Como 100 anos atrás, uma encíclica papal tenta jogar luz em um tempo de escuridão

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05 Outubro 2020

Uma grande crise global abalou o mundo, deixando milhões aflitos e semeando medo em todo lugar. O choque polarizou sociedades, radicalizou opiniões e aumentou as tendências para um novo tipo de políticos – barulhentos, brabos, fundados na demonização dos outros e com promessas de restaurar a glória nacional que foi perdida.

A menos que algo dramático mude, o cenário parece montado para um conflito longo e sangrento. Nesse contexto, um Papa escreve uma carta encíclica tentando oferecer uma alternativa antes que seja tarde demais.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 04-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Essa poderia ser facilmente uma descrição do papa Francisco e Fratelli Tutti, a nova encíclica que ele assinou ontem em Assis e que foi divulgada hoje pelo Vaticano. Na verdade, porém, é o pano de fundo da Quadragesimo anno, a encíclica social publicada pelo papa Pio XI em 1931, agora há quase um século. Foi escrita durante a Grande Depressão, Benito Mussolini estava firmemente no controle da Itália e Adolph Hitler caminhava inexoravelmente para o poder na Alemanha.

Na encíclica, Pio XI expôs as insuficiências do capitalismo de livre mercado e do comunismo socialista e tentou esboçar uma terceira via, enraizada no ensino social católico tradicional, mas sensível às realidades da época.

Em certo sentido, Quadragesimo anno foi a tentativa de Pio XI de desarmar a bomba antes que ela explodisse (ficaria cada vez mais explícito seis anos depois em Mit Brennender Sorge, a encíclica de Pio XI denunciando o nacional-socialismo). Esses esforços falharam, e a explosão que o papa Pio viu acontecer acabou sendo pior do que ele mesmo poderia ter imaginado.

O tempo dirá que impacto Fratelli Tutti pode ter, mas os paralelos são surpreendentes.

Esta é a terceira carta encíclica de Francisco, depois de Lumen Fidei em 2013 (um texto amplamente preparado pelo papa emérito Bento XVI) e Laudato Si’ em 2015, e de longe a mais abrangente. Tem-se a sensação de que é quase o testamento social e político deste papa, uma síntese de todo o seu papado em pouco mais de 40 mil palavras.

Fratelli Tutti contém uma miríade de pontos e, sem dúvida, estará sujeita a mil interpretações diferentes. Alguns podem optar por vincular certas passagens a eventos atuais – será terrivelmente tentador para muitos estadunidenses, por exemplo, relembrar o último debate de Trump e Biden ao ponderar o parágrafo 15: “Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição”.

Para registro, Francisco escreveu Fratelli Tutti bem antes dos competidores estadunidenses entrarem em cena, e claramente seus horizontes são muito maiores do que os Estados Unidos. Por falar nisso, ele nos diz no parágrafo 7 que começou a carta antes mesmo de a atual crise da covid-19 eclodir.

Talvez a melhor maneira de enquadrar a encíclica é defini-la como uma meditação expandida sobre a vida política e econômica no início do século XXI, incluindo o impacto da crise do coronavírus. Francisco vê um desafio entre duas alternativas falhas: individualismo neoliberal e o nacionalismo populista. Sua “terceira via” é uma ética social da fraternidade humana, enraizada no Evangelho, na parábola do Bom Samaritano, para os cristãos.

O diagnóstico do Papa das contradições internas do neoliberalismo é especialmente preciso no parágrafo 168:

“O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal”, e continua: “A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”.

É importante frisar que a crítica de Francisco ao hiper-individualismo não é somente em matéria econômica, mas cultural, e isso não é sobre esquerda e direita. Um progressismo secular insistente sobre os direitos ao aborto é tão criticado quanto um “neoliberal” – como Francisco faria quando um country club do Partido Republicano reclamasse da intervenção do governo. Ambos refletem o que Francisco chama de “fria, confortável e globalizada indiferença” com os outros.

Como um antídoto ao neoliberalismo, papa Francisco apresenta a tradicional noção católica de destinação universal dos bens, que significa o direito à propriedade privada também carregada de uma “seguridade social”. Isso é defendido por Papas desde Leão XIII no final do século XIX, embora Francisco ofereça uma nova reviravolta com a conexão para questões da soberania nacional, emergidas pelos debates sobre imigração.

“Se o olharmos não só a partir da legitimidade da propriedade privada e dos direitos dos cidadãos duma determinada nação, mas também a partir do primeiro princípio do destino comum dos bens, então podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar”, escreve no parágrafo 124.

Quanto ao tipo de populismo de hoje, as avaliações críticas oferecidas em Fratelli Tutti são numerosas demais para mencionar. Basta citar a denúncia do parágrafo 11 de “nacionalismo míope, extremista, ressentido e agressivo”, que dá o tom para muito que se segue.

Qualquer pessoa que acompanhe as discussões políticas hoje em dia, qualquer pessoa que assista ao noticiário ou tenha uma conta no Twitter, certamente pode confirmar o diagnóstico do Papa de que essas trocas são cada vez mais desagradáveis, exibindo uma espécie de raiva aberta que nos diz que algo está seriamente errado.

“Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune”, escreve Francisco no parágrafo 45.

O remédio proposto pelo papa, a fraternidade humana, pode parecer um pouco confuso, e Francisco não oferece um projeto detalhado. No entanto, ele dá dicas para uma plataforma ao longo do caminho: cuidado com os idosos, combate ao racismo e ao sexismo, compaixão pelos imigrantes, perdão da dívida para nações empobrecidas, um papel forte para a ONU e para alianças regionais e posições abolicionistas sobre guerra e pena capital.

Mais do que qualquer outra coisa, as questões específicas tratadas em Fratelli Tutti parecem servir para ilustrar uma ética da fraternidade, que começa com a rejeição da agressão como um meio de se relacionar com os outros – e a tendência à agressão, ele acredita, foi feita significativamente pior pelo coronavírus e a mudança para relacionamentos cada vez mais “virtuais”.

Ele é igualmente claro que sangue nas ruas, em nome de qualquer causa, não é a resposta: “Manifestações públicas violentas, de um lado ou de outro, não ajudam a encontrar soluções", escreve no parágrafo 232.

Sem enganos, Francisco não é extremamente otimista sobre para onde as coisas estão tendendo. Ele elogia vários pontos de luz, incluindo o surgimento de movimentos sociais populares que ele liricamente chama de “poetas sociais”. No entanto, é revelador que mesmo as seções de Fratelli Tutti ostensivamente dedicadas à esperança divaguem rapidamente em vários lamentos.

Em resumo, Francisco vê estas duas grandes “pandemias sociais” – indiferença individualista privilegiada e populismo raivoso cego, aparentemente transformadas em formas ainda mais fortes pela pandemia literal do coronavírus – apontando o estágio de calamidade, a menos que novas forças surjam para contra-atacá-las.

Rapidamente, o biógrafo papal Austen Ivereigh não é otimista sobre o provável resultado.

“Assim como os papas dos anos 1920 e 1930, Francisco vê um escuro caminho pela frente, e ele está criando um espaço para Cristãos e outros de boa vontade para ocupá-lo no conflito vindouro”, afirmou Ivereigh por e-mail. “Assim como esses papas, talvez ele não seja escutado até que estejamos descendo ainda mais por essa estrada escura”.

Por outro lado, o historiador James Chappel, autor do livro “Catholic Modern: The Challenge of Totalitarianism and the Remaking of the Church”, de 2018, argumenta enfaticamente que assim como nos anos 1920 e 1930, o Papa salvou a Igreja ao mudar a condenação da modernidade para uma tentativa de viver com ela.

“A batalha contra o totalitarismo está concluída, os católicos venceram, e a Igreja contemporânea foi moldada por essa batalha”, escreveu Chappel.

Terá o papa Francisco fornecido à Igreja os recursos para entrar em outro grande conflito global e sair do outro lado, vivo e com força? Só o tempo dirá, mas quando essa avaliação for feita, a conversa quase certamente começará com Fratelli Tutti.

 

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