22 Mai 2019
“Após ter examinado seu papado, conscientes do perigo que acarreta para a sociedade a visão de mundo de seus inimigos integristas, nos sentimos obrigados a defendê-lo por dois motivos: pelo que tem em si mesmo de estimável (bom cristão, pensador ilustrado e companheiro de viagem), mas sobretudo porque consideramos que, caso se responda com desinteresse e descuido a esses sepulcros caiados que combatem seu trabalho pastoral e político, se titubeamos no diálogo e no debate com as melhores forças da Igreja, o resultado será contraproducente para todos, crentes e não crentes, como já avisava Pier Paolo Pasolini”, manifestam-se Gorka Larrabeiti, Alba Rico e Carlos Fernández Liria, em artigo publicado por Religión Digital, 21-05-2019. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Acabam de se completar seis anos de pontificado de Francisco e algo muito sério deve estar acontecendo no mundo e no seio da Igreja para que pessoas não crentes e, além disso, de esquerda, com somos nós, sintam a necessidade de se pronunciar publicamente em defesa de um Papa. Não parece muito normal e nem deveria ser necessário.
Não sendo especialistas na matéria e em um contexto muito polarizado, corremos inclusive o risco de ser fustigados e, se nos atrevemos a fazer isso, apesar dos previsíveis mal-entendidos e preconceitos, é porque não podemos ignorar esta evidência: a Igreja passou da condição de ator protagonista da vida política para ser, ao mesmo tempo, ator, cenário e motivo de uma grande batalha.
Não sabemos até que ponto os cidadãos estão conscientes da gravidade da situação, do tão feroz e transcendental que é esta luta. Nós nos perguntamos por que na Espanha o que acontece no Vaticano interessa tão pouco às pessoas. Acreditamos que, em geral, as pessoas veem a Igreja mais como um organismo ancorado no tempo do que como uma barca à mercê das ondas da história.
Os meios de comunicação pouco ajudam a entender o momento, pois tendem a destacar os clássicos escândalos que revelam homofobia, machismo, antiabortismo, assim como muitos outros falsos rebuliços - o beijo no anel do Pescador, a questão antifeminista no Osservatore Romano... - que devem render a glória aos muitos e poderosos inimigos, tanto internos como externos, do Papa Bergoglio.
Esta visão da Igreja encalhada no tempo se deve, pois, ao silenciamento ou isolamento, para não dizer censura, da doutrina social e geopolítica deste Papa agitado, e a que raras vezes se informa a sólida aliança de interesses entre setores da extrema direita internacional e setores das alas mais retrógradas e fanáticas da Igreja. Se há algo que está estagnado é a informação sobre o Vaticano. E pur si mueve [mas se movimenta] ...
Não desconfiem de nós: continuamos sendo igualmente não crentes, continuamos discordando do Papa – e radicalmente – nas questões bioéticas e no conceito de família. Continuamos pensando que todo Papa é o monarca absoluto de uma rançosa instituição heteropatriarcal, etc... E, no entanto, após ter examinado seu papado, conscientes do perigo que acarreta para a sociedade a visão de mundo de seus inimigos integristas, nos sentimos obrigados a defendê-lo por dois motivos: pelo que tem em si mesmo de estimável (bom cristão, pensador ilustrado e companheiro de viagem), mas sobretudo porque consideramos que, caso se responda com desinteresse e descuido a esses sepulcros caiados que combatem seu trabalho pastoral e político, se titubeamos no diálogo e no debate com as melhores forças da Igreja, o resultado será contraproducente para todos, crentes e não crentes, como já avisava Pier Paolo Pasolini.
Quem é, para nós, Francisco? Dele sabemos que é filho portenho de emigrantes italianos, que cresceu no peronismo, que é amante de Dostoievsky e Hölderlin, que foi professor de literatura, que tem mais de padre pragmático de bairro que de teólogo refinado. Após o choque pela renúncia de Ratzinger, Francisco é um lançamento seguro ao ângulo do Concílio Vaticano II, uma solução in extremis no mais baixo momento de prestígio e no maior caos interno vivido pela Igreja, segundo dizem, desde a Reforma.
Em plena pujança de novos movimentos religiosos com cunho emocional, com são as diferentes igrejas evangélicas que estão se expandindo pela Europa e América, salpicada pelos escândalos financeiros, corrompida por abusos sexuais globais, Francisco é uma mudança radical de jogo, um retorno ao essencial, ao Evangelho. Sua batalha acontece mais no tempo que no espaço: “Não se deve dar preferência aos espaços de poder frente aos tempos, às vezes longos, dos processos. Trata-se mais de colocar em marcha processos, que ocupar espaços”. Nisto se parece muito com Juan de Mairena, poeta do tempo.
Francisco, Papa do tempo, com jactância própria de novato, está disposto a governar como Mairena escrevia: “por todos, e em último termo, contra todos”. É cosmopolita global, não como Ratzinger ou Wojtyla, mais eurocêntricos e provincianos. Vem do sul da periferia global armado de franciscanismo retórico e acompanhado pelo sempre fiel AMDG [Ad maiorem Dei gloriam] exército jesuíta.
Profundamente indisciplinado, assim que é nomeado Papa, revoluciona sinais e símbolos e, imediatamente, esquecidos os negros corvos do final do papado de Ratzinger, se fala – recordam? – em “primavera vaticana”. Desde então, Francisco é uma sacudida que não cessa. O Papa elétrico, como o chama Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, gera campos magnéticos opostos.
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