23 Fevereiro 2018
No encontro a portas fechadas que teve, no início da Quaresma, mais especificamente no dia 15 de fevereiro, com os presbíteros da diocese de Roma, de que é bispo, Francisco descreveu de maneira inesperada a trajetória de sua própria vida, descrevendo-a como uma série de “passagens”, algumas luminosas, outras sombrias.
A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 21-02-2108. A tradução é de André Langer.
Vamos reler palavra por palavra esta autobiografia muito instrutiva da personalidade de Jorge Mario Bergoglio, na transcrição oficial que foi divulgada e que respeita a maneira desordenada que ele tem para se expressar na língua italiana.
A primeira fase consiste em uma ascensão rápida e fulgurante para o que ele mais tarde definirá como “onipotência”:
“Recentemente ordenado, fui nomeado superior no ano seguinte, mestre de noviços, depois provincial, reitor da faculdade... Uma etapa de responsabilidades que começou com certa humildade, porque o Senhor era bom, mas depois, com o tempo, você se sente mais seguro de si mesmo: ‘eu posso fazer isso, eu posso fazer isso...’, é a frase que vem com maior frequência: você sabe como ir em frente, como fazer as coisas, como administrar...”.
De fato, o jovem jesuíta Bergoglio celebrou sua primeira missa em 1969, em 1970 foi nomeado mestre de noviços e, em 1973, com apenas 37 anos, foi nomeado superior da província argentina da Companhia de Jesus. Ele ocupou este cargo até 1979, quando foi sucedido por um jesuíta próximo a ele, Andrés Swinnen, e depois torna-se reitor do Colégio Máximo São Miguel, cargo que ocupou até 1985.
Deve-se notar, no entanto, que já nesta fase de sucesso apareceu nele uma inquietação interna, que ele procura resolver em 1978, indo “durante seis meses, uma vez por semana” para se consultar com uma psicanalista judia, “que me ajudou muito, quando eu tinha 42 anos”, como ele mesmo revelou no verão passado no livro-entrevista com o sociólogo francês Dominique Wolton.
Mas aqui está a segunda “passagem” da sua autobiografia, não mais ascendente, mas de queda livre, que o Papa Francisco contou aos presbíteros de Roma:
“E tudo isso acabou, todos esses anos de governo... E aí começou um processo de ‘mas agora não sei o que fazer’. Sim, ouvir confissões, terminar a tese de doutorado – que estava ali e que nunca defendi – e depois começar a repensar as coisas. Um período de grande desolação para mim. Vivi este período com grande desolação, um período sombrio. Eu achava que já estava no final da minha vida, sim, eu era confessor, mas com um espírito de derrota. Por quê? Porque eu achava que a plenitude da minha vocação – mas sem dizê-lo, agora eu percebo isso – estava em fazer essas coisas. Mas não, há outra coisa! Eu não abandonei a oração, isso me ajudou muito; rezei muito neste período, mas era ‘seco como uma tábua’. Me ajudou muito a oração, ali, diante do sacrário... Mas os últimos anos deste período – por anos, não me lembro exatamente se foi em 1980... de 1983 a 1992, quase 10 anos, nove anos completos –, nesta última a oração era muito em paz, muito tranquila, e pensei: ‘O que vai acontecer agora?’, porque eu me sentia diferente, muito em paz. Nessa época eu era confessor e diretor espiritual: era o meu trabalho. Mas eu a vivi de maneira muita sombria, muito sombria e com muito sofrimento, e também com a infidelidade de não encontrar o caminho, e com compensações, compensando [a perda] desse mundo de ‘onipotência’, buscando compensações mundanas”.
Desolação, tempo sombrio, aridez, espírito de derrota... De fato, a partir de 1986, quando Víctor Zorzín, seu inimigo jurado, tornou-se o novo provincial dos jesuítas argentinos, Bergoglio foi rapidamente marginalizado, enviado para a Alemanha para estudar contra a sua vontade e, finalmente, forçado a uma espécie de exílio na cidade de Córdoba, entre 1990 e 1992, e sem qualquer outra missão.
Ele se mantém firme graças à oração. Mas, da maneira como ele conta hoje, Bergoglio viveu esses anos com grande sofrimento, numa tensão jamais resolvida entre o sentimento de derrota e o desejo de revanche.
E entre as autoridades da Companhia de Jesus, tanto na Argentina como em Roma, na cúria geral, até o superior geral Peter Hans Kolvenbach, sua falta de equilíbrio psicológico e, consequentemente, o fato de não inspirar confiança, tornaram-se uma opinião comum.
Talvez para oferecer um remédio póstumo a este desacordo, o Papa Francisco, no dia 20 de janeiro no Peru, falando de improviso aos padres e religiosos, quis recordar que ele “gostava muito” do Kolvenbach – “um jesuíta holandês que morreu o ano passado” – também porque “diziam que ele tinha um senso de humor tão bom que era capaz de rir de tudo o que acontecia, de si mesmo e até mesmo de sua própria sombra”.
Mas voltando ao relato que Francisco fez da sua própria vida aos sacerdotes de Roma, aqui está a terceira e última série de “passagens”, novamente ascendente, que começa com “o telefonema do núncio” que – diz ele – “me coloca em outro caminho”, o do episcopado.
Nós estamos na primavera de 1992, e o núncio do Vaticano na Argentina na época, Ubaldo Calabresi, telefonou-lhe para comunicar que seria consagrado bispo a pedido do então arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Antonio Quarracino, que o queria como auxiliar.
A sequência é uma ascensão que ninguém é capaz de parar: é elevado a bispo auxiliar com direito a sucessão, a arcebispo de Buenos Aires, a cardeal...
“E então veio a última passagem, a partir de 2013. Não me dei conta do que estava acontecendo ali: continuei como bispo, dizendo: ‘Você deve se importar, pois foi você que me colocou ali”.
A reviravolta milagrosa que, em 1992, o tirou do exílio no qual ele foi confinado pelos irmãos da Companhia de Jesus, “foi preparada pelo Senhor” – teve que enfatizar – justamente nesse período “sombrio, nada fácil”.
Mas esse período não resolveu suas preocupações psicológicas, como comprovam duas de suas “confissões” tornadas públicas como Papa, uma logo no começo do seu pontificado, e a outra há algumas semanas.
A primeira, ele a fez aos alunos das escolas administradas pelos jesuítas em 7 de junho de 2013 sobre a sua decisão de morar em Santa Marta, em vez do Palácio Apostólico:
“Para mim, é um problema de personalidade: é isso. Tenho a necessidade de viver entre as pessoas, e se eu vivesse sozinho, talvez um pouco isolado, não me faria bem. Esta pergunta foi feita por um professor: ‘Mas por quê? Você não vai morar lá?’ Eu respondi: ‘Ei, professor: por razões psiquiátricas’. É a minha personalidade; não posso viver sozinho, entende?”
A segunda confissão ele a fez no dia 16 de janeiro passado aos irmãos jesuítas do Chile, na conversa a portas fechadas, depois transcrita e publicada com o seu consentimento na La Civiltà Cattolica em 17 de fevereiro e ela diz respeito aos motivos que o levam a não querer ler o que escrevem os seus detratores.
A razão – diz ele – é preservar a minha própria “saúde mental”, ou seja, a minha própria “higiene mental”, fórmulas que ele martelou três vezes em apenas um minuto de conversa e que supõem um julgamento claro da “insanidade” daqueles que o criticam, sem espaço para um debate racional:
“Devido à minha saúde mental, não leio os sítios de internet desta chamada ‘resistência’. Sei quem são, conheço os grupos, mas não os leio, simplesmente por questão de saúde mental. Se há algo muito sério, eles me informam, para que eu saiba. Vocês os conhecem... É uma pena, mas acho que temos que seguir em frente. Os historiadores dizem que para que um concílio se enraíze, leva um século. Estamos na metade do caminho.”
“Às vezes você se pergunta: mas esse homem, essa mulher, leu o Concílio? E há pessoas que não leram o Concílio. E se o leu, não o entendeu. Cinquenta anos depois! Nós estudamos filosofia antes do Concílio, mas tivemos a vantagem de estudar teologia depois. Vivemos a mudança de perspectiva, e já existiam os documentos conciliares.”
“Quando percebo resistências, procuro dialogar, quando o diálogo é possível. Mas algumas resistências provêm de pessoas que acreditam que têm a verdadeira doutrina e acusam você de ser herege. Quando nessas pessoas, pelo que dizem ou escrevem, não encontro bondade espiritual, eu simplesmente rezo por elas. Sinto pena, mas não me detenho neste sentimento por saúde mental.”
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Como Bergoglio reescreve sua própria vida. Os anos da “grande desolação” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU