O Ensino Social da Igreja em constante atualização. O que virá depois da pandemia?

Foto: CNS. Edição: Wagner Azevedo | IHU

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 29 Agosto 2020

O Ensino Social da Igreja, ou a Doutrina Social da Igreja, segue em constante atualização. O termo surgiu a partir da encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, em 1891, que se preocupava com a industrialização desenfreada e a condição de vida e trabalho dos operários no novo sistema de produção. Desde então, a cada pontificado, cada transformação da sociedade, em sua organização geopolítica, ideológica e produtiva, gerava novos problemas sociais que exigiam novas respostas de ação social da Igreja. Para o papa Francisco “a doutrina não é estática”, e tem demonstrado isso em um intenso ritmo durante o seu governo. Compreendendo os desafios que se apresentam, o Papa preparou uma Comissão para estudar as consequências da pandemia do coronavírus para o mundo. Nesta semana, divulgou-se que em outubro uma nova encíclica deve ser publicada, um novo chamado às nações pela “fraternidade e a cura do mundo”.

 

Um breve histórico

Em 1931, dois anos depois da Grande Crise de 29, Pio XII escreveu a encíclica Quadragesimo anno, em continuidade a Rerum Novarum. O Papa acusava um “despotismo econômico”, do qual poucos se aproveitavam para acumular riquezas e “um poder imenso”.

40 anos depois, João XXIII publica duas encíclicas que dialogam as novas mudanças do mundo. Em Mater et Magistra (1961), o Papa apresenta mediação entre o sistema capitalista e o socialista, instituindo uma grande novidade de método: o “ver, julgar e agir”, que descontrói grandes ideologias, e atualiza a teoria e a prática para a realidade particular observada. Dois anos depois, Pacem in Terris (1963) aprofunda o problema da desigualdade entre os países, a exploração e as tensões que a ordem bipolar causava sobretudo entre os mais pobres. De acordo com o frei dominicano Carlos Josaphat, Roncalli “inaugura uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais”. A carta apresenta uma série de direitos e deveres universais com que virão a influenciar diversos movimentos sociais pelo mundo, inclusive no Brasil.

O pontificado de Paulo VI inicia em meio ao Concílio Vaticano II e os novos debates da Igreja com a modernidade. A encíclica Populorum Progressio é publicada em 1967, “completando o Concílio”, segundo o jesuíta e economista Gianpaolo Salvini. Em um momento em que as colônias na África e Ásia conquistavam suas independências, a encíclica atualiza-se para uma solidariedade global, preocupada com “o desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas e a ignorância”. Paulo VI fala de um “desenvolvimento solidário”, de colaboração pacífica e desinteressada, entre os homens e o Estado.

Iniciado o pontificado em 1978, João Paulo II encontra a ordem internacional da Guerra Fria em colapso e o surgimento de um capitalismo financeirizado. Em Laborem Exercens (1981), Wojtyla trata o trabalho como atividade que “multiplica a dignidade do homem”, sendo esta a garantia do seu sustento e a marca distintiva da humanidade. Em Centesimus Annus (1991) João Paulo II afirma a “falência do comunismo” e a “vitória do capitalismo”, este o sistema a que todos os países e povos devem seguir, se a liberdade humana integral estiver no centro, com um enquadramento jurídico que a garanta – sugerindo ser melhor uma economia de mercado, e não capitalista.

No pontificado de Bento XVI, um ano depois da crise de 2008, a publicação da encíclica Caritas in Veritate trata do desenvolvimento humano integral. A caridade é uma ação central para o ensino social da Igreja. Para Stefano Zamagni, que fez parte da equipe de elaboração da encíclica, três pontos são centrais: “uma economia de mercado voltada para o bem comum”, a “fraternidade franciscana” e a desigualdade como “perturbação ética”.

 

O ensino social de Francisco - Terra, teto e trabalho

Quando Jorge Mario Bergoglio torna-se Papa, o mundo estava em ebulição. Os efeitos da crise de 2008 ainda pipocavam pelo mundo, no Oriente Médio acontecia a Primavera Árabe, a Guerra ao Terror intensificou os conflitos armados e as respostas de grupos terroristas, a forte crise desencadeada em países como o Iraque, Síria e Líbia intensificou os movimentos migratórios e como reação gerou o aumento dos nacionalismos e da xenofobia e, ainda, o crescimento da economia chinesa colocou em xeque a hegemonia ocidental.

Dentro desse contexto, a Igreja encontrava-se em uma crise sem precedentes. Acometida por escândalos de corrupção e de abusos sexuais, a instituição perdia relevância na opinião pública, confrontada pelo crescimento de outras religiões no Terceiro Mundo e a secularização na Europa. Para recuperar o prestígio da Igreja, o Papa não espera a situação amornar, mas encara com protagonismo os problemas sociais e políticos – enquanto lentamente resolve as disputas internas da Cúria.

