21 Setembro 2018
"O legado de uma geração a outra parece ter-se convertido num diálogo de surdos, ou na mesmice dos monólogos sobrepostos. Falam mas são desprovidos de audição. Não aprenderam a escutar. Água e azeite que, dentro do mesmo recipiente, coexistem um ao lado do outro, mas não se misturam e não se confrontam", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre carlista e assessor das Pastorais Sociais.
Eis o artigo.
Duas perguntas que, nos tempos atuais, adquirem uma relevância sem precedentes. Primeira, qual a distância que separa um casal, digamos, na faixa dos 30 a 40 anos, e seus filhos adolescentes ou jovens? Segunda, qual a distância que separa esse mesmo casal e seus próprios pais, às portas da terceira idade? Tal distância entre uma geração e outra, ao longo da história, sempre foi mais ou menos significativa e quase sempre geradora de não poucas tensões e apreensões. Atualmente, porém, com a revolução dos costumes, dos valores e das comunicações – com particular destaque para o surgimento da Internet e das redes sociais – semelhante fissura entre pais e filhos vem ganhando as proporções de um verdadeiro abismo. Os atritos e conflitos, antes contornáveis, com frequência crescente convertem-se em aberta ruptura.
Emergem inevitavelmente outras interrogações. Que sabe sobre a experiência de seus país a “geração.com” dos internautas? E aqueles, por sua vez, que sabem sobre as inquietudes e novidades destes últimos? Enquanto para uns a memória é uma espécie de baú cheio de coisas enferrujadas e de valor duvidoso, para outros o presente torna-se um terreno minado, que em cada esquina esconde desconhecidas ameaças. Os primeiros não conhecem e nem fazer questão de conhecer o desenrolar dos fatos históricos, com suas causas e efeitos; ao passo que para os segundos o passado representa uma fortaleza de refúgio diante dos perigos que nos espreitam por todo o lado e a todo momento. Uma geração tende a absolutizar o “aqui e agora” como fonte de vida, energia, prazer, alegria e relacionamentos sempre inovadores, beirando não raro o hedonismo puro e simples. A outra, tende a cultivar e recriar o “paraíso perdido”, onde tudo parecia caminhar sobre os trilhos, estacionando por vezes num saudosismo mórbido e doentio.
Nessa perspectiva, hoje em dia que significa uma herança ou patrimônio cultural que, no decorrer das décadas, vai passando de pais para filhos (se é que ainda podemos falar nesses termos)? O legado de uma geração a outra parece ter-se convertido num diálogo de surdos, ou na mesmice dos monólogos sobrepostos. Falam mas são desprovidos de audição. Não aprenderam a escutar. Água e azeite que, dentro do mesmo recipiente, coexistem um ao lado do outro, mas não se misturam e não se confrontam. Uma lacuna toma o lugar de uma ponte que, em tempos idos, mesmo se tênue e frágil, ligava as duas margens. Um vazio mudo ou ensurdecedor instalou-se como intruso no meio da sala, o qual responde pelo nome, preferivelmente em inglês, do último lançamento na área das telecomunicações... A novidade da moda destronou a chama viva da memória.
Mas isso não ocorre somente no interior das famílias. Mutatis mutandi, vale o mesmo para as comunidades de vida religiosa consagrada, por exemplo. Mesmo cerrado portas e janelas aos ventos contemporâneos, as novidades encontram um modo sorrateiro de penetrar em tais ambientes. Também neste caso as gerações, em lugar do diálogo, da abertura e dos encontros reciprocamente enriquecedores, cultivam um distanciamento progressivo. Alguns insistem em isolar-se, encastelando-se na torre do passado, contra os produtos inquietantes da modernidade e da pós-modernidade. Outros empenham-se em desfrutar tudo aquilo que o presente pode oferecer, numa corrida frenética e obsessiva aos bens da moda e de um consumismo sem freios. Igualmente aqui, o patrimônio cultural e religioso do carisma, acaba sendo atropelado pela avalanche de ideias inovadoras, as quais revelam-se muitas vezes efêmeras, provisórias e voláteis. O tempo entre a posse, o tédio e o descarte das coisas adquiridas (ou das pessoas com quem nos relacionamos), reduz-se na proporção inversa do número de modelos oferecidos pelo mercado.
Na família ou na comunidade religiosa, raras são as pontes, raras as formas de comunicação entre uma entre uma geração e outra. Prevalecem os muros, os entraves, os monólogos, o mutismo, fechamento... Mas prevalece sobretudo a cultura do self service. O grupo convive sob o mesmo teto, mas encontra-se privado de uma referência sólida e central, vinculada a uma tradição de valores. Cada um é convidado a fazer o próprio prato. Entre os produtos, ideias, valores e expressões que circulam como “moda do momento”, escolhe os ingredientes que melhor lhe agradam, tempera-os com uma boa dose de prazer, saciando a própria fome e sede. Mas a fome e a sede voltarão a manifestar-se... e em breve!
Leia mais
- Casas para pais separados: ''Venham viver com os seus filhos''
- “Odeio o celular da minha mãe porque ela sempre está com ele”
- Filhos
- “A Internet é uma oportunidade de proximidade e não de conflito” entre pais e filhos
- Geração canguru, os jovens que escolheram não sair da casa dos pais
- 'Para os filhos da modernidade avançada, não é fácil acreditar em Deus, ter uma fé religiosa'. Entrevista especial com Franco Garelli
- A clínica nos EUA onde milionários 'desconectam’ filhos viciados em celulares e internet
- Maioria dos pais cedem às chantagens dos filhos no consumo, diz pesquisa
- A seleção dos filhos sem pai
- ‘Acabem com o tormento das festas de dia das mães da escola. Aproveitem e cancelem a do dia dos pais também’
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Abismo entre gerações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU