Carta sobre abusos endereçada ao Cardeal O'Malley era a segunda enviada por padre a funcionários

Mais Lidos

  • Elon Musk e o “fardo do nerd branco”

    LER MAIS
  • O Novo Ensino Médio e as novas desigualdades. Artigo de Roberto Rafael Dias da Silva

    LER MAIS
  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

15 Agosto 2018

Na carta endereçada ao cardeal de Boston Sean O'Malley, em junho de 2015, a que o Catholic News Service teve acesso, um padre de Nova York fala ao religioso sobre alegações de "assédio/abuso sexual" que ele tinha ouvido sobre o então cardeal Theodore McCarrick e pede que ele encaminhe a questão para “o setor competente no Vaticano” se estiver fora de sua alçada.

“Levei anos para escrever e enviar a carta”, revela o padre Boniface Ramsey, pastor da Igreja de São José, em Yorkville, Nova York, que a disponibilizou ao CNS no início de agosto. Mas foi a segunda vez que ele tentou escrever sobre funcionários da Igreja.

A reportagem é de Rhina Guidos, publicada por Catholic News Service - CNA, 13-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Na carta, ele descreve conversas de O'Malley com o reitor de um seminário em Nova Jersey sobre viagens que McCarrick, líder da arquidiocese de Newark, Nova Jersey, faria com os seminaristas para uma casa de praia.

Durante o período mencionado na carta, entre 1986 e 1996, ele diz que lecionava no Seminário Imaculada Conceição na Universidade de Seton Hall, em Nova Jersey. Ele escreve sobre relatos que ouviu falar sobre viagens de McCarrick para uma casa de praia de Nova Jersey, onde, com muitos seminaristas convidados para muito poucas camas, "diziam que o seminarista que ficava sem cama poderia compartilhar com o arcebispo".

"Algumas dessas histórias não chegaram a mim como meros boatos, mas foram contadas por pessoas diretamente envolvidas", escreveu.

Em uma entrevista por telefone ao CNS no dia 13 de agosto, Ramsey disse que não sabia da ocorrência de quaisquer atos sexuais, "mas pensava que o comportamento dele (McCarrick) era, no mínimo, extremamente inadequado". Ele disse que tomou cuidado com o que escreveu na carta a O'Malley porque não queria espalhar boatos que tinha ouvido, mas estava preocupado com a questão de as camas serem compartilhadas após ouvir que recaiu sobre um de seus amigos que era encarregado de encontrar seminaristas para as viagens do arcebispo à praia.

"Eu nunca tinha ouvido falar que algum adulto já tivesse tido relações sexuais com McCarrick", disse, mas sentia que compartilhar a cama constantemente, algo que tinha ouvido falar, era "algo que ele não deveria fazer".

A carta, de 17 de junho de 2015, foi enviada logo após a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, liderada por O'Malley, receber os estatutos, em maio de 2015. Ramsey disse que enviou naquele momento porque tinha ouvido falar da formação da comissão e porque recentemente tinha visto McCarrick no velório do cardeal de Nova York Edward Egan, que morreu em março de 2015. Naquela época, o prelado era arcebispo de Washington.

"Eu estava com raiva", disse Ramsey ao Catholic News Service. "Eu disse: 'esse cara ainda está por aí.'"

Ele diz que ficou "chateado" de ver que McCarrick "podia continuar mostrando a cara depois desta longa história que tanta gente conhecia".

Ele tinha escrito uma carta sobre suas preocupações mais de uma década antes, em 2000, que não demonstrava que teria qualquer efeito, mas quando viu McCarrick surgiu uma nova motivação e ele "queria que isso parasse de acontecer com os seminaristas", disse, durante a entrevista. Então, ele se sentou e escreveu uma carta – novamente.

"A questão não tem a ver com o abuso de menores, mas com uma forma de assédio/abuso sexual ou talvez simplesmente brincadeiras como as de Theodore McCarrick com os seminaristas e talvez com outros jovens quando era arcebispo de Newark", diz a carta de Ramsey a O'Malley.

Em julho, num comunicado, O'Malley disse que não recebeu a carta "pessoalmente", mas a declaração dizia que "a carta foi revista pelos funcionários e foi determinado que os assuntos apresentados não eram da competência da Comissão ou da Arquidiocese de Boston..." No entanto, a resposta do gabinete do cardeal não dizia se a carta tinha sido adequadamente encaminhada, como solicitado por Ramsey.

Na carta a O'Malley, Ramsey diz que tinha contado suas preocupações ao arcebispo de Louisville, Thomas Kelly, que faleceu em dezembro de 2011. Kelly respondeu que "as histórias sobre o arcebispo McCarrick circulavam entre os bispos dos Estados Unidos", segundo a carta, e que Kelly havia mencionado uma história envolvendo um comissário de bordo.

Na entrevista ao CNS, Ramsey disse que se tratava de uma história sobre um comissário de bordo com quem McCarrick "se envolveu" durante um voo, dizendo que talvez ele tivesse vocação. McCarrick acabou registrando-o em um seminário, mas parecia haver razões além das religiosas para querer sua permanência. O comissário seminarista depois foi expulso do seminário.

Na carta, Ramsey diz que depois que McCarrick foi indicado para a arquidiocese de Washington, em 2000, ele tentou falar, em Washington, com o Núncio Apostólico, que na época era Gabriel Montalvo Higuera, sobre o que sabia. O Núncio instruiu a escrever uma carta, a qual Ramsey diz ter enviado. Ele contou a outro padre sobre a carta, e esse amigo tentou dissuadi-lo de enviar, dizendo que poderia machucá-lo.

"Nunca recebi qualquer confirmação, apesar de saber de certa forma que a carta foi recebida e que a informação foi encaminhada para algum lugar no Vaticano", escreveu O'Malley.

Escrever a carta não parece ter ferido Ramsey, como temia o amigo. E suas revelações também não parecem ferir McCarrick.

"Fiquei chocado quando o arcebispo McCarrick foi promovido à arquidiocese de Washington, pois é provável que muitas pessoas no Vaticano estavam cientes de suas inclinações antes da indicação", escreveu na carta a O'Malley. "E depois, claro, para o cardinalato, o que já era esperado para o arcebispo de Washington, mas ainda assim preocupante."

Citando casos de altos funcionários que arruinados devido a má conduta sexual, ele disse na carta que "parece estranho que o cardeal McCarrick ande por aí, com sua forte presença em eventos religiosos (bem como eventos papais), seja entrevistado, dê palestras, participe de comissões e coisas do gênero. Será que o que ele fez não é no mínimo muito questionável? Não foi tirar vantagem de jovens que não sabiam como dizer não ao arcebispo? Não contribuiu, devido a grande quantidade de leigos e clérigos cientes de suas ações, para o cinismo da Igreja e da hierarquia?"

Ramsey disse que não guardou a carta enviada em 2000 para o Núncio Apostólico, mas entre a primeira e a segunda carta enviada, ele contou que tentou falar com outras pessoas, como Egan, sobre como impedir que McCarrick continuasse agindo assim.

Egan disse: "não quero saber disso", relatou Ramsey ao CNS.

Segue o texto da carta de Ramsey a O'Malley:

Caro Cardeal O'Malley,

Escrevo sobre um assunto delicado, sobre o qual entrei em contato com o arcebispo Montalvo, o Núncio Apostólico, em novembro de 2000. Sinto que, depois de pensar a respeito por vários anos, devo entrar em contato novamente, agora com o senhor. A questão não tem a ver com o abuso de menores, mas com uma forma de assédio/abuso sexual ou talvez simplesmente brincadeiras como as de Theodore McCarrick com os seminaristas e talvez com outros jovens quando era arcebispo de Newark.

De 1986 a 1996, lecionei Patrologia no Seminário Imaculada Conceição na Universidade Seton Hall e durante grande parte desse período fui mentor e diretor espiritual. (Eu era dominicano naquela época e hoje sou sacerdote da arquidiocese de Nova York). Desde o início de meu período no seminário, ouvi de vários seminaristas que o arcebispo McCarrick tinha o hábito de convidá-los para sua casa na praia de Nova Jersey; e sempre convidada um seminarista a mais do que o número de camas, e diziam então a esse seminarista que ele poderia compartilhar a cama com o arcebispo. O arcebispo McCarrick pedia que o reitor do seminário encontrasse seminaristas dispostos a ir à casa na praia, o que aparentemente o reitor fazia com muita relutância, sem saber como se recusar a atender ao bispo. O reitor era um amigo, alguém que eu admirava. Quando pude conversar com ele sobre isso, acredito que ele tenha realmente decidido resistir ao arcebispo. No entanto, não sei se o arcebispo cessou os convites. Havia também histórias de seminaristas e jovens que compartilhavam a casa do arcebispo e “sobrinhos” com privilégios especiais (como estudar em Roma), e assim por diante. Algumas dessas histórias não chegaram a mim como meros boatos, mas foram contadas por pessoas diretamente envolvidas.

Inicialmente, guardei estas informações, considerando um segredo natural, mas acabei descobrindo que eram bastante conhecidas na arquidiocese e também fora dela, o que fez com que eu não me sentisse responsável por observar qualquer confidencialidade. Conversei com o arcebispo de Louisville, Thomas C. Kelly, que é meu amigo, em algum momento nos anos 90, e ele disse que as histórias sobre o arcebispo McCarrick circulavam entre os bispos dos Estados Unidos e ele próprio mencionou uma história a respeito de um comissário de bordo (que eu conheci no seminário e que foi expulso por ter ido atrás de outro seminarista).

Quando o arcebispo McCarrick foi nomeado arcebispo de Washington, em novembro de 2000, decidi informar o Núncio Apostólico sobre o que eu sabia. Primeiro liguei para ele, conversei diretamente sobre a situação e perguntei se ele receberia uma carta minha. Ele disse que sim. No dia seguinte eu mudei de ideia e liguei dizendo que estava na dúvida sobre mandar ou não a carta. Ele me disse sem rodeios que eu deveria enviá-la, e foi o que eu fiz. Nunca recebi qualquer confirmação, apesar de saber de certa forma que a carta foi recebida e que a informação foi encaminhada para algum lugar no Vaticano.

Fiquei chocado quando o arcebispo McCarrick foi promovido à arquidiocese de Washington, pois é provável que muitas pessoas no Vaticano estavam cientes de suas inclinações antes da indicação. E depois, claro, para o cardinalato, o que já era esperado para o arcebispo de Washington, mas ainda assim preocupante.

Hoje, quando o antigo núncio da República Dominicana foi a julgamento por abuso infantil e o arcebispo de Saint Paul acabou de renunciar pela mesma questão, e um cardeal escocês foi recentemente desonrado por má conduta sexual com os sacerdotes, para mim é estranho que o cardeal McCarrick ande por aí, com sua forte presença em eventos religiosos (bem como eventos papais), seja entrevistado, dê palestras, participe de comissões e coisas do gênero. Será que o que ele fez não é no mínimo muito questionável? Não foi tirar vantagem de jovens que não sabiam como dizer não ao arcebispo? Não contribuiu, devido a grande quantidade de leigos e clérigos cientes de suas ações, para o cinismo da Igreja e da hierarquia?

Não sei se as ações cometidas pelo cardeal McCarrick são de sua competência, mas, se forem, melhor ainda. Se não, talvez o senhor possa encaminhar esta carta para o setor competente no Vaticano.

Agradeço pela atenção dada a esta carta, a qual levei anos para decidir escrever e enviar.

Atenciosamente em Cristo,

(Rev.) Boniface Ramsey
Administrador

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Carta sobre abusos endereçada ao Cardeal O'Malley era a segunda enviada por padre a funcionários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU