Brasil. O Assassinato do Espírito

Foto: Agência Brasil/Arquivo

25 Junho 2020

"O governo não dá a mínima para o direito à vida dos cidadãos. O saber é negado por ele na espiral violenta em que suas hordas se engolfam contra todos os que não dobrarem os joelhos para o Líder e seus cúmplices", escreve Roberto Romano da Silva, professor de Ética e Filosofia na Unicamp, em artigo publicado por Jornal da Unicamp, 19-06-2020. O artigo é a conferência proferida pelo autor no I Congresso da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), no dia 18-06-2020.

 

Eis o artigo.

 

Desejo a todos, pleno sucesso na tarefa tormentosa de honrar a autoridade ética e acadêmica dos campi. O projeto obscurantista será vencido. Mas perguntamos o custo em existências e saber. As universidades em vínculo com instituições que defendem a ciência, os movimentos democráticos além da imprensa ainda não vendida, sairão frágeis mas legitimadas na luta pela vida humana. O governo estará em minúscula nota ao pé da página na história dos crimes. Analistas insistem em colocar a folha de parreira sobre o poder federal. Eles falam em prática “populista”.

 

Deixemos as camuflagens. Falemos de fascismo porque “fascista é alguém com profunda identificação com um determinado grupo ou nação em cujo nome se predispõe a falar, que não dá a mínima para os direitos de outros e está disposto a usar os meios que forem necessários – inclusive a violência – para atingir suas metas”

 

As universidades surgem antes do Estado moderno e reúnem pessoas que se libertaram da servidão eclesiástica ou nobre imperante no feudalismo. O campus acolhe intelectos na busca do verdadeiro, do bom, do belo e do justo. Os Estados nascentes buscam técnicos nas artes médicas, engenharia, direito e disputam alunos ou professores, prometem melhores salários e bolsas. Tal procura leva Francis Bacon ao dito célebre: knowledge and power meet in one. Bacon enuncia com base na Raison d’ État que só há poder efetivo e não apenas uso da força, se política estatal e conhecimentos científicos formam um bloco. Os modernos poderes estatais instalam universidades como base do poderio. Nelas surgem formas inovadoras de direito, contabilidade, arquivos, bibliotecas, laboratórios, arquitetura, engenharia e outros. Os governos que valorizam suas universidades crescem no concerto das Nações. A ética de tipo baconiano atinge camadas religiosas que inovam a política. Os puritanos ingleses destronam o rei, instauram a república na fé e no pensamento científico. Derrotados, eles rumam às Colônias americanas onde inauguram centros de ensino e pesquisa. Seus docentes praticam matemáticas, física, latim, grego, história, literatura. A partir da Europa as técnicas e as ciências atingem âmbito planetário. A indústria e o comércio fornecem produtos tecnológicos confiáveis no mercado internacional.

 

A colaboração entre Estados e universidade sofre abalos nos séculos 19 e 20. Na Contra Revolução conservadora que sucede o império napoleônico surge a denúncia do pensamento científico, a sua relativização em favor de doutrinas que acentuam a fé emotiva e a disciplina. Universidades são vistas como ameaça contra os valores tradicionais. Estamos nos germes dos movimentos que, radicalizados, definem “ciências” e técnicas a serviço de doutrinas etnocêntricas. Começam as ameaças mais graves para a vida universitária internacional nos movimentos nacionalistas. Ao chegarem ao poder tais formações – nazismo e fascismo entre eles – implodem a ordem acadêmica e nomeiam seus adeptos nos campi. São expulsos os que impediriam tais práticas.

 

Ateadas as fogueiras de livros se completa o trabalho de sapa. Os nazistas aplicam verbas apenas nos setores que servem aos seus desígnios, reduzem o nível superior de ensino à propaganda ou censura. Cientistas deixam a Alemanha por não aceitar o regime. Sete ganhadores do prêmio Nobel saem dos campi a partir de 1933. Anna-Maria Sigmund resume a situação germânica, quase a mesma da brasileira de agora: “O abandono pelo Estado nazista do potencial econômico e intelectual (...) assim como a atitude retrógrada do IIIº Reich diante da pesquisa e da ciência arrastou em prazo espantosamente curto consequência tremendas. Enquanto os nazistas no poder obstaculizavam os trabalhos de cientistas sérios (...) nutrindo entusiasmo por teorias obscuras (...) os físicos que eles expulsaram preparavam a guerra atômica”. Nos EUA o obscurantismo explode na Guerra Fria. Com base em crenças perseguidores da ciência, das técnicas e das artes se instalam no Congresso. A intimidação macartista fere a instituição de pesquisa. Vencida na aparência, a onda contrária ao saber se mantém em jornais, rádios, televisões financiada por lideranças político-religiosas. Numerosas seitas guerreiam a ciência naquele país.

 

Falemos do Brasil. Menciono o ministro Celso de Mello e o perigo nazista. O solo brasileiro é regado por águas totalitárias. O integralismo reúne adeptos que geram herdeiros. Duas ditaduras implantam a força física repressiva que ameaça instituições, da imprensa aos campi. Para corroborar o que enuncia Mello, o primeiro signo do horror instaurado pelo nazismo é a corrosão da autoridade ética e científica no culto ao Líder. Dissolvendo as atividades fins dos campi, o projeto totalitário mina a sua autoridade administrativa. Reitores e Conselhos perdem a direção e assumem grupos ligados aos ministérios. Alocações de recursos, escolhas de professores, bolsas para estudantes passam a ter como conditio sine qua non o alinhamento ao governo. A escolha dos dirigentes exige adesão aos Palácios.

 

Na ditadura brasileira de 1964 ficou célebre o reitor Calmon ao dizer a um soldado: “filho, aqui só se entra por vestibular”. Era um assalto externo à instituição. Agora o assalto vem no corte de verbas, exclusão de áreas, etc. O MEC arranca recursos das ciências humanas mas um astrólogo é condecorado. Na Alemanha nazista tudo se faz para adequar a forma acadêmica à do governo, estatizá-la no pior sentido. Para tanto é usada a fraqueza financeira das universidades após 1929 e a hiperinflação. Os recursos são látego e afago na crise. No Brasil tudo é feito para reduzir a responsabilidade governamental pelo ensino público universitário.

 

Na pandemia é claro o ataque do poder à autoridade científica. Como expõe Hanna Arendt, o meio de elidir o totalitarismo está na autoridade ética, científica, política. É por semelhante motivo que os fascistas minam a autoridade dos campi. O deboche de ministros quando falam das ciências é arma contra o saber. O responsável pela Educação não age apenas como personagem circense. Ele despreza milênios de saber humano. As massas que negam a esfericidade da Terra são hordas que logo arrombarão laboratórios e bibliotecas. Se o presidente classifica trágica moléstia como “simples gripe” e nega os saberes científicos ao impor fármacos, estamos na aurora do fascismo. Na reunião ministerial de abril último o máximo afastamento entre governo e saber ocorre no ensino dado a um general pelo ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada caso de reconstrução na Europa”. Em nossas universidades o estudante que fizesse tal display de preguiça intelectual, um microscópico saber, seria impedido de ir a exame de qualificação no mestrado, por pesquisa insuficiente.

 

A erosão da autoridade acadêmica e dos recursos públicos na pesquisa e no ensino piora a fuga de cérebros.O brain drain foi combatido por autoridades universitárias e agências de fomento à pesquisa. No governo federal de hoje ele é dolorido êxodo de cientistas. Causa sofrimento ler notícias de brasileiros que lideram pesquisas de ponta no mundo. Aqui, o deserto acadêmico se anuncia. A prática de nossos ministérios, sobretudo o que se dedica à Educação, também gera a morte de milhões. Sofremos o sequestro dos saberes em proveito de poderes que não alicerçam o Estado numa sociedade forte. O governo gera astenia. Entre os primeiros atos palacianos está a demissão de um cientista respeitado. O costumeiro no Ministério da Educação é perene ataque aos saberes. Tudo lembra as falas e atos histriônicos do poder nazista diante da ciência: para seus defensores a Teoria da Relatividade seria apenas uma “conspiração judaica para reduzir os alemães à escravidão”. Aqui, a ciência é posta como conspiração contra o Brasil. Cito a fala da ministra dos Direitos Humanos (!): “A igreja evangélica perdeu espaço na história, perdemos o espaço na ciência quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas, quando nós não questionamos (...) e aí cientistas tomaram conta dessa área”.

 

Uma pandemia é dita “gripezinha”. Quem em institutos de pesquisa respeitáveis denuncia a corrosão da natureza é demitido e caluniado pela mais alta autoridade do país. A crise médica ilumina triste miséria social: 60% dos municípios não possuem água e esgoto dignos do nome. Mesmo o Rio de Janeiro recebe água oriunda de esgotos. Não existe Plano de educação das massas brasileiras para o trabalho técnico de ponta. O empresariado não aplica recursos em inovação tecnológica preferindo, conforme o jornal Valor Econômico, usa empréstimos oficiais em títulos do governo norte-americano. Parecem ilusórias as advertências de especialistas em Ciência, Tecnologia e Inovação. Em nota técnica sobre pesquisa e desenvolvimento, preparada para o Ipea em janeiro de 2020, Priscila Koeller suspeita que os dispêndios em Política e Desenvolvimento brasileiro poderão se reduzir a níveis inferiores aos do ano 2000.

 

Na saúde os cortes no SUS deixam quase inerte um sistema excepcional. Dois ministros da saúde saem por não aceitar “receitas” de cura fornecidos por via política, boicote da quarentena, guerra contra prefeitos e governadores. Tudo ruma para agravar a luta contra a ciência e os cientistas. Sairemos da pandemia com taxas minguadas de investimento em C/T. Universidades perseguidas pelo ministério que deveria protegê-las ficam sem poder pagar pesquisadores, docentes, funcionários: estarão prontas para serem privatizadas. Além da perseguição oficial existem mais desafios para os que administram universidades. Mesmo com o fraco entusiasmo de nossos empresários para resguardar os serviços públicos, até a pandemia impostos iam para os cofres do Executivo, distribuídos penosamente aos campi.

 

Mas o que fazer quando os mesmos impostos chegam ao nível mais baixo? Escutemos a tributarista Claudia Roberta de Souza Inoue: “É certo que a redução das atividades nos diversos setores também implicará uma queda na arrecadação, afetando as contas públicas. Porém, como conciliaremos o pagamento dos tributos a vencer nas competências futuras que coincidirão com os pagamentos dos tributos adiados se a crise continua atingindo a todos e se temos uma projeção de queda de 4,7% do PIB ao longo de 2020? A crise está gerando uma recessão quase sem precedentes, de alto impacto no cenário tributário, exigindo a adoção de medidas especialmente para o momento pós-pandemia”. Muitos empresários brasileiros e não dos menores têm ojeriza por pagar impostos. Se cai a economia “normal”, caem mesmo os impostos. Sem eles chega a um nível dramático o investimento em P&D, C/T, universidades, laboratórios. Pouco sobra para inovação tecnológica e produção competitiva no mercado nacional e internacional. Menos impostos e parcos recursos nas ciência e técnicas: círculo vicioso é pouco para descrever tal queda.

 

Um povo enfraquecido por crimes sanitários e sem plano nacional de educação técnica, dificilmente sobreviverá a doenças coletivas, pois endemias novas podem ocorrer em data próxima. A mão de obra brasileira reduzida a imenso exército de reserva sem amanhã no mundo técnico pode assistir a morte de milhões. Mesmo os setores que tomam vias de comércio exterior como o agronegócio e repetem a monocultura, por motivos ideológicos estão ameaçados. Para combater a China o governo usa diplomacia de empréstimo dos EUA e conspira sob a batuta de um astrólogo e do... ministro da Educação. Em manobra contábil foi retirado do Bolsa Família milhões de reais. Após pressões, a verba retorna (até quando?) ao seu fim. E num instante desesperador não se pensou em aplicar tais recursos na saúde, educação, universidades. A maquiagem do número dos mortos pelo Covid entra no marketing do terror.

 

“Enquanto o governo despreza o conhecimento, a Alemanha destina 2,8% de seu PIB (3,677 trilhões de dólares segundo dados de 2017) em pesquisa, e anuncia para os próximos três exercícios a aplicação de 14,6 bilhões de euros anuais em tecnologia. Em 2018 os EUA aplicaram US$ 476,5 bilhões e a China (...), US$ 370,6 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Enquanto isso o governo brasileiro corta de forma drástica recursos dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia e Inovação (…). O MCT&I, além do corte de algo como 40% de seu orçamento, foi punido com a redução bolsas do CNPq e das aplicações de fomento . Por preconceito ideológico e limitação cognitiva o governo investe contra a universidade pública e gratuita, responsável pelo melhor ensino superior, pela melhor pós-graduação e por 90% da pesquisa”. (Roberto Amaral).

 

Róseas profecias não escondem o cenário pavoroso a ser vivido por 200 milhões de seres humanos. A licença para que particulares importem e usem armas poderosas evidencia que se prepara um confronto de milícias e democratas. O governo está longe da cultura, pois depende dos revólveres, ele apaga o saber. Com promessas de ditadura obscurantista vem a ameaça de usar as Forças Armadas contra a cidadania. O quanto é corrosivo o governo no campo universitário pode ser visto na Medida Provisória de 10/06/2020. Ela permitiria ao ministro da Educação escolher reitores. Tudo sem consulta a docentes, funcionários, estudantes. Assim os donos provisórios do poder retomariam a política dos regimes totalitários. O tristemente histórico discurso de posse pronunciado pelo reitor Martin Heidegger, que assume o princípio nazista do Führung, exemplifica a deletéria intervenção ideológica no âmbito universitário. Crises são oportunidades para dissolver instituições, praticar o assassinato do espírito. O fascismo manifesta loucura. Mas como em Hamlet no seu delírio há método. O ataque e o cerco às bases universitárias segue a lógica da força bruta.

 

Magníficos Reitores, sois representantes de cientistas e professores aos milhares e, por tal motivo, alvos imediatos. Desejo a todos, pleno sucesso na tarefa tormentosa de honrar a autoridade ética e acadêmica dos campi. O projeto obscurantista será vencido. Mas perguntamos o custo em existências e saber. As universidades em vínculo com instituições que defendem a ciência, os movimentos democráticos além da imprensa ainda não vendida, sairão frágeis mas legitimadas na luta pela vida humana. O governo estará em minúscula nota ao pé da página na história dos crimes. Analistas insistem em colocar a folha de parreira sobre o poder federal. Eles falam em prática “populista”.

 

Deixemos as camuflagens. Falemos de fascismo porque “fascista é alguém com profunda identificação com um determinado grupo ou nação em cujo nome se predispõe a falar, que não dá a mínima para os direitos de outros e está disposto a usar os meios que forem necessários – inclusive a violência – para atingir suas metas” (Madeleine Albright, Fascismo, um alerta, citado por Ruy Samuel Espíndola in Marcelo Peregrino, da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial). O governo não dá a mínima para o direito à vida dos cidadãos. O saber é negado por ele na espiral violenta em que suas hordas se engolfam contra todos os que não dobrarem os joelhos para o Líder e seus cúmplices. Última palavra: lembro o nome do Magnífico Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. E à Universidade Federal de Minas Gerais, violentada em sua dignidade acadêmica e também ética, por quem dever a respeitar e proteger.

 

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