Não, Jean Vanier não é “alguém como nós”

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27 Fevereiro 2020

Desde que se divulgou a notícia, no sábado, 22, de que Jean Vanier teve encontros sexuais coercitivos, não consensuais e abusivos com pelo menos seis mulheres adultas, minhas mídias sociais têm estado cheias de pessoas tentando entender essas revelações.

O comentário é de Jamie Manson, jornalista várias vezes premiada pela Religion News Writers Association's (RNA), publicado por National Catholic Reporter, 25-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eu admito que Vanier não era alguém a quem eu recorria para buscar inspiração espiritual. Embora ele não fosse padre, meus anos de experiência com o clericalismo de clérigos e leigos me deixaram cansada e desconfiada da tendência católica a venerar heróis, particularmente homens mais velhos.

O fato de eu não ter um vínculo emocional com Vanier pode ter me ajudado a olhar de forma inabalável para o relatório de 10 páginas da L’Arche sobre os abusos que ele e seu mentor, o padre dominicano Thomas Philippe, perpetraram contra mulheres vulneráveis.

A L’Arche deve ser elogiada pelo seu suporte às vítimas de Vanier e pela sua destemida transparência sobre a má conduta do seu fundador. Tina Bovermann, líder nacional e diretora executiva da L’Arche USA, modelou para todas as lideranças da Igreja o modo de lidar com o abuso com integridade e compaixão.

“Eu só quero deixar bem claro que estamos do lado dessas mulheres que foram feridas”, disse Bovermann ao NCR nesse fim de semana. “Queremos reconhecer essas pessoas que foram feridas”, disse ela, e “condenar” o comportamento de Vanier.

Os detalhes dos abusos de Philippe e de Vanier são perturbadores e sórdidos. Mas o que mais me impressionou depois de ler o relatório foi a natureza cultual do abuso e da relação de Philippe com Vanier.

Em 1946, Philippe criou a L’Eau Vive como uma “escola da sabedoria” e um programa de iniciação à vida contemplativa. Vanier chegou lá em 1950 e, ao que parece, rapidamente caiu sob os feitiços de Philippe.

Quando Vanier foi interrogado em 2009 sobre Philippe, ele disse: “Era óbvio para ele que eu era seu filho espiritual, que faria qualquer coisa para apoiá-lo em seus planos”, segundo o relatório da L’Arche.

Vanier foi questionado sobre Philippe, porque havia sido descoberto que seu pai espiritual havia abusado sexualmente de mulheres desde os primeiros dias da L’Eau Vive, a ponto de, em 1956, o Santo Ofício (a atual Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano) tê-lo proibido de qualquer ministério público ou privado, incluindo a celebração dos sacramentos, a direção espiritual e a pregação.

O fato de as mulheres no início dos anos 1950 terem tido a coragem de se pronunciar contra um padre carismático e o fato de o Santo Ofício ter respondido às suas reivindicações, julgando-o e condenando-o com tanta severidade, sugerem o quanto as ações de Philippe foram grotescamente abusivas.

Mas igualmente grotesco foi o modo como Vanier continuou se devotando a Philippe, mesmo que, ainda em 1952, ele soubesse dos seus ataques contra as mulheres. Ainda em 2016, Vanier negou ter conhecimento dos abusos de Philippe.

As mentiras de Vanier tornam-se ainda piores com a revelação de que ele até procurou mulheres para Philippe nos anos depois que ele foi afastado do ministério. De acordo com o relatório da L’Arche:

“Contra o conselho da Igreja, entre 1952 e 1964, o Pe. Thomas Philippe e Jean Vanier mantiveram um vínculo profundo. Cartas desse período revelam a extensão da influência do Pe. Thomas Philippe no pensamento e no comportamento de Vanier. Elas também relatam as visitas que Jean Vanier fez a ele e o modo como ele o ajudou a se encontrar clandestinamente com as mulheres da L’Eau Vive.”

Em uma parte particularmente perturbadora do relatório, cita-se uma carta que mostra Phillippe oferecendo conselhos a Vanier – usando alusões a uma história do Evangelho de João – sobre como tirar vantagem sexual das mulheres em particular:

“Em relação a ‘Ana’ [nome fictício], seja muito cuidadoso. Às vezes, você pode rezar com ela, se for muito prudente; mas externamente o mínimo, não mais do que São João na Última Ceia e de um modo bastante discreto. Eu sinto que a Santíssima Virgem pede que tenhamos muito cuidado com esse ponto.”

Tanto Phillippe quanto Vanier usavam alusões à teologia mariana e às Escrituras para justificar seus abusos sexuais de mulheres.

Uma das vítimas de Philippe disse que o padre alegou que “ele era um instrumento de Deus e, portanto, atual e diretamente movido por Deus”, e que o sexo com ele conferia “‘graças especiais’ que ninguém podia entender”.

Uma das vítimas de Vanier disse que “o acompanhamento espiritual se transformou em toque sexual. Eu disse a ele que tinha um amante, ele disse que era importante distinguir (o que aconteceu entre nós) referindo-se ao Cântico de Salomão”.

Outra vítima afirmou que Vanier racionalizou sua coerção sexual afirmando: “Não somos nós, são Maria e Jesus. Você é a escolhida, é especial, isto é segredo”.

Philippe, parece justo dizer, funcionava como um líder cultual, e Vanier não apenas foi submetido a uma lavagem cerebral por ele, mas também o capacitou e replicou suas ações perversas. Infelizmente, o abuso ritualizado de mulheres é muito comum entre personalidades carismáticas.

Em um artigo de 2018, Alexandra Stein, especialista em cultos e grupos extremistas, escreveu sobre as maneiras pelas quais os líderes cultuais costumam preparar as mulheres para os encontros sexuais.

“Esse tipo de abuso sexual costuma ser vendido como uma maneira de se aproximar dos espíritos ou dos deuses; é representado pelos adeptos não como ‘sexo’ realmente, mas como uma forma de prática espiritual”, escreveu Stein.

Mas, ao contrário de um culto, Philippe e Vanier tinham séculos de doutrina católica para sustentar seu comportamento.

O caso Vanier reafirma um argumento que eu já defendi nesta coluna antes, ou seja, que a estrutura de liderança e a teologia radicalmente patriarcais da Igreja estão na raiz da maioria dos casos de abuso sexual na Igreja.

O patriarcado é qualquer sistema no qual os homens detêm o poder, e as mulheres são amplamente excluídas dele. Em uma estrutura patriarcal, homens poderosos dominam mulheres, crianças e outros homens vulneráveis.

Em praticamente todos os casos de abuso sexual de que ouvimos falar na Igreja ao longo dos anos – seja de padres abusando de crianças, seja de bispos estuprando freiras, seja do ex-cardeal Theodore McCarrick coagindo sexualmente seminaristas, seja de Philippe e Vanier agredindo sexualmente mulheres adultas – existe um denominador comum: a crença patriarcal de que uma classe especial de homens espirituais tem o direito de usar mulheres, crianças e outros homens vulneráveis para sua gratificação sexual.

Quando esse sistema patriarcal se combina com a noção teológica da complementaridade de gênero, que afirma que Deus chama os homens a liderar, e as mulheres a se submeter, isso cria o terreno fértil perfeito para o tipo de abusos que vemos no caso Vanier.

Enquanto eu observava as pessoas lidando com esse lado sombrio de Vanier, eu vi mais de uma pessoa sugerindo que Vanier era alguém como todos nós, uma mistura de bem e de mal. Acho que esse sentimento deve ser rejeitado. Muitos de nós não agem da mesma maneira que Vanier, abusando de seu poder espiritual, distorcendo a teologia para forçar as mulheres a abusos sexuais ritualísticos e mentindo para proteger a si mesmo e ao seu nefasto pai espiritual.

Em vez disso, o que devemos fazer é contemplar o mistério de como um movimento tão extraordinário como a L’Arche pôde nascer a partir de um início tão inescrupuloso e, francamente, assustador.

Talvez este momento nos convide a ter cuidado em identificar demais os líderes carismáticos com os movimentos que eles criam. Se a L’Arche é tão boa e santa como muitos dizem que ela é, é por causa da coragem de lideranças como Tina Bovermann e da bondade e da santidade de incontáveis leigos e leigas que construíram as 154 comunidades da L’Arche em 38 países.

Embora elas possam ter se inspirado nas palavras e no testemunho de Jean Vanier, o que realmente deu vida ao seu movimento é o Deus que vai ao seu encontro na vida das pessoas marginalizadas a quem elas servem e o Espírito que habita as comunidades que elas criaram, no meio delas mesmas.

Enquanto elas trabalham sobre o seu sofrimento, que possam continuar sendo uma fonte de força e de vida nova umas para as outras.

 

Nota da IHU On-Line:

O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.

X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos

 

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