Algumas intuições sacramentais em torno de ''Fides et ratio''. Artigo de Andrea Grillo

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15 Setembro 2018

No dia 14 de setembro, passaram-se 20 anos da data de publicação da encíclica “filosófica” de João Paulo II, Fides et ratio. Em seu blog Come Se Non, 13-09-2018, o teólogo italiano Andrea Grillo acrescenta algumas considerações sobre o porte sacramental de alguns números do texto. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O número 13 da Fides et ratio, no contexto dos números anteriores e posteriores, oferece uma descrição da posição da razão diante do Mistério, que recupera o conceito de sacramentalidade de um modo extremamente significativo. Releiamos, 20 anos depois, um momento central dessa passagem:

“Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto. Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério” (FR 13).

O ditado dessa citação mostra bem a ótica em que a sacramentalidade é considerada, quase como o “modo” com que o significado da Revelação se oferece ao “conhecimento da fé” e à “razão teológica”, na sua realidade de sinal.

O modo com que a Revelação se oferece ao conhecimento da fé, porém, leva a fazer uma pergunta diferente, que a encíclica não aborda diretamente, mas que depende estreitamente dessa valorização da dimensão sacramental da Revelação: trata-se do “modo” com que a fé “passa” do sinal ao significado. Essa “passagem”, essa “remissão” do sinal ao significado, do “signum” à “res”, não é simplesmente redutível ao ato de compreensão intelectual.

Aqui a ratio implicada, precisamente por causa da complexidade do sinal com o qual ela se confronta, deve ser articulada em um campo mais vasto do que o simplesmente intelectual.

A razão é mais do que a simples “razão teórica”. Nela também está uma dimensão de “história”, de “experiência” de “tradição” e de “rito”, que só assim pode respeitar totalmente o mistério, que justamente se oferece histórica, experiencial, tradicional e ritualmente. Ainda mais precisamente, poderíamos dizer que o “modo” específico de a Revelação se oferecer impõe à fé (e à teologia) uma adequada articulação do próprio “modo” de compreensão.

Por outro lado, essas exigências são percebidas com clareza pela própria encíclica Fides et ratio, quando sublinha as dimensões de temporalidade e de historicidade em que se deve inserir a revelação de Deus. Diz-se claramente que, “no cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental” (FR 11).

Ou, mais adiante, chega-se à seguinte consideração:

“A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter conosco, servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos” (FR 12).

Deve-se reconhecer, portanto, que a não separação entre razão e fé, que toda a encíclica quer levar ao centro das atenções da reflexão contemporânea, deve poder conciliar duas ordens de considerações, ambas de fundamental importância:

a) que a Revelação oferece ao ser humano a própria verdade, permite que qualquer pessoa acolha o mistério da própria vida:

“A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter” (FR 14).

b) que, por outro lado, não é lícito pensar essa verdade simplesmente em continuidade com a “verdade da razão” do ser humano:

“A verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor” (FR 15).

Também à luz desse duplo aspecto da intenção da encíclica, não se pode deixar de notar uma singular convergência entre essas perspectivas recém-indicadas e os desenvolvimentos recentes das disciplinas que, mais diretamente, têm a ver com a “sacramentalidade” em sentido estrito. De fato, a liturgia e a sacramentária também sentem a mesma prioridade de integrar a sacramentalidade da revelação com a sacramentalidade da fé, a adequação da resposta do ser humano com a forma particular com que a graça de Deus o interpela.

Por isso, não parece inútil considerar dois tipos de consequências que derivam da mesma lógica da provocação da encíclica ao pensamento teológico contemporâneo.

Por um lado, chega ao liturgista e ao sacramentalista o convite de considerar cuidadosamente a delicadeza da sua função ao tematizar o “sacramento” como dimensão específica desse “horizonte” mais geral constituído pela particularidade sacramental do próprio revelar-se de Deus.

Por outro lado, porém, são o liturgista e o sacramentalista quem podem/devem relançar às outras disciplinas teológicas, e também ao próprio pensamento filosófico, a exigência de uma ampliação da própria noção de razão, de uma articulação mais ampla dela, para poder dar conta plenamente daquela dimensão simbólica e ritual que parece ser decididamente privilegiada na experimentação e na compreensão da própria sacramentalidade do revelar-se de Deus em Jesus Cristo.

Em torno desses dois movimentos, convergem todas aquelas considerações que testemunham a contribuição e a tarefa da ciência litúrgica e sacramental ao aprofundamento do intellectus fidei, bem como a solicitação para integrar nas “razões” da fé aquele lado simbólico, histórico, corpóreo e ritual que constitui precisamente o “horizonte sacramental” da Revelação de que fala a encíclica Fides et ratio.

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