A flexibilização da regulação dos planos de saúde - A privatização do sistema de saúde e o desmonte do SUS. Entrevista especial com Carlos Octávio Ocké-Reis

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Por: Vitor Necchi e Patricia Fachin | 05 Julho 2018

A Agência Nacional de Saúde SuplementarANS estabeleceu, no dia 28 de junho, novas regras para cobrança de coparticipação e de franquia em planos de saúde, expressas na Resolução Normativa nº 433. As consequências para o consumidor são, “para quem permanecer no mercado, um aumento dos gastos e/ou uma piora do estado de saúde; para quem sair do mercado, uma apropriação da ‘poupança forçada’ (prêmios) realizada ao longo do ciclo de vida para reduzir os custos associados ao risco de adoecer”, afirma Carlos Octávio Ocké-Reis em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Outra consequência é que, ficando mais caros os planos de saúde privados, deve aumentar a demanda pelo SUS, “sem nenhum planejamento prévio do Estado”. Por fim, se o acesso a planos de saúde ficar difícil e caro, usuários podem diminuir os cuidados com a saúde e diagnósticos precoces ficam comprometidos, gerando “um efeito perverso que deveria ser combatido pela ANS”.

Para Ocké-Reis, o lobby das empresas de planos de saúde é “cada vez mais forte no governo Temer”. Ao resumir a questão, afirma que “o poder econômico captura a ANS e as políticas do Ministério da Saúde voltadas para esse mercado dentro e fora do SUS”. O projeto da ANS de flexibilização da regulação dos planos individuais, na sua visão, “está contido num projeto maior de privatização do sistema de saúde brasileiro e de desmonte do SUS”.


Carlos Octávio Ocké-Reis
Foto: Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

Carlos Octávio Ocké-Reis é graduado em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, especialista em International Health Economics pelo Centre for Health Economics, University of York (York, Inglaterra), mestre e doutor em Saúde Coletiva pela UERJ, com estágio pós-doutoral na Yale School of Management (New Haven, EUA). Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Foi pesquisador visitante das universidades de Yale (New Haven, EUA), Columbia (Nova York, EUA) e Mannheim (Mannheim, Alemanha). Ex-diretor do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento - Desid do Ministério da Saúde e ex-assessor econômico da presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Autor do livro SUS: o desafio de ser único (Editora Fiocruz, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS anunciou novas regras para cobrança de franquia e coparticipação nos planos de saúde. O que prevê essa mudança?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Basicamente restringir, no curto prazo, a taxa de utilização dos serviços privados de saúde. Essa regra só vai valer para os novos contratos, mas essa prática do copagamento já existe. O ponto é que, ao se institucionalizar para frente essa nova forma de gerir os riscos e a utilização dos pacientes, o mercado como um todo adotará essa prática e inclusive bancará a judicialização. Não podemos esquecer que os planos coletivos, sejam os empresariais ou por adesão, são regulados no sentido de que são monitorados; a rigor, esse é um mercado não regulado.

IHU On-Line – A ANS alega que o objetivo dos mecanismos de franquia e de coparticipação é coibir o mau uso do serviço. Isso procede?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Apenas residualmente. Nos planos administrativo e jurídico, a tônica é exatamente a negativa de cobertura; no plano comercial, as operadoras atraem os consumidores enfatizando a ampliação da cobertura e o uso de tecnologia, mas, na prática, procuram racionalizar tal utilização, um paradoxo do seu padrão de competição; e, finalmente, no plano teórico, considerando as incertezas presentes nesse mercado, essa medida é altamente duvidosa nas dimensões econômica e epidemiológica.

Aparentemente essa estratégia tem por objetivo reduzir o preço de entrada dos planos individuais, mas, obviamente, na prática reduzirá a cobertura. Embora à primeira vista isso apareça como uma estratégia comercial decorrente da introdução da franquia e do copagamento, ou seja, tentar com um preço menor atrair mais consumidores neste momento de estagnação da economia brasileira, para mim, na verdade, o que está em jogo nessa mudança é uma tentativa de terminar com os planos individuais. Digo isso porque você há de convir que existe um movimento simultâneo de aumento de preço dos planos individuais, com reajustes abusivos, o qual já vem expulsando uma clientela, seja dos planos empresariais, que têm tido um reajuste maior, seja dos planos individuais.

Os planos oferecem um novo produto, digamos assim, aparentemente mais barato, mas que, na prática, em pouquíssimo tempo o consumidor vai perceber que é uma furada; é óbvio. A principal estratégia com esse mecanismo, supondo que o mercado de planos individuais antigos tenha cada vez mais reajustes de planos crescentes, é tornar esse mercado absolutamente residual.

De um ponto de vista econômico stricto sensu, não está correto dizer que as famílias e os trabalhadores de modo geral fazem uma poupança forçada ao longo do seu ciclo de vida, pagando as mensalidades do plano de saúde para, quando adoecerem, socializarem esse custo. É basicamente disso que se tratam os planos de saúde: você participa de um programa associado ao seu risco de adoecer para, quando você tiver um problema de saúde, não ter que despender do próprio bolso um custo maior ainda.

No fundo, esse tipo de mecanismo de aumento dos preços individuais e aumento dos preços coletivos, ou seja, quando se aumentam esses preços, o plano está rescindindo unilateralmente os contratos, mesmo que nos planos individuais isso não seja possível.

Por fim, sei que estou tratando do detalhe do detalhe, mas essa mudança é uma forma de legitimar reajustes de preços abusivos do mercado antigo dos planos individuais. É uma forma de o mercado dizer que está oferecendo outra opção para os indivíduos, mas, no fundo, essa estratégia que aparece como comercial, que propõe reduzir os preços e racionalizar a utilização, gerenciando melhor o risco, tem como objetivo – aos meus olhos, como analista de políticas de saúde e que conhece relativamente bem a dinâmica do mercado de saúde norte-americano – reduzir ao máximo os planos individuais, justamente porque esse segmento do mercado é regulado.

O mercado não quer regulação, ele quer o mercado livre, porque, do contrário, os planos não podem rescindir os contratos, não podem reajustar seus preços de acordo com o que querem. E o pior é que a ANS está capturada. Então, sem querer ser grosseiro no meu argumento, é isto mesmo: esse nicho de mercado é regulado, e o mercado não quer regulação. O que é o projeto liberal? É flexibilizar qualquer regulamento no que se refere, em particular, à regulação da taxa de lucro, porque é disso que se trata.

IHU On-Line – Quais as consequências das novas medidas para o consumidor?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Para quem permanecer no mercado, um aumento dos gastos e/ou uma piora do estado de saúde; para quem sair do mercado, uma apropriação da “poupança forçada” (prêmios) realizada ao longo do ciclo de vida para reduzir os custos associados ao risco de adoecer.

IHU On-Line – Que interesses estão em jogo com as novas regras de cobrança?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Uma forma disfarçada de rescindir unilateralmente os contratos com pouca transparência e racionalidade sobre o nível de gastos e as condições de saúde do usuário no longo prazo.

IHU On-Line – Se os planos de saúde privados ficarem mais caros, deve aumentar a demanda pelo SUS?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Sim, claro, sem nenhum planejamento prévio do Estado.

IHU On-Line – Se o acesso a planos de saúde ficar difícil e caro, usuários podem diminuir os cuidados com a saúde? Diagnósticos precoces ficam comprometidos?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Exatamente, um efeito perverso que deveria ser combatido pela ANS.

IHU On-Line – Nos últimos anos, com a crise econômica, os planos de saúde têm conseguido expandir sua base de usuários? A atividade tem obtido que patamares de rentabilidade?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Não expande a base de forma significativa, mas mantém a lucratividade, seja via aumento de preços, seja com os subsídios que alcançaram R$ 12,5 bi em 2015.

IHU On-Line – O lobby das empresas de planos de saúde é forte? Elas conseguem que tipo e que nível de articulação em prol dos seus interesses?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Cada vez mais forte no governo Temer. Em resumo, o poder econômico captura a ANS e as políticas do Ministério da Saúde voltadas para esse mercado dentro e fora do SUS.

IHU On-Line – Sendo a saúde um direito universal, os parâmetros de regulação das empresas não deveriam levar em conta o interesse do usuário?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Sim, em particular a possibilidade de os usuários terem a capacidade de influir no poder decisório sobre os preços, a cobertura e a qualidade de seus planos.

IHU On-Line – A capacidade regulatória do Estado nos serviços de saúde privada deve seguir que princípios?

Carlos Octávio Ocké-Reis – A partir do nexo do seguro social, a defesa do consumidor, da concorrência regulada, da qualidade da atenção à saúde privada e do interesse público.

IHU On-Line – O SUS é uma conquista cidadã a partir da Constituição de 1988. Ele se encontra em que situação? Qual a perspectiva no atual cenário?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Com a EC 95 [Emenda Constitucional Nº 95], o SUS está em processo acelerado de sucateamento. Existe uma tendência à privatização do sistema de saúde brasileiro e, portanto, a possibilidade de aumento da desigualdade na sociedade brasileira.

IHU On-Line – Essa via pela qual os planos de saúde estão seguindo é uma consequência da forma como o Estado brasileiro tem lidado com os planos de saúde e o SUS nos últimos anos, inclusive fomentando a ampliação dos planos de saúde?

Carlos Octávio Ocké-Reis – Sem dúvida. Se olharmos a EC 95, basicamente em relação a qualquer parâmetro, seja o PIB, seja a receita corrente líquida, seja o gasto público per capita, o gasto em saúde tenderá a diminuir em termos reais, ou seja, já descontada a inflação. Com a implementação da EC 95, por mais que se diga que não houve teto para saúde e educação, houve teto para a despesa primária. E, se houve teto para a despesa primária, alguma hora vai bater na saúde ou no conjunto das áreas sociais, e já observamos isso em 2016 e 2017.

Por outro lado, sabemos que o Ministério da Saúde propôs os Planos de Saúde Populares e houve um conjunto de mudanças na própria atenção básica. Então o projeto do Ricardo Barros [ministro da Saúde de 12 de maio de 2016 a 2 de abril de 2018], em particular com a vitória do governo Temer – não estou nem entrando no mérito das consequências disso –, claramente é um projeto privatista, porque o SUS tem uma capacidade muito grande de distribuir renda, sobretudo entre os estratos inferiores de renda. Já fizemos estudos e simulações sobre isso, os quais mostram que o SUS é claramente redistributivo. Nesse sentido, se houver um aumento dos gastos das famílias com bens e serviços privados em saúde, é claro que isso aumentará a desigualdade da sociedade brasileira, porque aquilo que essas famílias recebem – se pudéssemos monetizar – via os tratamentos do SUS num sentido amplo, garantem que elas possam ter uma maior renda disponível para o consumo de massa. Foi essa a lógica que esteve por trás do welfare state no pós-guerra.

O projeto da ANS de flexibilização da regulação dos planos individuais está contido num projeto maior de privatização do sistema de saúde brasileiro e de desmonte do SUS. Não estou usando a palavra desmonte como figura de linguagem. Trata-se de uma redução em termos reais dos gastos públicos em saúde.

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