O cardeal Cláudio Hummes conta que no momento da eleição do cardeal Bergoglio como novo Papa, chamou-o e disse-lhe: “não se esqueça dos pobres”, inspirando-o a assumir o nome de Francisco. Eis o primeiro ato do compromisso social deste pontificado.

A sua primeira viagem para fora de Roma foi para a ilha de Lampedusa, em julho de 2013, ao encontro dos refugiados que atravessam o mar mediterrâneo em condições arriscadas. Em sua homilia, sobre um altar em forma de barco e um báculo de madeira, disse: “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”.

Pouco dias depois, no voo de sua primeira viagem internacional, para a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, protestou contra a “cultura do descarte” que desemprega os jovens e sobrecarrega os idosos. Já no Brasil, em encontro privado com os bispos, pediu respeito e cuidado para com a Amazônia, para que não “seja explorada de forma indiscriminada, mas sim transformada em um jardim”.

Ao final de 2013, publica a carta encíclica Evangelii Gaudium, resgatando os conceitos dos discursos passados e expressando uma contundente crítica ao atual sistema econômico: “esta economia mata” (EG 53). Essa expressão será reafirmada em 2015, no 2º Encontro Mundial com os Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Neste encontro, Francisco discursa a quem ele chama de “poetas sociais”, os criadores de um novo mundo, um novo sistema econômico e político, que se constrói desde baixo. Aos Movimentos Populares, Francisco consolida a defesa de três direitos sociais básicos: “os três T’s – terra, teto e trabalho”.

O Papa incide diretamente contra a ordem mundial e a ideologia do sistema capitalista, e a necessidade de mudança. Porém, esquiva-se de qualquer comparação marxista. Francisco, reitera por diversas vezes que o compromisso com os pobres é evangélico, não sociológico, nem ideológico. E dá um passo adiante em junho de 2015 com a encíclica Laudato Si’. Entra em evidência o conceito de ecologia integral, uma proposta de pensamento integral, que supera o “excesso de antropocentrismo moderno”. Uma relação integral com a Criação, que perpassa por todas as dimensões, da política à economia, da espiritualidade às relações entre as nações, valoriza o ser humano e todas as demais criaturas.

Em 2018, o Vaticano publica o documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones, no qual são feitas duras críticas ao sistema financeiro desde o ponto de vista ético. Em entrevista à IHU On-Line, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo afirma que o documento: “é uma combinação — e é muito raro ver isso — entre uma visão cristã e ética e uma dimensão propriamente técnica, ou seja, o documento sabe o que está dizendo, e não desconhece que esses fenômenos são constitutivos e orgânicos desse capitalismo. O documento pede e sugere uma transformação muito mais profunda”.

Essa proposta de transformação impulsionou a convocação do evento “A Economia de Francisco”, para jovens economistas, comprometidos a pensar um modelo econômico, “que não mata, e faz viver”. O evento está adiado devido à pandemia, mas contava com mais de 3 mil inscritos de todo o mundo. As atividades seguem sendo desenvolvidas remotamente e são conduzidas pela perspectiva da economia integral, com temas transversais.

Recentemente Francisco também expressou a preocupação com o processo de judicialização da política, o lawfare, muitas vezes utilizado como ferramenta de desestabilização dos países no Terceiro Mundo e de ataque aos direitos sociais. Em mensagem à Cúpula Pan-Americana de Juízes, em junho de 2019, afirmou que “O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, geralmente é utilizado para minar os processos políticos emergentes e propor a violação sistemática dos direitos sociais”.

 

O Ensino Social Católico sob a perspectiva da pandemia

Francisco é consciente que a pandemia traz consequências sem precedentes para o mundo, dado o processo de crise econômica e política que já se vivia com o crescimento das desigualdades sociais, a nova precarização do trabalho pelo capitalismo de plataforma, a crise do sistema multilateral e o acirramento das tensões entre as duas maiores potências econômicas do mundo.

Para avaliar esse processo, criou uma Comissão, chefiada pelo cardeal Peter Turkson e o padre argentino Augusto Zampini. Segundo Zampini, este grupo de trabalho “ocupa-se da análise sobre o mundo pós-Covid-19, levando em conta a dimensão ecológica, econômica (particularmente o trabalho), os sistemas de saúde, e a segurança (nacional, cibernética e alimentar), e alimenta os demais grupos com sua reflexão e linhas de ação concretas”. Na avaliação do grupo, “a pandemia mudará a ordem mundial, e a Igreja precisa fazer com que seja para melhor”.

O cardeal Peter Turkson, em reflexão publicada pela IHU On-Line, expressa que a crise do coronavírus é uma ilustração de tudo que o papa Francisco vinha ensinando. “A multiplicidade das crises, que convergem na situação atual e ilustram o ensinamento do Papa Francisco sobre a interdependência de tudo, explica também por que o ensinamento central de Laudato si’ é a ‘ecologia integral’”, escreve.

Outras manifestações que vem do Vaticano são como as do cardeal Luis Antonio Tagle, que pediu publicamente para que os países ricos perdoem as dívidas dos países pobres.

 

Curar o mundo

O papa Francisco, agora enclausurado pela pandemia, tem aludido às transformações via transmissões on-line da Audiência Geral, em um ciclo de catequeses intitulado “Curar o mundo”.

Na catequese de 12 de agosto, reafirmou que tudo está interligado e interconectado, assim como todos são vulneráveis. Por essa perspectiva que alude à harmonia social, criticando o que já dizia no início do pontificado sobre a globalização da indiferença. “Indiferente: eu olho para o outro lado. Individualistas: olhar apenas para o seu próprio interesse. A harmonia criada por Deus nos pede para olhar os outros, as necessidades dos outros, os problemas dos outros, para estarmos em comunhão”, afirmou.

Em 19 de agosto, avaliou que “a pandemia acentuou a situação dos pobres e a grande desigualdade que reina no mundo. E o vírus, sem excluir ninguém, encontrou grandes desigualdades e discriminações no seu caminho devastador. E aumentou-as”. E alertou: “a pandemia é uma crise e de uma crise não se sai iguais: ou saímos melhores ou saímos piores. Nós deveríamos sair melhores, para melhorar as injustiças sociais e a degradação ambiental. Hoje temos uma oportunidade de construir algo diferente. Por exemplo, podemos fazer crescer uma economia de desenvolvimento integral dos pobres e não de assistencialismo”.

Na audiência de 26 de agosto, reforçou as críticas ao capitalismo e o comparou a uma pandemia. “A economia está doente. Ela ficou doente. É o fruto de um crescimento econômico injusto – essa é a doença: o fruto de um crescimento econômico injusto – que ignora os valores humanos fundamentais. No mundo de hoje, poucos riquíssimos possuem mais do que o resto da humanidade”, afirmou. E ao final convocou a comunidade cristã para um compromisso pela justiça social: “lembrem-se: não se pode sair de uma crise iguais, saímos melhores ou saímos piores. Essa é nossa opção. Depois da crise, continuaremos com esse sistema econômico de injustiça social e desprezo pelo cuidado com o meio ambiente, com a criação, com a casa comum?”.

 

Renda Universal: contradições com a ética do trabalho?

A encíclica Laborem Exercens é o mais enfático documento da Igreja sobre a dignidade e dignificação do trabalho para a pessoa humana. Tal perspectiva perdura na moral e ética do ensino social católico. O trabalho digno, dignifica, e deve ser gerador do sustento do trabalhador.

Porém, Francisco pela primeira vez manifestou sua defesa por uma renda básica universal. Na mensagem de Páscoa aos movimentos populares reconhece: “talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos”.

No entanto o termo “salário universal” pode ser ambíguo, como destaca o economista Gaël Giraud, podendo se referir a uma renda básica ou a um salário mínimo. No entanto, entende que Francisco convida aos trabalhadores a pensar o que lhes é necessário, em mais um movimento de trazer a periferia para o centro, para pensar a economia da sociedade.

Giraud também avalia os problemas teologais e doutrinários de uma renda universal. Embora não dê conclusões, pensa um caminho através da partilha: “Por que não imaginar que uma fração da receita proveniente da exploração de nossos bens comuns globais seja redistribuída para financiar uma renda básica? Não seria este um meio concreto e eficaz de honrar o destino universal dos bens, cara aos Padres da Igreja e à doutrina social da Igreja?”.

 

E o futuro? Uma nova encíclica em outubro

Outras figuras importantes para repensar a doutrina social são algumas lideranças de prestígio com Francisco. O prêmio Nobel Joseph Stiglitz, a presidente do Fundo Monetário Internacional Kristalina Georgieva e o secretário-geral das Nações Unidas António Guterres. Embora estes não sejam tão enfáticos na crítica à atual ordem mundial, como é o Papa, compreendem o esgotamento desta e a necessidade de ser reformulada.

Guterres, em discurso de homenagem a Nelson Mandela, em meados de julho, reconheceu a necessidade de um “novo contrato social” para superar as desigualdades. “Um novo contrato social nas sociedades permitirá que os jovens vivam com dignidade; garantirá que as mulheres tenham as mesmas perspectivas e oportunidades que os homens; e protegerá os doentes, os vulneráveis e as minorias de todos os tipos”, afirmou.

E como propostas concretas, reforçou o coro pela renda básica e direitos sociais universais: “Um mundo em mudança requer uma nova geração de políticas de proteção social com novas redes de seguridade que incluam a cobertura universal de saúde e a possibilidade de uma renda básica universal”.

A atualização do Ensino Social da Igreja segue em curso. Em 15 de setembro, o papa Francisco discursará para a Assembleia Geral da ONU, e para 04 de outubro, dia de São Francisco de Assis, rumora-se que a nova encíclica, que pode ser intitulada “Somos todos irmãos”, será publicada. Os temas principais da nova encíclica devem ser a fome, a desigualdade, o drama dos refugiados e a guerra, as “outras pandemias”. Estas são algumas pistas para o futuro...

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