11 Julho 2018
"Longe, muito longe, restaram as cinzas, as ruínas ou os escombros de um pobre casebre abandonado; de uma aldeia saqueada, varrida e dizimada pelo terror; dos mortos e feridos espalhados em todas as direções... A ameaça do retorno e a fuga em massa", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Eis o artigo.
Multidão anônima e desfigurada, adormecida em sono eterno há alguns palmos abaixo do solo. Dispersa por todo o mundo, nos cemitérios que se converteram em campos abandonados e esquecidos. Alguns deles foram até mesmo transformados em pontos turísticos: o turismo da barbárie humana, campos onde as cruzes parecem organizadas para o total anonimato. Contam-se aos milhões os filhos da guerra, dos massacres, dos genocídios, da “limpeza étnica”. Filhos dos holocaustos, de Auschwitz e de Gulag, de experiências do semelhantes. Filhos do fundamentalismo, do fanatismo e do totalitarismo, seja este de caráter político, ideológico ou religioso. Filhos das tensões, dos conflitos e da violência; filhos da pobreza, da miséria e da fome. Filhos da migração forçada que separa os que ficam dos que partem para o desconhecido. Filhos de tantos sepultados vivos nas águas do mar, no escuro da floresta ou nas areias do deserto. Para sempre deixados sós, no silêncio da morte. Pior ainda, no mutismo do medo, da discriminação, do preconceito, da xenofobia e da indiferença.
Em lugar do nome completo numa placa, o número de série de mais um entre os “desaparecidos”. Em lugar de uma foto, lama e sujeira que vão cobrindo tudo ao redor. Em lugar de um aceno à família e aos ancestrais, o vazio de um ausente que para sempre deixou a casa e a terra natal. Em lugar de flores, ervas daninhas que crescem por toda parte. Em lugar de uma ou outra visita, a presença furtiva e noturna dos ratos, gatos e cães. Em lugar de um símbolo religioso, um céu longínquo por teto e, por leito de morte, a terra úmida e escura. Em lugar de qualquer ornamento, a pedra nua e fria da tomba. Em lugar do pranto e de uma lágrima de um ente querido, a chuva que indiscretamente tudo penetra e tudo devasta.
Antes, porém, algumas e breves notícias nos jornais, com suas manchetes sensacionalistas – espetaculares e espetacularizadas! Número de vítimas, náufragos ou desaparecidos. Número de mulheres e crianças não acompanhadas. Informações reduzidas sobre o lugar de origem e de destino, as principais motivações da travessia, os possíveis culpados da tragédia, os discursos das autoridades de plantão, a presença invisível (mas sempre assustadora e expectral) dos traficantes de seres humanos, os voluntários atarefados, a população ao mesmo tempo compadecida e em pânico. E é possível ver as imagens dos caixões enfileirados, dos sobreviventes perdidos e perplexos, de algum religioso paramentado para uma cerimônia fúnebre, dos soldados e forças da ordem em passo de marcha, como a bater os passos macabros da morte.
Longe, muito longe, restaram as cinzas, as ruínas ou os escombros de um pobre casebre abandonado; de uma aldeia saqueada, varrida e dizimada pelo terror; dos mortos e feridos espalhados em todas as direções... A ameaça do retorno e a fuga em massa! Quem sabe seja outro o cenário: o deserto ardente de um solo estéril, batido pelo vento e pelo sol de uma estiagem prolongada e implacável – seco e infecundo como a própria decrepitude. Ou ainda uma terceira cena: a borrasca torrencial, a terra lavada, enlameada e devastada pela tempestade, a inundação, as águas turvas e torvas que tudo invadem e tudo destroem; as plantações arrasadas, os “bichinhos” mortos ou levados pela corrente, sumidos... Tentar outro recomeço? Não, desta vez será impossível levantar-se do chão! Resta a fuga!
E a família, os parentes, os amigos, os conhecidos? Separados, divididos para sempre, trilhando caminhos múltiplos, cada um seguindo seu próprio instinto de sobrevivência, em diferentes horizontes de esperança. O leque de escolhas se abre, as vias se afastam umas das outras irremediavelmente. Permanecem, mesmo isolados, os sonhos, as lutas, a teimosia e a resistência, Mas, pouco a pouco, os sonhos vão se convertendo em pesadelos. Poucos reencontros entre os familiares, um que outro telefonema, escassez regressiva de informações, até a perda total de qualquer contato. E então chega o mar, a presença de outros fugitivos, os traficantes que “vendem” a passagem... Depois, num determinado dia, pode ser que circule a notícia de um certo “naufrágio” (um entre tantos outros!) e de um final trágico... Ao menos assim, “a vítima, o náufrago ou o desaparecido” pode ter enfim o consolo de uma lágrima, uma que seja!
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