21 Mai 2019
Todas as manhãs Ottó se ajoelha na calçada do bairro Marconi, em Roma, e segura um pedaço de papelão com as palavras: "Eu moro na rua, um quarto de euro para mim é a vida. Obrigado pela ajuda". Mas Ottó não guarda todo aquele quarto de euro para si, pois o compartilha com aqueles que estão em situação pior do que a dele.
A reportagem é de Giorgio Caruso, publicada por la Repubblica, 20-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A vida de Ottó Kovács, húngaro de 52 anos, mudou radicalmente há 21 anos. Em 1998, Kovács cancelou seu presente e terminou no meio da rua. Ele afirma que foi uma escolha, mesmo que a forma como realmente aconteceu não seja conhecida. O certo é que ele largou tudo o que tinha para se mudar para a Itália e tentar outro modo de vida. Tornou-se um clochard, um sem-teto. "Eu estava cansado da vida que eu levava antes", conta agora. “O trabalho não me dava mais satisfação e o dinheiro nunca era suficiente. Decidi tentar viver um dia de cada vez, sem olhar para frente e consegui”, diz Kovács, que desde 2000 vive em Roma entre as ruas do bairro Marconi e as tantas festas patronais do Lácio. "A esmola que recebo é suficiente para viver. Eu fico apenas com o necessário, o resto eu dou para a ‘Associazione Venite e Vedrete’, uma organização sem fins lucrativos que apoia as missões na Tanzânia e no Brasil".
E isso deixou surpreso Federico Santi, professor de engenharia energética da Universidade La Sapienza e responsável, juntamente com a esposa, Francesca Chinappi, professora, pela ONG "Venite e vedete", que tem sua sede em Santa Marinella (Roma), quando viu diante de seus olhos Kovács com um envelope nas mãos pronto para fazer uma doação. “Nunca tinha me acontecido, em tantos anos de voluntariado, receber dinheiro de uma pessoa sem-teto. Um gesto belíssimo de Ottó que, de 2014 até hoje, doou 2.245 euros entregues inteiramente a um dos centros para órfãos que temos entre a Tanzânia e o Malaui, administrados pelas Irmãs Missionárias Carmelitas de Santa Teresa do Menino Jesus. Ottó é um exemplo único de solidariedade, e imediatamente se tornou a mascote da Associação.”
Kovács tinha 31 anos quando decidiu deixar sua cidade Székesfehérvár, sua irmã, sua mãe dona-de-casa e seu pai mineiro e mudar radicalmente de vida. “Eu não queria mais ter pensamentos turbando a minha cabeça e, além disso, todos os dias eu me confrontava o tempo todo com o meu pai que nunca apreciava o meu trabalho. Tudo me parecia inútil e eu não conseguia mais ver um futuro à minha frente", relata Kovács, que quando garoto se formou como técnico torneiro e começou imediatamente a trabalhar. Primeiro como porteiro em um shopping, depois como auxiliar numa gráfica.
“Eu gostava de poder ler os jornais antes de todos. De vez em quando, eu relatava alguns erros à equipe editorial e, depois de alguns anos, passei a revisor, mas com a queda do muro de Berlim tudo mudou. Começaram as demissões e por isso meu último emprego foi como controlador nos trens regionais.” Os primeiros anos como sem-teto para Kovács passaram rápidos. Ele circulou pela Itália do Piemonte até a Sicília "desperdiçando tudo o que recebia entre álcool e as máquinas caça-níqueis". Então, em 2013, em Roma, conheceu Sara, uma jovem voluntária da ONG "Venite e vedete", que lhe levou comida e cobertores.
“Apesar da vida desregrada que eu estava levando - diz ele - notava que as pessoas ao meu redor continuavam a mostrar afeto. Larguei o álcool e os caça-níqueis. E procurei uma maneira concreta de retribuir o afeto que eu recebia todos os dias e Sara foi a intermediária para conhecer essa Associação”.
Hoje, Kovács parece ter encontrado sua nova dimensão à sombra do Evangelho e de sua solidariedade com os outros. Daqui a três dias será seu aniversário. “No ano passado choveu o dia todo e me abriguei sob o pórtico de uma igreja. Este ano espero que tenha sol”.
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O filantropo sem-teto: "Vou doar tudo à África" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU