“Com Pedro, nós fomos nos introduzindo nessa mística do compromisso, da encarnação na vida dos mais pobres”. Entrevista com o padre Saraiva

Dom Pedro | foto: Vatican News

17 Agosto 2020

Nos últimos anos da sua vida, Pedro Casaldáliga foi cuidado pelos agostinianos, que estão na Prelazia de São Félix do Araguaia desde 1980. Um deles foi o Padre José Saraiva, que conviveu com Pedro desde o início de 2015. Ele já tinha trabalhado durante oito anos na Prelazia, na década de 90, na paróquia de Vila Rica, na divisa com o Pará, acompanhando também as comunidades da paróquia de Santa Terezinha.

Pedro sempre foi alguém que marcou a vida do padre Saraiva, desde que com 18 ou 19 anos, ele leu um livro que o encantou com a experiência mística, profética e poética de Pedro. Com o tempo foi descobrindo sua simplicidade, sua confiança no Pai, presente até os últimos momentos. Isso foi se traduzindo nos últimos anos “no testemunho do silêncio, o testemunho da serenidade, o testemunho de não reclamar de nada, nem de ninguém”, um testemunho que foi calando na vida daqueles com quem Pedro convivia.

Para o agostiniano, sem Pedro, “a Igreja do Brasil e da América Latina, não seriam o que são, em termos de avanço, em termos de profecia, em termos de compromisso com os pobres, com os povos indígenas, com o meio ambiente”. Sempre aberto para acolher os mais pobres, fruto de sua identificação com eles, esse foi o povo por quem “ele deu a vida e a morte”. Agora fica o legado, saber “que o Reino de Deus é factível, que pode acontecer e acontece na realidade do nosso povo, da nossa gente”. Também fica a conversão dos agostinianos, que aos poucos foram se “introduzindo nessa mística do compromisso, da encarnação na vida dos mais pobres”. Pedro é “essa semente que vai brotar, que vai germinar e que vai florescer, essa semente que vai produzir muitos e bons frutos para nossa Igreja”.

A entrevista é de Luis Miguel Modino.

Eis a entrevista.

O que tem representado na sua vida o fato de morar com Pedro?

Eu o conheci através de um livro que li, eu ainda era muito jovem, deveria estar na faixa dos meus 18 anos, 19, um livro escrito pelo Edilson Martins, que se chama “Nós do Araguaia”, e ali ele contava com bastantes detalhes, a vida, o compromisso, o testemunho, a vida e a mística de Pedro Casaldáliga. A partir daí, eu comecei a me encantar por Pedro, e também, ainda era recém saído da adolescência, eu vi em um jornal de São Paulo uma foto de Pedro Casaldáliga onde dizia, “Pedro Casaldáliga, o bispo descamisado”.

Foto: Acervo/Padre José Saraiva

Com a vinda dos primeiros agostinianos para cá, eu comecei a me encantar cada vez mais pelo testemunho do Pedro, pela caminhada desta Igreja da Prelazia. Digamos que foi natural ingressar nas fileiras desta Igreja e caminhar com esta Igreja, com este povo daqui do Araguaia, tendo como fundamento o testemunho, a mística e a experiência profética e poética de Pedro Casaldáliga.

Mesmo Pedro estando doente, tendo dificuldade para se comunicar nos últimos anos, o que foi descobrindo dessa mística, dessa poética, nessa convivência diária?

Eu fui descobrindo que é uma mística, uma poética, de muita transparência, de muita simplicidade. Estes dias, quando nós fizemos de todas as maneiras para propiciar um fim mais sereno para o Pedro, com menos dor e menos sofrimento, pelo fato das condições do hospital daqui de São Félix não serem adequadas para um bom tratamento do Pedro, nós, em conversa com os claretianos, com o padre Ronaldo Mazzula, concretamente, decidimos encaminhá-lo para Batatais, e eles lá o acolheram.

Quando Pedro chegou na UTI móvel e foi ingressado na UTI da Santa Casa de Batatais, o padre Mazzula enviou uma foto dele dormindo. Aí, eu escrevi para o padre Mazzula, é como uma criança que se entrega com plena confiança nos braços do pai. Então, essa mística, essa poesia, essa profecia, tem essa essência de simplicidade. Eu tomo como principal nestes últimos anos da sua vida, que o acompanhei, e a sua decadência cada vez maior, pouco a pouco, o seu silêncio. É exatamente esse silêncio, o testemunho do silêncio, o testemunho da serenidade, o testemunho de não reclamar de nada, nem de ninguém. Esse silêncio calou profundo na alma de todos nós que o acompanhamos.

Foto: Acervo/Padre José Saraiva

De fato, essa foi a vida de Pedro, ele foi como um menino que fazia as suas travessuras aqui no Araguaia, porque não dizer na Igreja do Brasil e da América Latina. Mas travessuras boas, que fizeram com que a Igreja iniciasse um novo ciclo. Sem ele, a Igreja do Brasil e da América Latina não seriam o que são, em termos de avanço, em termos de profecia, em termos de compromisso com os pobres, com os povos indígenas, com o meio ambiente. Inclusive um ponto muito importante a ser destacado é que Pedro Casaldáliga se antecipou muito a essa questão ambiental, inclusive o Papa Francisco cita um verso de Pedro na Querida Amazônia.

Pedro sempre quis viver em uma casa de portas abertas. O que isso significava na vida cotidiana de quem morava com ele?

Esse é outro aspecto que se destaca na mística e na vida de Pedro Casaldáliga, também se adiantando ao pontificado de Francisco, uma Igreja de portas abertas, em saída. Pedro foi uma pessoa que as portas da sua casa estiveram sempre abertas para acolher os pobres, para acolher os karajás, os xavantes, os peões, o povo das comunidades que vinham na cidade. Mas também, as portas abertas para deixar entrar e para deixar sair. A casa de portas abertas quer simbolizar essa proximidade, essa comunhão, essa identificação plena e radical com os pobres, os ribeirinhos, os retirantes, os posseiros, os peões, os indígenas, os quilombolas. Esse povo querido e amado por Pedro, por quem ele deu a vida e a morte.

Foto: Acervo/Padre José Saraiva

Qual é o legado que fica na vida desse povo, dos mais pobres, após a partida de Pedro?

O legado que fica é o legado do Reino de Deus, porque na verdade, o que transpareceu nestes dias, mesmo com essa pandemia, não tanto palavras, ainda que Pedro fosse o homem das palavras, mas muito mais a presença de Pedro, que o Reino de Deus é factível, que pode acontecer e acontece na realidade do nosso povo, da nossa gente. Essa consciência, o povo do Araguaia tem.

Na sua vida, na vida dos agostinianos, especialmente na vida daqueles que conviveram com ele, o que é que fica?

O que fica é a conversão, porque os primeiros agostinianos que vieram para cá, eles vieram por conta própria. Em um primeiro momento, esses dois agostinianos vieram por sua conta e risco. Depois, na caminhada com Pedro, é que o nosso Vicariato, e hoje a nossa Província, é que foi assimilando, foi entrando na dinâmica desta Igreja particular de São Félix, e também na dinâmica da mística, da profecia, do compromisso e do testemunho de Pedro. Pouco a pouco, nós fomos nos introduzindo nessa mística do compromisso, da encarnação na vida dos mais pobres. Esse é o grande legado que nós recebemos de Pedro e que nós não vamos perder nunca.

Foto: Acervo/Padre José Saraiva

A emoção, não uma emoção rasteira, de pura superficialidade, mas a emoção que vai fundo, na alma e no coração da gente, de uma pessoa profundamente humilde, simples, mística, essa mística encarnada. Como alguns já disseram, este santo dos tempos atuais, este santo revolucionário, este santo rebelde, esta santa rebeldia que também marcava a vida de Dom Hélder Câmara e outros profetas da América Latina. Isso me marcou profundamente e vai me marcar para sempre, depois que eu conheci Pedro Casaldáliga, depois que eu pude participar de sua passagem definitiva para o Reino.

Foto: Raul Vico

Ele chegou no Araguaia pelas águas do rio e voltou para a eternidade pelas águas do rio. Seus pés estão enterrados lá no cemitério dos peões e dos karajás, seus pés estão voltados para o rio. Ele tem um poema muito bonito, fora aquele que é o seu epitáfio, ele se identifica com as água do Araguaia, eu também sou o Araguaia.

O que é que fica naquele túmulo simples, de terra, lá na beira do Araguaia, o que esse túmulo representa para o futuro?

Esse túmulo representa essa semente que foi lançada naquela terra, essa semente que vai brotar, que vai germinar e que vai florescer, essa semente que vai produzir muitos e bons frutos para nossa Igreja de São Félix do Araguaia, mas também para todo o Brasil, para América Latina, e vai se espalhar pelo mundo inteiro. É o que fica naquele túmulo que recebeu a semente do corpo de Pedro.

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