24 Fevereiro 2018
Babel. Conversaciones con Ezio Mauro (Trotta, 2017) [Em português, Babel. Entre a incerteza e a esperança, ed. Zahar, 2016] contém a suculenta conversa entre Zygmunt Bauman e Ezio Mauro sobre o diagnóstico e as possíveis alternativas a partir da última grande crise. Ezio Mauro foi diretor do jornal italiano La Repubblica durante mais de duas décadas, e foi ele quem, seguindo a linha do fundador Scalfari, fez deste jornal um instrumento para ajudar aquela esquerda dos anos 1970 a “sair da couraça do comunismo e se encontrar com a cultura da democracia liberal”. Mauro se retirou da direção de La Repubblica em 2016, mas ainda segue ativo. Em dezembro de 2017, apresentou seu novo livro, ainda não traduzido, L’anno del ferro e del fuoco, uma crônica romanceada sobre a Revolução de Outubro. E o falecido Zygmunt Bauman é, como todo mundo sabe, quem nos propôs o sugestivo e produtivo conceito de “modernidade líquida”, cuja potência deixou a descoberto a dissolução de todas as expectativas da esquerda clássica.
A reportagem é de Sergio Hinojosa, publicada por InfoLibre, 22-02-2018. A tradução é do Cepat.
Uma nova desordem babilônica, que a crise destapou, se estende e penetra como um exército invasor. “Todo o arcabouço material, institucional e intelectual da construção democrática, que o Ocidente erigiu durante a trégua do pós-guerra: governos, parlamentos, corpos intermediários, sujeitos sociais, antagonismos, welfare state, partidos e movimentos nacionais, internacionais, continentais desaba para se perder em um passado sem memória”. A memória fica, como disse Mauro, só “como vintage, para comprar e consumir e não como ponto de referência e confrontação”.
A crise arrasou estes fundamentos sem projeto algum, sem cabeça visível, como uma “força autônoma”, afirma Mauro. E refletindo sobre o futuro, acrescenta: “Como se, uma vez sepultadas felizmente as ideologias, não soubéssemos olharmos para dentro e para frente todos juntos. Superado o que servia para organizar o ‘conjunto’ – as grandes culturas políticas, os partidos, os canais de discussão -, o espaço onde raciocinar e discutir com os demais se restringiu e o discurso político se atrofiou”.
Bauman oferece, então, uma análise sobre a ruína dos estados soberanos e suas instituições. E Mauro incide no abandono das antigas e clássicas funções do Estado: “a desordem econômico-financeira se propagou sem obstáculos ao encontrar as portas da democracia abertas e desencaixadas... Eu, cidadão, sacrifico parcelas de minha liberdade, e você Estado, me oferece razões crescentes de segurança que para mim valem mais; essa troca, digo, foi bloqueada. O Estado já não está interessado em cotas à venda porque a Bolsa do poder faz fixing em outra parte, nos espaços impessoais dos fluxos... tampouco o poder público tem certezas, nem amparos a oferecer e intercambiar, porque não pode garantir o que vende, já que o governo está esgotado e fora de controle”.
“Até há algum decênio – afirma Bauman – a soberania política de um estado territorial era considerada solidamente sustentável em sua autonomia econômica, militar e cultural, mas nenhuma delas, hoje, é imaginável”.
“Já não usamos a política, desconfiamos das instituições que temos, duvidamos inclusive da democracia que parecia a única religião possível e destinada, segundo alguns, a se tornar universal, após a fuga das falsas divindades que havíamos criado no século XX”, responde Ezio Mauro.
Onde encontrar indícios daquilo que possa nos oferecer liberdade e segurança quando o Estado agoniza? Os tempos do capital fixo, “investido em pesados, maciços, não transferíveis edifícios e maquinaria industrial” já são história. Agora, estamos desarmados frente a “investidores sumamente móveis, flutuantes, caprichosos, inquietos e imprevisíveis, constantemente em busca de melhores e mais altos lucros e dispostos a voar onde a publicidade deixe entrever fugazes oportunidades favoráveis...”. O capital financeiro especulativo ganhou a disputa em relação ao capitalismo clássico territorial. E as condições do proletariado que lhe sustentava, assim como as organizações que regulavam suas demandas frente às exigências do capital, também já são história.
E o que há daquilo que dava continuidade à luta operária?, pergunta-se ironicamente Bauman. “Os sindicatos? As greves? Só conseguiriam mais fábricas (conceito já quase anacrônico) fechadas e mais oficinas abandonadas pelos proprietários do capital, ofendidos pela falta de hospitalidade, pelas arrogantes pretensões da militância e dos incontroláveis sujeitos locais”. A isto, é preciso acrescentar a estratégia do medo: “Tudo o que se move, principalmente entre as fronteiras (imigrantes, capitais financeiros, globalização, contaminações culturais, cosmopolitismo, instituições supranacionais), amedronta e assusta quem está fixo e atado, pois lhe aparece como fora de seu alcance, de seu controle, sem governo, e determina um estranhamento de lugar, de tempo, de identidade”.
Neste contexto, Mauro reivindica o jornalismo como letra de referência. “A revolução espacial provocada pela globalização, junto à revolução tecnológica, causaram o afundamento da moderna espacialidade – espaço nacional, social, político –, desmaterializando a soberania popular e a soberania pública. Tornando quase impossível qualquer verificação dos vínculos de representação. O sistema fantasmagórico dos meios de comunicação anima o novo espaço comum sem organizá-lo, sem poder lhe dar uma dimensão política. É o que você [Bauman] chama de Pandemônio. Assim como em Babel, as línguas se perseguem e embolam, as notícias se autossubstituem antes de produzir uma ideia”.
Diante desta desordem, que carece de autêntica opinião pública, e substitui as ideias pelas percepções - quase sempre autocomplacentes -, Mauro vê o jornal (em papel ou na web) como esse meio capaz de desmontar um fato. Desse modo, “mostra as peças que o compõem, completa-o acrescentando vozes, depoimentos, fotografias, ideias e, ao final, até inclui um comentário. Não para converter ou ganhar o leitor, porque um jornal não é um pregador, nem é um partido, mas, sim, para conduzir o leitor, mediante este percurso organizado, para captar a dinâmica de um fato, compreender o que é que o move e, sobretudo, a formar sua própria opinião”.
A saída não pode ser outra a não ser o diálogo capaz de garantir o bem mais estimado que alcançamos e que, agora, parece se diluir em um fluxo de sinais sem significados. Esse bem é a democracia. A revolução tecnológica conectou todos os pontos até converter o mundo em unidade. Mas, essa “unidade” substitui os valores compartilhados pelo consumo em comum, banalizando e simplificando conceitos chaves. Além disso, existe o risco de “que esta unidade do mundo implique um enorme aumento do ódio recíproco e uma espécie de irritabilidade universal, como observa Pankaj Mishra”. Nosso “multiculturalismo superficial” não previne desse mal, pois é, ao contrário, “uma frágil fascinação pela diversidade, simples flerte com tudo aquilo que aparece como exótico em um sistema que reconhece a legitimidade de culturas diferentes da nossa, mas que ignora ou rejeita o quanto de sagrado e não negociável existe nessas culturas”.
Assim, essa globalidade, essa rede de redes que une o mundo, é como o velho machado, o mesmo corta tanto lenhas como cabeças, dependendo de quem segure o cabo. A responsabilidade não podemos e nem devemos evitá-la. Essa rede não traz, pelo mero fluxo de informação, a democracia, tal como ficou demonstrado na primavera árabe. Facebook e Twitter não serviram tanto para organizar a rebelião, quanto para localizar, identificar e deter os insurgentes.
Embora seja necessário admitir que pela rede circula certa esperança, de momento escorregadia e fugaz, reflexo de uma “corrente de generosidade” que Bauman vê no crescente alcance e peso dos “bens comuns” (commons), “uma expansão animada pelo “espírito comunitário” do dar e do compartilhar, uma cooperação impulsionada pela participação em causas comuns e não pelo proveito pessoal e promocional de si mesmo”.
Contudo, essa corrente é fluxo ocasional e não consegue organizar uma existência estável, que crie laço social. As instituições não sabem escutar o que aí circula, tampouco são capazes de articular a opinião pública, comum e razoável, que seguramente existe na Europa sobre os grandes temas que nos inquietam. Assim, a rede como o machado pode cortar lenhas e ser germe do bem maior que nos sustente, agora de maneira muito precária: a democracia.
Sustentar a democracia, mas em um horizonte distinto. Pois, a sociedade que desponta com a globalização tem traços comuns com as sociedades mais primitivas, como afirmava Joshua Meyrowitz: “A ausência de confins, tanto na caça como na coleta, como nas sociedades eletrônicas, nos levam a muitos surpreendentes paralelismos”. Por essa razão, nem o diálogo necessário e nem a democracia resultante poderão ser os mesmos que até agora.
“Sendo assim, perguntemo-nos: até onde é aberto e disputável o espaço de nosso horizonte? As soluções da técnica, o pensamento dominante, o déficit da autonomia política e a simplificação induzida pela velocidade são elementos da modernidade que parecem nos levar a um grande e invisível funil, em direção obrigatória, ou ao menos recomendada. De qualquer modo, com escassíssimas alternativas... No tempo, em algum regime, era preciso defender a autonomia do indivíduo frente à totalidade invasiva do sistema que o anulava. Hoje, é necessário conferir um valor à solidão do indivíduo particular, torná-la inteligente, consciente: também, neste caso, autônoma, embora, mediante um processo inverso. Conservar a capacidade de escolher significa manter abertas as diversas opções, isto é, o espaço de ação, de ação política”.
“Seja como for – afirma Bauman –, sigo repetindo que entre os veículos disponíveis para percorrer este caminho está o diálogo sério, baseado na boa vontade (informal, aberto, cooperativo, para citar novamente os qualificativos de Richard Sennett), que busque a compreensão recíproca e o benefício mútuo, que mereça a máxima confiança, ainda que, desde já, nem absoluta e nem incondicional. Um diálogo deste tipo não é uma tarefa fácil, nem tampouco, preciso dizer, divertido. Requer uma sólida e constante determinação, capaz de resistir aos repetidos e também muito negativos resultados, um forte sentido do objetivo final, grande habilidade, e a disponibilidade em admitir os próprios erros, junto ao árduo e trabalhoso dever de repará-los; e, sobretudo, muita calma, equilíbrio e paciência”.
Assim, em poucas e substanciosas páginas, transcorre o diálogo, no qual se desfia a realidade atual – essa desordem babélica gerada – para tentar oferecer um diagnóstico, às vezes coincidente, outras com matizes distintas, e tentar abordar possíveis ainda que não muito alentadoras saídas.
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Desordem babilônica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU