30 Julho 2020
"Cada parte da vida que resiste ou escapa a essa identificação total é expulsa e indicada como o 'inimigo' que deve ser aniquilado. O antagonismo do inimigo é necessário para o aparato totalitário que sobrevive apenas na homogeneização total do viver - sem distinções, sem diferenças, sem oposições. Hoje, o esquecimento social de Deus e a desatenção pública ao aspecto religioso representam o antídoto salutar contra o grande sonho total da Igreja e do catolicismo", escreve Marcello Neri, teólogo, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 28-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
No catolicismo, em ondas bastante regulares, surge a lamentação pelo esquecimento social de Deus no contemporâneo europeu, por um lado, e pela ausência de atenção coletiva à dimensão religiosa da vida humana, pelo outro. À primeira vista, pode parecer que a situação seja exatamente esta.
A função dessa lamentação é dupla: a de consolação, isto é, de encontrar uma justificativa excepcional para a escassa relevância pública da Igreja; e a de transferir sobre a socialidade comum a responsabilidade pelo desaparecimento de Deus do horizonte da vida de homens e mulheres hoje - especialmente das gerações mais jovens.
Tudo isso marcado pela secreta obsessão com o "número" como um medidor do impacto do catolicismo nos âmbitos da vida em nosso continente. Uma variação um tanto esdrúxula do argumento cartesiano: somos muitos, portanto somos. Lógica bem distante da marginalidade minoritária da qual iniciou a história europeia do cristianismo: aquela do evangelho.
Democracia, poder, legitimidade
Em tudo isso, então, não se consegue entender bem se a preocupação católica pelo esquecimento social de Deus diga respeito justamente a ele, ou seja mais uma indicação de um medo narcisista da Igreja por si mesma - por um "poder" que ela continua a afirmar que possui, mas que não gera nenhuma potência de sua presença histórica.
Por trás desse tipo de argumentação católica está a incapacidade de entender as transformações estruturais produzidas pelo advento da forma democrática na tardia modernidade europeia. A imanência da configuração social geral, acordada no registro de uma efetiva igualdade entre todos, corresponde à rearticulação de toda forma de autoridade que não pode ser tal sem uma legitimidade que sempre deve ser conquistada de novo diante da própria sociedade.
O aspecto indeterminado da sociedade, que não pode mais ser rastreada até um corpo homogêneo e unívoco, representa, portanto, o teste da legitimidade de toda instância que reivindica uma autoridade. Nesse sentido, a democracia é aquela encenação da convivência entre muitos que não precisa de um fundamento necessário para subsistir como tal. Aliás, a própria possibilidade da democracia é dada pela renúncia a esse fundamento - e é precisamente isso que a torna frágil e incerta com relação a outras formas de exercer o poder.
O arquivamento democrático do fundamento necessário abre um espaço simbólico para o próprio poder, que é, portanto, distinto das formas temporárias de seu exercício: o local do poder é um espaço vazio (C. Lefort), de modo que nenhuma instância que o exerça politicamente pode coincidir com ele, nem encontrar no poder exercido sua própria legitimação a latere da indeterminação do social - não homogêneo e nunca perfeitamente coincidente com uma única figura de si.
O problema da Igreja e do catolicismo no mundo contemporâneo é que continua a pensar em Deus como o fundamento necessário do todo; cada uma de suas palavras, seja magistério ou anúncio, ainda é dita à luz dessa lógica da necessidade do fundamento. De fato, trata-se, portanto, de uma palavra sem destinatário. Ainda não estamos à altura de falar da inutilidade de Deus, isto é, explicitá-lo na condição efetiva de seu desejado destino para o hoje da humanidade.
Em busca de destinatários
No entanto, a imagem do Evangelho é cristalina: antes de qualquer palavra sobre Deus, Jesus teimosamente coloca-se em busca de destinatários a quem se dirigir. E é sobre a "condição" efetiva dos destinatários que ele encontra, que modula gestos e palavras que os vinculam à realidade de Deus - como realidade vinculada e testada pela vida concreta dos destinatários a quem se dirige.
O simbólico democrático do local do poder como um lugar vazio e indisponível para qualquer identificação com as instâncias de sua representação, ressoa extremamente consoante com a notícia cristã de Deus: onde o vazio deixado pelo Ressuscitado na história proíbe qualquer instância religiosa ou política que seja, de estabelecer-se nesse espaço identificando-se com o poder de Deus como legitimação indiscutível de si.
Sempre que a Igreja pensa que pode realmente dispor desse poder, isto é, imagina que pode tornar realidade o poder que tira tornando-se indisponível a toda forma de prendê-la, realiza um ato de perfeito niilismo: fundamenta-se no nada e pensa que o nada seja a força inescrutável que garante sua indiscutível legitimidade.
Com o resultado inevitável de ter que agir como instituição totalitária de poder, a fim de não precisar acessar à consciência da maquinação que implementou: ou seja, poder dispor de um poder que é apenas fictício e que só pode ser mantido como tal, unicamente identificando a si mesma o todo da vida humana.
Totalidade e aprendizado
Cada parte da vida que resiste ou escapa a essa identificação total é expulsa e indicada como o "inimigo" que deve ser aniquilado. O antagonismo do inimigo é necessário para o aparato totalitário que sobrevive apenas na homogeneização total do viver - sem distinções, sem diferenças, sem oposições. Hoje, o esquecimento social de Deus e a desatenção pública ao aspecto religioso representam o antídoto salutar contra o grande sonho total da Igreja e do catolicismo.
A inutilidade de Deus que elas afirmam é a salvação da Igreja de si mesma; introduzindo-a em uma lenta aprendizagem de uma autoridade que está sempre em busca da própria legitimação – que não pode mais ser dada por si mesma e que não encontra mais em um fundamento necessário, mas que é provada em sua destinação para uma legitimidade que lhe é acordada de fora de si – colocando-a assim cada vez de novo à prova.
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