A obsolescência das interfaces

Aula por vídeoconferência. Foto: RTVE

15 Julho 2020

 “Uma interface educativa desenhada para a sociedade industrial, há três séculos, não pode funcionar em uma sociedade pós-industrial. A covid-19 não fez mais que evidenciar os seus limites”, afirma Carlos A. Scolari, pesquisador de interativos digitais, transmídia e ecologia dos meios de comunicação.

 

Para Scolari, “a forma que a ‘nova normalidade’ assume depende, em grande parte, da natureza desses macroprocessos de design e do nível de participação que eles permitem aos cidadãos. Como será o redesenho dessas interfaces? Será um projeto de cima para baixo, marcado pela confluência de interesses entre grandes corporações e alguns setores do Estado? Ou será um processo de baixo para cima, participativo e aberto? O redesenho das interfaces é uma tarefa urgente que deve ser realizada sem demora”.

 

Carlos A. Scolari é professor catedrático em Teoria e Análise da Comunicação Digital Interativa no Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha, e coordenador do Programa de Doutorado em Comunicação, da mesma universidade. Sua última publicação é “Media Evolution. Sobre el origen das especies mediáticas” (Buenos Aires: La Marca, 2019).

 

O artigo é publicado por Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona – CCCB, 14-07-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Há tempos que as estruturas básicas de nossa sociedade ficaram obsoletas. A atual pandemia nos faz mais que reafirmar que o mundo que foi desenhado para a sociedade industrial não nos serve para enfrentar os desafios do presente. Por este motivo, é necessário repensar a escola, os partidos políticos, os sindicatos, a cidade e os hospitais. E mais além da mudança tecnológica, falta modificar as relações e os processos.

 

Em sua origem era a interface


Foto: Dan Gunner | Värmsland Museum

Quando alguém fala em “interface”, imediatamente se pensa em um teclado, em um mouse ou em um joystick, e na infinidade de ícones na tela... Esta interface – também chamada de “interface gráfica do usuário” – é o lugar da interação, o espaço de fronteira onde o analógico (o duplo clique no mouse) converte-se em digital (abre-se um ficheiro composto por bits). Porém, a interface gráfica do usuário não se reduz a esse intercâmbio entre o sujeito e a tecnologia: essa relação está mediada por uma “gramática da interação” que, para que as coisas funcionem, deve ser compartilhada pelo designer e o usuário.

 

Esta ideia – interface entendida como uma rede de atores humanos (usuários, designer, etc.), tecnológicos (mouse, teclado, tela, aplicativos, internet, etc.) e institucionais (gramática da interação, empresas, leis, etc.) – pode ser levada muito além da imagem clássica do sujeito frente à máquina digital. Se escalarmos o conceito, podemos considerar a escola como uma interface onde atores humanos (professores, estudantes, diretores, famílias, etc.), tecnológicos (quadro, bancos, livros, lápis, projetores, tablets, etc.) e institucionais (direção do centro, associação de pais dos alunos, departamento de educação, ministério, etc.) mantêm diferentes tipos de relações entre si e levam adiante uma série de processos.

 

Interfaces educativas

 

Há anos se fala da “crise do sistema escolar” e da “inovação educacional”. Rios de tintas e mares de bits correram nos últimos anos sobre esta questão. Já em 2007, Manuel Castells advertia, em um artigo publicado em La Vanguardia: “a ideia de que um jovem de hoje carregue uma mochila com livros e textos entediantes, definidos por burocratas ministeriais, e se tranque em uma sala suportando um discurso irrelevante em sua perspectiva e que tudo isso deve ser aguentado em razão do seu futuro é simplesmente absurda”. Para alguns, a solução passa simplesmente por incorporar “tecnologia educativa” dentro da sala e formar docentes. No entanto, outros creem que o assunto é muito mais complexo e exige outro tipo de enfoque. Talvez um olhar desde a perspectiva das interfaces possa ser útil.

 

Pois bem, por que a escola é uma interface educativa defasada que não sintoniza com a sociedade do século XXI? A escola pública e obrigatória, tal como a conhecemos, foi criada no século XVIII na Prússia para formar cidadãos e, a partir das revoluções industrial e francesa, foi incorporando novos valores e funções. Esta interface pensada para uma sociedade industrial – sua principal missão era formar de maneira homogênea a força de trabalho e discipliná-la – fez água por todo lado. É quase óbvio: uma interface educativa desenhada para a sociedade industrial não pode funcionar em uma sociedade pós-industrial. A covid-19 não fez mais que evidenciar os limites dessa interface educativa criada há três séculos.

 

A quarentena obrigou as escolas a passar em poucos dias a um sistema de formação on-line e a explorar os recursos digitais que tinha à mão. A situação é comum em boa parte dos países, sobretudo nos da Europa mediterrânea e na América Latina: nem os atores, nem os humanos estavam preparados para essa transição. Em função dos atores tecnológicos, nestas semanas de confinamento voltou, de maneira cruel, o velho debate sobre a “desigualdade digital”. Inclusive em Barcelona encontramos estudantes que não tinham conexão em suas casas e precisavam “roubar” a rede wifi dos vizinhos para poder acompanhar as aulas via Zoom.

 

Torna interessante notar que, o que na vida cotidiana dos estudantes seria normal – refiro-me à passagem do “mundo digital” ao “mundo real” e vice-versa por parte das novas gerações –, tenha apresentado tantos inconvenientes quando levado à escala institucional, desde uma carga de trabalho insuportável para todos os atores até uma enorme incompreensão do que devem ser as dinâmicas pedagógicas em um ambiente digitalizado.

 

A universidade, embora nascida antes da escola pública (ao final deste século as mais antigas celebraram mil anos de vida), não é alheia a estas transformações e tensões. O assombroso é que inclusive as inovações que foram introduzidas nas universidades antes da pandemia também devem ser reorientadas. Um exemplo: há menos de um ano, na Faculdade de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona (UPF), inauguramos alguns espaços para o co-working e o trabalho grupal por projetos. Há poucos dias, em uma reunião entre colegas, já se assumia que estes inovadores espaços deveriam ser adaptados à “nova normalidade”. E o mesmo terá que ser feito com outras interfaces educativas e culturais: salas, laboratórios, bibliotecas, livrarias, museus e centros de exposição deverão ser redesenhados para poder seguir funcionando em uma sociedade duplamente “pós”: pós-industrial e pós-pandemia.

 

As interfaces da Modernidade


Rua de Barcelona bloqueada para o lazer. Foto: Ajuntament de Barcelona

Muitas outras interfaces que mostram suas limitações há algumas décadas, como interfaces políticas (partidos) ou interfaces sociais (sindicatos), terão que passar por processos de redesenho se quisermos que continuem cumprindo suas funções representativas. A covid-19 adicionou hospitais e unidades de saúde a esta lista: durante as piores semanas da pandemia, essas interfaces de saúde tiveram que ser redesenhadas em tempo real para lidar com a explosiva entrada de pacientes em seus serviços de emergência.

 

Outra interface que não escapará ao redesenho é a cidade. As interfaces urbanas deverão ser repensadas em todas as suas dimensões, desde a relação entre espaços públicos e privados até os espaços de fluxo e permanência dos pedestres, mantendo o “distanciamento seguro”. Mesmo os espaços urbanos altamente inovadores, como as “super ilhas” de Barcelona, assim como as novas salas de co-working da UPF, não estavam preparados para o mundo pós-pandemia e terão que ser redesenhados.

 

Quase todas as interfaces mencionadas (a escola pública e obrigatória, os partidos políticos, os sindicatos, os hospitais) foram criadas durante a Modernidade para atender às necessidades de um tipo de sociedade industrial e de massa que agora está em processo de desaparecimento. A covid-19 não fez nada além de canalizar todas essas interfaces e demonstrar sua incapacidade de enfrentar um mundo cada vez mais complexo e incerto.

 

O que podemos fazer sobre essa obsolescência? O caminho descrito é bastante claro: essas interfaces devem ser redesenhadas. E se considerarmos que são redes complexas de atores humanos, tecnológicos e institucionais, também deve ficar claro que não basta mudar (ou substituir) um ator tecnológico por outro: o que se trata é de mudar a rede de relacionamentos e processos que compõem a interface. Os atores tecnológicos podem facilitar a mudança ou, pelo contrário, acabar reproduzindo a operação usual de uma interface. Em outras palavras: não basta introduzir um quadro digital dentro da sala de aula para alterar uma interface educacional, da mesma forma que o voto eletrônico não elimina magicamente as misérias dos partidos políticos.

 

A forma que a “nova normalidade” assume depende, em grande parte, da natureza desses macroprocessos de design e do nível de participação que eles permitem aos cidadãos. Como será o redesenho dessas interfaces? Será um projeto de cima para baixo, marcado pela confluência de interesses entre grandes corporações e alguns setores do Estado? Ou será um processo de baixo para cima, participativo e aberto? O redesenho das interfaces é uma tarefa urgente que deve ser realizada sem demora. Enquanto escrevo este texto, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, acaba de recorrer ao ex-CEO do Google, Eric Schmidt, para ajudá-los a inventar um futuro pós-pandemia e a se juntar a Bill Gates, que já está “reimaginando a educação” em chave digital para que as escolas possam abrir no outono.

 

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