28 Fevereiro 2018
Aclamado no evento sindical da quarta-feira, 21 de fevereiro, o Papa é uma figura difícil de classificar, com uma aguda e estratégica sensibilidade política.
A reflexão é de José María Poirier Lalanne, jornalista e diretor da revista Criterio, em artigo publicado por La Nación, 26-02-2018. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Quando se escreve sobre Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, é necessário sempre distinguir alguns aspectos. Em primeiro lugar, se a atenção está posta na repercussão de sua figura em nosso país ou em outros. Em segundo lugar, se se faz referência aos elementos políticos que emergem de suas palavras e gestos ou, em vez disso, se diz respeito aos aspectos mais estritamente pastorais. Finalmente, se é preciso ater-se rigorosamente às suas palavras ou considerar a abundante hermenêutica de alguns que se autointitulam “porta-vozes” ou “intérpretes” de Sua Santidade.
Além disso, na minha opinião, há precisamente pelo menos dois elementos da personalidade de Bergoglio que são tão determinantes como difíceis de harmonizar para um observador externo: por um lado, seu sentido pastoral amplo e profundo, aberto e sem preconceito; por outro lado, a quase impossibilidade de conhecer seu pensamento mais íntimo, sempre acompanhado por uma sensibilidade política aguda e estratégica.
Curiosamente, antes de chegar ao pontificado, ele era um bispo reservado, de poucas palavras em público, com voz calma e gesto hierático. Proverbial, a expressão adusta do rosto. No entanto, desde o momento em que começou sua missão universal, emergiu outra imagem de sua pessoa: demonstrou ser um extraordinário comunicador, um “carismático” da palavra, sorridente e afável com as infinitas pessoas que ele encontra em suas audiências e, em geral, nas suas viagens. O acidentado périplo chileno marcou claramente uma exceção a este respeito e, talvez, um momento em que o Pontífice perdeu a paciência e a moderação. Erro que está pagando caro.
E a relação do Papa com a Argentina mostra, precisamente, uma de suas facetas mais complicadas de sua personalidade. Quando, no ato que reuniu milhares de pessoas e que foi organizado por Hugo Moyano e um grupo heterogêneo de lideranças sindicais, políticas e sociais, foi nomeado e aclamado, a confusão foi geral. Embora estejamos acostumados com as duras declarações de Gustavo Vera ou Juan Grabois, qualquer excesso depõe contra o próprio Papa. E cabe uma pergunta: até que ponto eles contam com a aprovação do Papa? Ou melhor: até quando?
Bergoglio é tão peronista quanto muitos outros prelados argentinos e um grande grupo de clérigos locais. Para entender o porquê seria preciso remontar à história das relações entre Perón e a Igreja, às vezes repletas de empatia e outras vezes de perseguição. A verdade é que, para essa visão social, os princípios democráticos formais e a essência republicana significam pouco. Por cima paira a figura do líder que procura uma relação direta com as massas, sem maior interesse pelas mediações políticas e a vida das instituições convencionais.
Em Roma, percebe-se que sob frases diplomáticas e de certa tradição de não contradizer o Papa, não poucos escondem suas reservas e também suas críticas. Não se trata de diferenças entre conservadores e progressistas, entre a tradição e a mudança, mas de algo mais sutil e inacessível. A instituição do papado é semelhante à de uma monarquia absoluta, e o papa tem poder ilimitado. Quando uma perspicaz observadora da realidade social me dizia que Bergoglio agora não tem ninguém acima dele, eu lhe insinuei que, para os crentes, está Jesus Cristo. Mas, é claro, isso pertence a outra dimensão do discurso. Não vale para a análise das ciências políticas.
Quem o enfrenta na famosa cúria romana? Em primeiro lugar, provavelmente a própria burocracia, tão antiga e com uma linguagem assaz particular. E também personalidades muito diferentes e por razões quase antagônicas: para alguns, as reformas não passam das palavras ou das boas intenções e, para outros, a abertura ao debate interno enfraqueceu as bases da Igreja. Não poucos prelados romanos repetiam a frase bem conhecida de que os papas passam, mas a cúria permanece. Acontece que o que se entendia como um papado breve já não o é tanto e que o estilo de Bergoglio é difícil para alguns. Admitia um homem próximo ao Vaticano que a comunicação na Santa Sé é caótica, mas um caos em que este Papa se move com conforto e destreza.
Suspeito, no entanto, que subvalorizar Bergoglio é sempre um erro, inclusive grave na hora de tentar entendê-lo. Esse tema é bem conhecido entre seus irmãos jesuítas. Também políticos e bispos caíram nesse mesmo erro. Quando Cristina Kirchner entendeu o equívoco, Bergoglio já era Francisco.
Curiosamente, ele é um papa que prega a comunhão e a colegialidade – e o faz com convicção intelectual e autenticidade pessoal –, mas demonstra estar mais acostumado a um estilo de governo personalista, a decisões sem consulta, a dar mais valor à sua própria intuição do que a outros casos. Suas mensagens são, às vezes, muito claras e diretas, e, outras vezes, intrincadas e difíceis. Isso mostra a desconfiança tão típica dos políticos de raça que sabem guardar seus próprios segredos sob sete chaves e revelam o jogo apenas (parcialmente) no momento em que o julgarem apropriado.
Com a encíclica Laudato Si’, para além de seus acertos ou não do ponto de vista científico, demonstrou uma grande perspicácia política: enfrentou uma questão particularmente sensível para as novas gerações e atraiu a atenção da Igreja, tendo em conta o interesse no cuidado do planeta e a consequente responsabilidade que nos cabe. Da mesma forma, suas intervenções políticas (especialmente na América Latina), ao mesmo tempo em que suscitam críticas em muitos por suas marcadas cores terceiromundistas e seicentistas, ganham o apoio de amplos setores. No fundo, ele o havia anunciado desde as suas primeiras palavras: “Como desejo uma Igreja pobre para os pobres!” É essa uma visão tendenciosa, um recurso populista? De qualquer forma, essa é a visão de um papa que não abunda em elogios à democracia e à divisão de poderes, que não se sente atraído pela “cidadania”, mas pelo “povo”.
Obriga isso a um alinhamento de toda a Igreja? Isso não apenas não é possível agora, senão, na realidade, com suas vantagens e desvantagens, sempre o foi. A Igreja é uma comunidade plural. Em todo caso, cada Papa destaca alguns aspectos do Evangelho ou da doutrina que são complementados pelos anteriores e que serão completados com os posteriores.
Bergoglio não se dá bem com os protocolos e as formalidades palacianas do Vaticano e é popularmente admirado por sua austeridade e defesa enfática dos menos favorecidos, dos migrantes e dos excluídos. Sua personalidade impressiona no tratamento com as pessoas. Seu olhar é agudo e perscrutador. Seus pensamentos ficam velados no mistério de sua personalidade.
Alguns jornalistas europeus me assinalavam que este é o primeiro papa que conheceu a pé uma grande metrópole como Buenos Aires, com todos os seus contrastes e misérias. Um padre que andava de transporte público e adorava estar entre as pessoas, muitas vezes como um padre anônimo. Nesse sentido, ele é um pastor do mundo contemporâneo, embora não raramente deixe transparecer sua nostalgia de passados míticos.
Muitos artigos e livros sobre Bergoglio foram escritos, muitos documentários e filmes de ficção foram filmados que seria impossível abarcá-los. Ele afirma não se interessar pelo que dizem sobre sua pessoa, mas é raro que algo lhe escape.
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Um pastor contemporâneo, nostálgico de passados míticos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU