande grupo de eclesiásticos e leigos, no ano passado, pediu sua renúncia após o Sínodo sobre a Amazônia. Já sua eleição, ocorrida após a clamorosa renúncia do controverso pontificado de Bento XVI, parecia marcada por analogias históricas: Ratzinger, antes de renunciar, havia visitado o túmulo do Papa Celestino V, (quase) o único precedente do bispo de Roma que desistiu da tiara papal.

 

Para quem estuda a Idade Média, são acontecimentos que podem dar vazão a analogias que devem ser analisadas com cuidado - Celestino foi, para alguns, um papa "angelical", em particular para um grupo de franciscanos radicais, que depois de sua renúncia continuaram a ter esperança em um papa pobre que fosse líder de uma Igreja pobre. O fato de o jesuíta Jorge Mario Bergoglio ter escolhido o nome de Francisco - desta vez pela primeira vez nos dois mil anos de história dos papas e oito séculos após a morte do santo de Assis - representava mais uma dessas analogias. Agora se sabe que a escolha do nome foi ciente e também dizia respeito a um programa eclesiológico e político-espiritual. Falando com a mídia, poucos dias após a eleição, o papa vinculou o nome de Francisco a um projeto específico: "Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!" Novamente, sobram analogias históricas.

 

Dante Alighieri também queria uma igreja semelhante. Como se sabe agora, os percursos que conduziram Bergoglio até aqui não foram os da Teologia da Libertação, que orgulhosamente marchava ao lado dos movimentos revolucionários sul-americanos; sua própria experiência durante a ditadura argentina foi atribulada e não envolvida diretamente no plano político. Um grande historiador, Giovanni Miccoli, indicou de forma convincente como, na escolha do papa, tenha ressurgido e tomado corpo a política particular dos jesuítas no período que seguiu ao Concílio Vaticano II, quando, sob a orientação do padre Arrupe, Francisco havia se tornado o estandarte da reforma da Igreja.

 

Também sobre esse ponto, o Papa Francisco interceptou um amplo interesse do mundo secular, inclusive intelectual e não cristão, que há tempo se questiona sobre o "franciscanismo" primeiro como ponto de ruptura na relação entre mundo e Igreja do ponto de vista do desenvolvimento econômico - e aqui podemos pensar em Lynn White, um grande historiador que, na Science de 1967, indicou em São Francisco um campeão do ecologismo que rompia com a tradição cristã, caracterizada por uma abordagem agressiva e transformadora em relação ao mundo natural - e agora como reflexão sobre os modos de vida e sobre a biopolítica - e aqui estou pensando mais na conclusão de Império de Toni Negri, em que Francisco era o representante da alegria do ativista comunista, ou em Giorgio Agamben, que na elaboração da ordem indicou uma forma-de-vida radicalmente alternativa por ser subtraída da posse. Porque aquele de Francisco - embora permanecendo também um pontífice muito problemático em termos de direitos das mulheres - mais que um pontificado "messiânico", representa de alguma forma o paradoxo de uma mudança decisiva de ritmo na história da Igreja.

 

A encíclica Fratelli Tutti, que acaba de ser publicada, é particularmente representativa dessa mudança. Em primeiro lugar, é significativo que a fúria dos conservadores tenha sido, se assim se quiser, ainda mais decisiva: Marcello Veneziani, em um editorial rancoroso no La Verità, acusou o papa de estar "à esquerda de Lenin e Mao".

 

Mas mesmo no lado oposto, alguém percebe a novidade. Augusto Illuminati, propondo um exame preciso de uma série de passagens do texto, concluiu que, se não se trata de comunista, Francisco é certamente uma "pérola de além do Tibre". Um companheiro de viagem, dir-se-ia em outras épocas - mas sem o sujeito político para acompanhar, é preciso dizer. Porque Fratelli Tutti nasce dentro de uma reflexão codificada - a doutrina social da Igreja - que se afirma a partir do século XIX em correspondência com as grandes revoluções sociais europeias (as "guerras civis" de Marx).

 

Parece-me que, ao polarizar bastante, aquela nascia em regime de competição com a alternativa socialista, que ameaçava o domínio eclesial sobre as classes populares, e sobretudo desenvolvia-se no contexto de uma Igreja profundamente marcada pelo conflito com a modernidade (tanto científica como institucional) que a haviam solidamente conduzida a posições conservadoras; aqui, por outro lado, a Igreja de Francisco parece reivindicar o monopólio da crítica ao sistema social, invocando inclusive uma transformação das instituições laicas. Por isso, acredito que seja importante nos perguntarmos o que mudou: terminou a longa crise da relação entre Igreja e modernidade que se estendeu do século XIX até o pontificado de Ratzinger, atravessando e problematizando?

 

Para confrontar-se com tudo isso, conversamos com Gian Luca Potestà, professor de História do Cristianismo na Universidade Católica de Milão e especialista em franciscanismo e profetismo medievais.

 

Eis a entrevista.

 

Em primeiro lugar, podemos esclarecer rapidamente o que é uma encíclica e por que ela é tão importante no curso de um pontificado? Qual a diferença entre a intervenção de Francisco por meio de uma encíclica - que parece mais meditada e aponta para encíclicas-manifesto de caráter geral - e aquelas de seus predecessores?

Por encíclica entende-se uma carta circular, geralmente - mas nem sempre - endereçada por um papa principalmente a igrejas e episcopados. Entre as encíclicas, algumas são por conveniência definidas como "sociais", visto que dizem respeito mais ao estado do mundo do que ao ensinamento doutrinário propriamente cristão. A mais famosa continua a ser a Rerum novarum, na qual Leão XIII, no final do século XIX, abria os olhos da Igreja para o mundo do trabalho, reivindicando um espaço de análise e intervenção em competição com o crescimento impetuoso dos movimentos socialistas e das organizações sindicais.

As sucessivas encíclicas "sociais" foram publicadas principalmente por ocasião de aniversários: quarenta anos depois (Quadragesimo anno), oitenta anos depois (Octogesima adveniens), cem anos depois (Centesimus annus) ... A prerrogativa das encíclicas a partir de João XXIII é que às vezes dirigem-se não só aos cristãos, mas - para recordar dois termos de matriz bíblica que entraram no léxico da Igreja graças àquele Papa - a todos os "homens de boa vontade", em vista de um esforço comum para decifrar "os sinais dos tempos".

Depois de João XXIII, Paulo VI se questionou sobre o problema do título em virtude do qual a Igreja pode pensar em se dirigir a todos os homens de boa vontade. E ofereceu uma resposta ambiciosa: pode falar como "especialista em humanidade". Nessa perspectiva, deixa de se contrapor frontalmente ao mundo, como de fato acontecia desde os primeiros sinais da Modernidade, mas se insere plenamente em seu movimento, na esperança de dirigi-lo sem se contrapor a priori a ele.

A encíclica Fratelli tutti segue esse caminho. O papa se refere ao sentimento comum com o Grande Imã de Al-Azhar, com que se encontrou em Abu Dhabi, assim como na anterior Laudato si' ele havia atribuído a primeira ideia dela ao encontro com o patriarca ortodoxo Bartolomeu. O Papa apresenta-se quase como um primus inter pares, chamado a dar voz com eles à fraternidade humana comum.

À primeira vista, retoma um impulso que veio de João Paulo II (e não muito apreciado por Bento XVI), que com os encontros em Assis entre líderes religiosos quis mostrar que não só as diferentes confissões cristãs, mas o complexo das religiões - muitas vezes um fator de fortalecimento de inimizades e conflitos identitários - podem encontrar um terreno comum para reflexão e oração em vista da paz. No entanto, enquanto aqueles encontros em Assis foram espetacularmente caracterizadas pelo número e variedade de convidados, aqui se trata de encontros e diálogos a dois, cujo fruto está incorporado em documentos pertencentes ao gênero literário mais elevado entre aqueles à disposição do Magistério papal.

 

Como essa encíclica se encaixa em relação às outras duas editadas por Francisco? A primeira - Lumen fidei - aparentemente mais tradicional, mas centrada em um tema controverso da tradição cristã - "ágape" - e a segunda mais resolutamente ambientalista (Laudato si').

O texto é apresentado como uma espécie de summa do pensamento do papa, um pequeno dicionário enciclopédico de seu pensamento, entrelaçado como está de citações tiradas suas intervenções anteriores. Portanto, não pretende ser um texto original, mas marcar um ponto no percurso de um papa que, evidentemente, acredita que chegou a hora de definir a si mesmo. Sua autoridade é inversamente proporcional à crise de prestígio das lideranças tradicionais e mais em geral dos grupos dirigentes políticos e eclesiásticos em todos os níveis, principalmente incapazes de interpretar e orientar os destinos do mundo, de reformar e de se reformar. O papa faz o que faz de melhor: eleva uma voz profética, não no sentido de prever o futuro, mas como intérprete do presente à luz do desígnio expresso na Revelação cristã.

 

Aqui está: este parece-nos um ponto crucial, que pode e deve questionar também as esquerdas que se colocam um projeto de transformação social e política. O "profetismo" papal parece se basear precisamente, como você diz, na total ausência de vozes alternativas. Na encíclica, esse "profetismo" se expressa em uma visão profundamente realista da realidade. O papa parece reivindicar essa visão como objetiva e científica. Numa passagem-chave, ele reivindica uma leitura contextual e histórica da exclusão social, representada no conceito cristão (ambivalente) de pobreza (“Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incômodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto.").

Em várias passagens a origem do problema é claramente identificada, tanto em um sistema econômico – o capitalismo (“Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas”, leia-se os excluídos) - tanto na sua carapaça ideológica contemporânea - quanto na ideia do trickle-down, de gotejamento de riquezas a favor de todos, que foi também a bandeira da "Terceira Via" e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (com todos suas pequenas e gloriosas complicações locais), que se pensava ter sido varrido pela história com a candidatura de Jeremy Corbyn ("O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘transbordameno’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social.”).

E depois está a resposta, claramente indicada: uma resposta que é de militância – fala-se de luta - e de um modo de vida alternativo - a solidariedade, compreendida em um largo espectro: “Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem”. E no fundo, contínua e ameaçadora, a crise climática...

O diagnóstico do estado do mundo é preocupante. Por toda parte faltam esperanças: “sonhos desfeitos em pedaços”, lemos na encíclica, que atribui um valor positivo ao termo “sonho” pois o vê não como fuga, mas como fonte e projeção do desejo, elemento propulsor de toda realização humana.

O Papa Francisco tenta injetar vida nova nas palavras humanas e cristãs: fraternidade, amor, justiça, gratuidade, verdade. Faz isso assumindo um ponto de vista preciso e determinado: "o olhar de baixo", dos subterrâneos ao arranha-céu da miséria. Os desequilíbrios e as desigualdades são considerados do ponto de vista dos sujeitos, povos e indivíduos mais pobres, mais fracos e mais frágeis.

A primeira resposta a ser dada à fragilidade é o trabalho, trabalho para todos. Além disso, as fragilidades são infinitas, e o papa acusado de populismo, é delicado mesmo quando fala das fragilidades pessoais e dos percursos para superá-las. Seu olhar, no entanto, se detém especialmente nos grandes sujeitos coletivos, principalmente nas massas despossuídas e sem voz de migrantes das quais defende o direito de querer viver melhor, quaisquer que sejam as razões pelas quais se colocam em movimento. Não só guerras e perseguições políticas e étnicas, mas também razões econômicas "simples": a migração é um direito que deve ser reconhecido como tal, que deve ser realizado oferecendo apoios e garantias que permitam um acolhimento digno e uma integração pacífica nos países onde os migrantes se estabelecem até a concessão da cidadania pelo país anfitrião.

Ao colocar a parábola do Samaritano no centro, a encíclica lê antes de tudo uma denúncia da indiferença - do "coração endurecido", na tradição bíblica e cristã. Um pressuposto ideológico implícito da atual indiferença é que não existam outros caminhos possíveis de vida fora daquele marcado pelo modelo capitalista que aos poucos foi se afirmando triunfantemente como incontestável, quase como se fosse um percurso natural e inelutável, que nem mesmo uma pandemia das dimensões atuais parece poder arranhar nas consciências.

Um modelo de vida que leva a devorar o mundo. E ao denunciar a catástrofe ambiental, Francisco destaca os limites de uma ideia de democracia que corre o risco de ser puramente nominal se convoca apenas ao voto e exclui toda forma (integrativa ou substituta) de ampla participação e de subjetividade ativa no plano comunitário. Mais do que um profeta, é um apocalíptico, na sua constante recordação da iminência do fim. Contra a doutrina do gotejamento - segundo a qual o crescimento econômico desmedido dos ricos levaria no longo prazo e proporcionalmente a algum benefício também para os pobres - destaca como esse modelo pressupõe o desperdício e produz descartados.

Ao reler a parábola do Samaritano, a encíclica lembra que o Samaritano antes de tudo oferece o tempo de sua atenção ao viajante roubado e espancado. O valor do tempo, um ponto central para o Papa Francisco, talvez também motivado por seu imprinting de jesuíta (a confessio generalis a que Inácio se submeteu em Montserrat durou três dias; e seus Exercícios Espirituais, ainda hoje amplamente praticados, requerem quatro semanas inteiras para um percurso de progressiva descoberta e verificação da vocação cristã).

Em uma entrevista há alguns anos com o diretor da revista Civiltà Cattolica, o Papa dizia: “não devemos privilegiar os espaços de poder em relação aos tempos, inclusive longos, dos processos. Temos que iniciar processos ao invés de ocupar espaços. Deus se manifesta no tempo e está presente nos processos da história, o que favorece ações que geram novas dinâmicas, exige paciência e espera”. Em si, o espaço é o lugar onde as microfísicas do poder se cristalizam quase naturalmente: na determinação dos espaços se consolidam as relações de dependência e as formas de exclusão.

 

Na encíclica, parece haver um esforço para ressignificar o quadro conceitual do político no presente: o espaço, é claro, mas também o tempo e a linguagem. Parece-me entrever tentativas não tanto de colocar-se ao lado do debate contemporâneo - aqui, evidentemente, o contexto visa a discussão sobre o aceleracionismo e o uso das mídias sociais - mas de uma intervenção radical e direta. Também aqui parece-me ver uma novidade, pelo menos no contexto da reflexão pública da Igreja, que também fundou a sua presença milenar na sociedade na proteção do espaço público da palavra.

Na atual condição de exasperada competição global, o tempo tende, por sua vez, a ser privado de seu desdobramento positivo, de sua flexibilidade potencial, que permite descobrir a si mesmos, interessar-se pelo outro e dialogar com ele, ou simplesmente permanecer em silêncio. No tempo acelerado e como tal tornado vão, a comunicação torna-se difícil. “A velocidade do mundo moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que o outro diz - afirma a encíclica - e está no meio do seu diálogo já o interrompemos e queremos replicar enquanto ele ainda não acabou de falar”.

Por sua vez, a linguagem, se se estende no tempo, é um meio de conhecimento e compreensão, pode dar suporte à fragilidade e insegurança do outro: “sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo”. Aceleradas e simplificadas, as palavras das mensagens tendem - se deixadas por conta própria - a se agrupar e espalhar conceitos truncados e esboços de rancor que no passado teriam parecido inexprimíveis. As mensagens assumem tons ora violentos e imperiosos, ora definitivos e à primeira vista irrefutáveis, ainda que ninguém seja capaz de descobrir suas fontes e estabelecer sua autoridade. O texto abraça a denúncia de um documento dos bispos da Austrália: “não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e trazer à tona o que há de pior nas pessoas”.

Essas são afirmações que são de alguma forma já conhecidas e até mesmo tidas como certas; e, no entanto, é significativo que estejam depositados em um documento atribuível ao gênero literário mais elevado da Igreja romana e, como tal, sejam destinadas a ocupar um lugar na pastoral eclesiástica dos anos vindouros.

Como alternativa à linguagem empobrecida e trivializada das redes sociais, a encíclica reivindica, antes de mais nada, que "fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana”. Disso derivam os apelos à mudança de estilo, à prática da ternura e da gentileza, palavras nas quais a imprensa tanto insistiu nestes últimos dias, como se fossem coisas novas, quando na realidade remetem a reflexões que cresceram nos últimos anos nos interstícios entre teologia, filosofia, literatura e espiritualidade. .

 

Podemos chegar às raízes "políticas" da encíclica, se você concordar. Surpreendentemente, é no quadro dessa análise realista, mas também profundamente enraizada nos debates da atualidade, que a análise da migração é apresentada. De acordo com o papa - com uma clareza difícil de rastrear em outro lugar - a distinção entre migrante econômico e refugiado não existe, mas todos têm o direito de se deslocar para melhorar a própria condição. Sobre esta base, a resposta cultural ao mundo globalizado - em que também aparece uma migração dos "pobres", da "solidariedade" contra aquela apenas do mercado - parece-me ser procurada nos instrumentos de uma verdadeira democracia, que se quer participada, e na uma sociedade “poliedrizada” - e aqui também a visão é nova e forte, porque há a rejeição da hibridização, mas uma proposta que parece ir em uma direção pós ou descolonial (justamente, uma identidade poliédrica). Não acha que aqui exista sobretudo uma continuidade e um desenvolvimento com as ideias - elas mesmas poliédricas - do chamado movimento no global do início dos anos 2000? Afinal, esta encíclica é o desenvolvimento mais coerente do encontro com os movimentos populares de 2016?

Recorrentemente acusado de populismo argentinizante, o papa alerta contra os nacionalismos, soberanismos e populismos, oferecendo sua declinação do termo "identidade": um termo não precisamente esclarecido ou problematizado na época do papa polonês, quando era brandido para reivindicar tanto a identidade cristã (negada) da Europa, quanto - por parte dos movimentos católicos a reboque - para se contrapor e contar-se. Se a identidade é concebida como um muro compacto, desprovido de brechas e fendas, então - seja uma identidade étnica, nacional, regional, religiosa, católica ... - assume na ordem do discurso a função de instrumento útil para despertar medos ancestrais, para polarizar e excluir.

Fratelli tutti oferece outra leitura da identidade: cada um tem sua cota de verdade, diz o papa com o Grande Imã, a identidade se constrói por meio de uma ação contínua de construção e desconstrução da própria. No fundo, está presente outra palavra paulina e inaciana, trazida de volta à moda pelo cardeal Martini: o discernimento, ou seja, a identificação do que deve ser conservado e do que pode ser abandonado em favor das contribuições que vêm dos outros.

A encíclica certamente não era a sede, mas tal perspectiva exigiria um estudo teórico, uma vez que toda religião aspira ao absoluto, e invocar a tolerância recíproca certamente não é suficiente para desarmar armas ou construir novas identidades. Superada a ideia, já corajosamente proclamada por determinados setores católicos, da "mistura" identitária (termo enganoso, pois pressupõe a existência de identidades puras e incontaminadas), o Papa afirma que a nova identidade deve ter a forma de um poliedro.

Uma vez criada a figura, resta verificar a viabilidade deste corpo sólido e projetá-lo concretamente. Mas aqui toca-se em um ponto no limiar do qual a encíclica se detém. Não só ela, na verdade. Há uma falta generalizada de cenários teológicos e filosóficos e de percursos exegéticos convincentes, que estejam à altura das questões em jogo. Chama a atenção, por outro lado que numa encíclica, promulgada em Assis no dia do aniversário da morte de Francisco, restem tão rarefeitas as referências ao seu estilo e, em geral, à tradição de pensamento que dele se originou. A tal ponto que alguns intérpretes apressados puderam afirmar que a ênfase colocada pelo papa na fraternidade universal seria uma homenagem ao Iluminismo, enquanto se refere, na verdade, ao centro vivo da experiência da paternidade divina vivida por Francisco de Assis. Na verdade, tudo está - para usar as palavras do franciscano Eloi Leclerc referidas quase de passagem no início da encíclica - em “aproximar-se das outras pessoas com seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas".

 

Entre esses "precipitados", reconheço, eu também estou: no início e na insistência da linguagem da encíclica não pude deixar de interrogar-me sobre este conceito complexo e variegado de fraternitas. É um conceito caro à tradição franciscana, como é evidente (os membros da Ordem dos Menores se chamam de Frades, como se sabe), mas que se encaixa bem na lacuna entre o mundo do clero e o mundo laico (e aqui me refiro às confraternite, associações precisamente laicas).

Mas é um conceito que também se secularizou, que constituiu, na religião política da revolução, um corretivo solidário de liberté: deveríamos nos perguntar se não estamos tratando aqui de um "franciscanismo" millenial.

Mas deixo as tiradas espirituosas de lado, porque creio antes que o texto de Fratelli Tutti nos questione em profundidade, também porque - e aqui teria que ser aberto toda outra vertente de reflexão - é acompanhado por uma igreja militante, que intervém no setor social e que pode se tornar finalmente ativa na crítica à ordem social existente.

Mas também do outro lado do Tibre é necessário reativar nós e práticas, ainda que só para não ficar para trás na crítica e na práxis. Mario Tronti o fez recentemente refletindo sobre o fato de que o privilégio subjetivo do trabalhador de fábrica, que em uma fase específica do Ocidente superou a marginalização para se tornar classe dominante, encalhou para se corrigir na ideia de que aquela classe trabalhadora deve ser considerada herdeira de toda, e antiga, história dos subordinados e dos últimos do Evangelho. Nisso, os pobres não dão mais o nome aos Lúmpen e aos excluídos do progresso, mas se candidatam a sujeito que marca a sua presença na história.

 

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