O cristianismo muda de pele a cada cinco séculos

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07 Janeiro 2020

O atual pontífice gosta de repetir que não estamos vivendo simplesmente uma época de mudanças, mas sim, mais radicalmente, uma “mudança de época”. Ele fez isso novamente no discurso proferido à Cúria vaticana para as saudações de Natal, quando anunciou importantes mudanças na estrutura de governo da Igreja Católica.

A reportagem é de Marco Rizzi, publicada por Corriere della Sera, 05-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A afirmação do Papa Francisco geralmente é relacionada ao cenário das imponentes transformações sociais e culturais provocadas pelas novas tecnologias e pelos processos de globalização econômica, mas, na verdade, ela parece ainda mais válida para a fase vivida hoje pelas Igrejas e, mais em geral, por toda a tradição cristã.

Mesmo com um olhar superficial, é possível entender que, no arco dos 2.000 anos transcorridos desde a pregação original de Jesus de Nazaré, aproximadamente a cada cinco séculos, houve acontecimentos que marcaram profundamente o curso da história do cristianismo. Sem dúvida, tais eventos constituem o resultado de processos históricos já ocorridos anteriormente, mas não é difícil ver que eles envolveram consequências semelhantes em termos de fraturas que, na linguagem eclesiásticas, são chamadas de cismas, de iniciativas de evangelização e, acima de tudo, de autocompreensão que as comunidades cristãs elaboram sobre si mesmas – eclesiologias, também no vocabulário teológico.

O primeiro desses acontecimentos foi o Concílio de Calcedônia, em 451, onde foi estabelecida a dupla natureza, humana e divina, na única pessoa de Jesus Cristo. A definição conciliar surgiu após um longo debate teológico e ficava no meio do caminho entre as posições dos seguidores do patriarca de Constantinopla, Nestório (que morreu no mesmo ano do Concílio), que ressaltava a dualidade presente em Cristo, e as dos chamados monofisitas, que lhe atribuíam uma única natureza.

Certamente, não era o primeiro debate cristológico que sacudia a Igreja; mas o Concílio sancionou pela primeira vez a ruptura institucional, que dura ainda hoje, com as Igrejas monofisitas egípcia, etíope e armênia, e com a Igreja nestoriana. Esta última, em particular, deslocou o seu centro de gravidade da Síria para a Pérsia devido à perseguição sofrida pelos imperadores bizantinos e a partir de lá iniciou uma intensa atividade missionária na Ásia central e oriental, até a China.

Com altos e baixos, o cristianismo asiático permaneceu vital até o século XIII, quando o Papa Inocêncio IV enviou emissários para as cortes dos mongóis em vista da reconciliação entre católicos e nestorianos.

Os protagonistas do Concílio de Calcedônia foram o imperador do Oriente, Marciano, e sua esposa, Pulquéria, que fizeram aprovar uma declaração segundo a qual o patriarca de Constantinopla, a nova Roma, tinha a mesma dignidade do pontífice romano: era a sanção do caráter “imperial” da eclesiologia calcedoniana. Nunca aceita pelo papado, essa pretensão continuou sendo motivo de conflito entre as Igrejas latina e grega, culminando na excomunhão recíproca de 1054.

O cisma precedeu em pouco tempo a ascensão ao papado, em 1073, de Gregório VII, que iniciou uma profunda reforma da Igreja ocidental, centrada em dois eixos: por um lado, a reivindicação da sua autonomia ou, melhor, da sua superioridade em relação ao poder secular; por outro, a imposição do celibato aos sacerdotes, para vinculá-los exclusivamente à Igreja.

Durante a luta pelas investiduras, Gregório VII não hesitou em vincular evangelização e interesses políticos nas suas relações com os Estados recém-constituídos nas fronteiras orientais do império, Hungria, Polônia, Boêmia e, sobretudo, o reino de Kiev, que favoreceram a cristianização em troca do apoio papal à sua independência.

A consequência mais importante da reforma gregoriana foi a progressiva clericalização da Igreja latina. Indubitavelmente, ela contribuiu para limitar as ingerências do poder secular e para atenuar a inadequação do clero, mas sancionou a mais clara separação entre sacerdotes e leigos ou, melhor, a inferioridade destes últimos, reduzidos a meros receptores passivos da cada vez mais estruturada atividade litúrgica e sacramental gerida pelos primeiros.

Além disso, a suposta preeminência sobre qualquer outra autoridade levou a Sé pontifícia a se dotar de um aparato simbólico e organizacional em concorrência com os soberanos seculares e a potencializar o seu próprio sistema jurisdicional através do desenvolvimento do direito canônico. Assim, se o processo iniciado pela reforma gregoriana aumentou o prestígio da Sé pontifícia, por outro lado, envolveu uma tendência centralizadora e burocrática que suscitou muitas resistências e conflitos, destinados a convergir, todos, na ação de Martinho Lutero.

As Igrejas nascidas da Reforma anularam, assim, a distinção entre clero e leigos, colocando o fiel diretamente diante de Deus, no máximo com a mediação da Bíblia. Pelo contrário, no Concílio de Trento, a Igreja Católica reafirmou o papel central de Roma e da burocracia eclesiástica: doutrina e disciplina tornaram-se os dois pilares da eclesiologia contrarreformista, para a qual cabia ao clero a orientação exclusiva dos fiéis sobre o que crer e como viver, até a proibição da leitura pessoal da Bíblia, o livro mais impresso e lido até esse momento.

Com a morte de Lutero, em 1546, a unidade do mundo cristão foi despedaçada entre católicos, protestantes e reformados (calvinistas). Ainda um século antes, a conquista árabe de Constantinopla havia deslocado para Moscou o centro de gravidade da tradição ortodoxa, determinando a primeira mudança significativa da geografia cristã desde os tempos de Calcedônia.

Não mudou apenas a geografia religiosa: as viagens de Colombo abriram caminho para novos mundos, que permitiram que a Igreja Católica compensasse com um renovado impulso evangelizador, a Oriente e a Ocidente, as perdas territoriais determinadas pela difusão da Reforma na Europa. As novas Igrejas também encontraram espaço na América do Norte, a partir do século XVII, embora como consequência das perseguições sofridas na própria pátria.

Ao mesmo tempo, as populações indígenas impunham uma profunda revisão dos paradigmas antropológicos próprios da teologia: que homens eram, se é que eram homens, os do Novo Mundo? Hoje, pode parecer óbvio, mas a questão envolveu as melhores mentes da época.

Um último aspecto da crise religiosa do século XVI merece ser destacado: a invenção da imprensa constituiu uma inovação tecnológica que modificou radicalmente os paradigmas sociais, favorecendo a difusão das mensagens religiosas, das ideias e da cultura, criando as formas modernas de comunicação e propaganda (que, é preciso lembrar, leva o nome da instituição missionária da Igreja Católica, a congregação De propaganda fide).

As Igrejas cristãs passaram os quatro séculos seguintes buscando um difícil equilíbrio com o mundo moderno e as suas reivindicações de autonomia. A nova crise explodiu no período pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente nas áreas geográficas onde o cristianismo era hegemônico, Europa e Américas: a difusão de estilos de vida consumistas e centrados nas reivindicações subjetivas deu uma dimensão de massa aos processos de secularização, que até então apresentavam um caráter predominantemente político-jurídico e intelectual. A secularização dos costumes e dos consumos afastou as pessoas das Igrejas.

No lado católico, o Concílio Vaticano II tentou uma obra de “atualização”, atenuando a distinção entre clero e “povo de Deus”, tentando conjugar em formas mais consoantes com o mundo moderno a doutrina e a disciplina tradicionais, por exemplo com o abandono do latim na liturgia, mas sem afetar seus pressupostos.

Por isso, o Vaticano II parece mais o encerramento da longa estação tridentina do que a abertura de uma nova. A crise parece agravada hoje pelos desenvolvimentos tecnológicos, inimagináveis apenas há poucas décadas.

Porém, se levantarmos o olhar do contexto europeu e o voltarmos para o mundo globalizado, o cristianismo como um todo parece longe de estar destinado ao declínio. A crise das denominações tradicionais é compensada pela difusão tumultuada das novas Igrejas protestantes e pela permanente vitalidade da Igreja Católica na África e na Ásia.

Os conflitos doutrinais que dividiram as Igrejas institucionais por mais de 15 séculos parecem amplamente superados. A copresença de uma multiplicidade de tradições e experiências religiosas no mundo globalizado não é uma novidade inédita para o cristianismo: na verdade, ele constituiu um horizonte unívoco apenas em uma área geográfica restrita e por alguns séculos da sua história bimilenar, a época da societas christiana medieval.

Os desafios que lhe são postos hoje parecem ser dois. Acima de tudo, as Igrejas devem elaborar uma nova compreensão de si mesmas, ou seja, uma nova eclesiologia, que supere a dimensão confessional e se amplie para compreender, como era na origem, as diversas modalidades com as quais se conjuga a memória de Jesus Cristo, a partir de batismo e da promessa segundo a qual onde dois ou três estão reunidos no seu nome Ele está no meio deles (Mateus 18,20).

Tal ecumenismo, como enfatizado repetidamente pelo Papa Francisco, não pode surgir de cima, das burocracias eclesiásticas, mas sim se desenvolver de baixo e das margens, das situações periféricas em que as diferenças confessionais são superadas diante das dificuldades comuns.

Além disso, diante do progresso científico e tecnológico que questiona a própria ideia de “homem” pensada até agora e, ao mesmo tempo, levanta delicados problemas de justiça, de acesso a tais potencialidades, de uso responsável dos recursos naturais, a tradição intelectual cristã pode esboçar uma nova antropologia que, no rastro da imagem bíblica do homem criado à imagem e semelhança de Deus e na fidelidade a Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, contribua para que a mudança de época se resolva em um real progresso de toda a humanidade, não na vantagem egoísta de poucos.

O debate teológico

Hoje, Calcedônia, nos arredores de Constantinopla, onde foi realizado um concílio ecumênico essencial para a história do cristianismo em 451, chama-se Kadikòy e é um bairro de Istambul.

As questões relativas à natureza do Messias abordadas naquele sede são tratadas nos três primeiros tomos da obra de Alois Grillmeier, “Gesù il Cristo nella fede della Chiesa” [Jesus, o Cristo, na fé da Igreja], publicada pela editora Paideia da Bréscia: os dois primeiros constituem um único volume, intitulado “Dall’età apostolica al Concilio di Calcedonia” [Da era apostólica ao Concílio de Calcedônia], e são editados por Enrico Morelli e Samuele Olivieri; o terceiro tomo, “La ricezione del Concilio di Calcedonia” [A recepção do Concílio de Calcedônia], é editada apenas por Olivieri.

A ruptura entre catolicismo e ortodoxia, com excomunhões recíprocas (retiradas depois no século XX) ocorreu em 1054. Sobre as relações entre o cristianismo oriental e o ligado a Roma, Giorgio Ravegnani publicou neste ano o livro “Bisanzio e l’Occidente medievale” [Bizâncio e o Ocidente medieval] (Il Mulino, 228 páginas).

Também merecem destaque: “L’ortodossia” [A ortodoxia] (tradução para o italiano de Maria Girardet, Il Mulino, 1965; Edb, 1981); Enrico Morini, “Gli ortodossi” [Os ortodoxos] (Il Mulino, 2002); Basilio Petrà, “La Chiesa dei padri” [A Igreja dos Padres] (Edb, 2007); Warren Treadgold, “Storia di Bisanzio” [História de Bizâncio] (tradução para o italiano de Giacomo Garbisa, Il Mulino, 2005); Mario Gallina, “Bisanzio. Storia di un impero” [Bizâncio. História de um império] (Carocci, 2008).

Sobre as hipóteses de aproximação entre a Igreja de Roma e as orientais: Enrico Morini, “E’ vicina l’unità tra cattolici e ortodossi?” [Está próxima a unidade entre católicos e ortodoxos?] (Qiqajon, 2016); Giorgio Fedalto, “San Pietro e la Chiesa di Roma. Temi ecumenici con l’ortodossia” [São Pedro e a Igreja de Roma. Temas ecumênicos com a ortodoxia] (Mazziana, 2017). Sobre o pontificado de Hildebrando de Soana: Glauco Maria Cantarella, "Gregorio VII" (Salerno, 2018).

Protestantismo

São inúmeros os livros dedicados ao iniciador da Reforma pelo 500º aniversário das teses de Wittenberg (1517): Adriano Prosperi, “Lutero. Gli anni della fede e della libertà” [Lutero. Os anos da fé e da liberdade] (Mondadori, 2017); Silvana Nitti, “Lutero” (Salerno, 2017); Heinz Schilling, “Martin Lutero. Ribelle in un'epoca di cambiamenti radicali” [M. L. Rebelde em uma época de mudanças radicais] (editado por Roberto Tresoldi, Claudiana, 2016); Scott H. Hendrix, “Lutero. Un riformatore visionário” [L. Um reformador visionário] (tradução para o italiano de Riccardo Pratesi, Hoepli, 2017).

Sobre a Contrarreforma: Paolo Prodi, “Il paradigma tridentino” (Morcelliana, 2010); Adriano Prosperi, “Il Concilio di Trento” (Einaudi, 2001); John W. O'Malley, “Trento” (tradução para o italiano de Stefano Galli, Vita e Pensiero, 2013).

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