''A confusão na Igreja é provocada por aqueles que multiplicam a dissidência.'' Entrevista com Massimo Borghesi

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08 Janeiro 2018

A confusão na Igreja existe. Mas “quem a provoca certamente não é o papa, mas sim aqueles que, para se oporem a ele, não hesitam em multiplicar as vozes da dissidência”. A afirmação é do filósofo Massimo Borghesi, autor do primeiro estudo científico sobre o pensamento de Francesco, Jorge Mario Bergoglio. Una biografia intellettuale [Francisco, Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual] (publicado pela Jaka Book), que, nesta entrevista com o Vatican Insider, comenta as novas críticas ao pensamento teológico de Joseph Ratzinger, o documento escrito pelos três bispos cazaques sobre a Amoris laetitia e a matriz neoescolástica do tradicionalismo que acusa de modernismo o Concílio Vaticano II e os papas que se sucederam desde então.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 06-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

O novo livro de Enrico Maria Radaelli, resenhado por Antonio Livi, com a sua crítica a Ratzinger – identificado como um dos responsáveis pela teologia “neomodernista” com desvios “heréticos” – demonstra que muitos opositores do atual pontífice, na realidade, são muito críticos aos seus antecessores e, em última análise, ao Concílio Vaticano II. O que o senhor pensa a respeito?

Esse é o mérito do volume de Enrico Maria Radaelli, Al cuore di Ratzinger. Al cuore del mondo [No coração de Ratzinger. No coração do mundo], publicado recentemente: ter esclarecido, de modo evidente, o horizonte teológico-filosófico que guia os opositores do Papa Francisco. Radaelli colaborou por três anos na cátedra de Filosofia do Conhecimento, dirigida por Dom Antonio Livi, da Pontifícia Universidade Lateranense, e é editor da opera omnia de Romano Amerio, cujo Iota unum, publicado em 1985, representa uma crítica radical ao Concílio Vaticano II.

O ponto é o Concílio, que é, para o tradicionalismo, o responsável pelos erros modernistas que teriam marcado a Igreja nos últimos 50 anos. Como escreve Roberto De Mattei, também ele crítico do Concílio e presidente da Fundação Lepanto: “A atual crise na Igreja não nasceu com o Papa Francisco e não se concentra em uma única pessoa, mas remonta ao Concílio Vaticano II e, mais atrás ainda, aos anos do modernismo. Hoje, uma grande parte do Colégio Cardinalício, do corpo episcopal e, em geral, do clero está infectada de modernismo”.

Nessa perspectiva, os ataques sistemáticos contra o papa atual se inserem em uma direção precisa: atacar o pontífice, malvisto por muitos pelo seu compromisso com os pobres, os migrantes etc., para levar a Igreja de volta à posição pré-conciliar. A crítica de Redaelli evidencia como a dialética entre seguidores de Bento e seguidores de Francisco é uma falsa dialética. Bento nunca foi “ratzingeriano”, nunca foi o conservador pintado pelos progressistas, solidários, nisso, com os tradicionalistas. A teologia de Ratzinger é a teologia do Concílio. Nisso, Redaelli está repleto de razão. Por outro lado, ele está absolutamente errado nas críticas, moduladas por uma escolástica fora do tempo, que, analisadas uma a uma, revelam uma profunda carência teológico-filosófica.

O ponto, repito, é o Concílio, e Francisco se torna hoje o bode expiatório da corrente anticonciliar. Dom Livi expressa bem isso em sua resenha de aprovação ao volume de Redaelli: “A realidade é que a teologia neomodernista, com o seu evidente desvio herético, assumiu gradualmente um papel hegemônico na Igreja (nos seminários, nas universidades pontifícias, nas comissões doutrinais das Conferências Episcopais, nos dicastérios da Santa Sé), e, a partir dessas posições de poder, influenciou as temáticas e a linguagem nas diversas expressões do magistério eclesiástico, e essa influência afetou (em graus diferentes, naturalmente), todos os documentos do Vaticano II e muitos ensinamentos dos papas do pós-Concílio. Os papas desse período foram todos condicionados, alguns por um lado, outros por outro, por essa hegemonia”.

Para Livi, nenhum papa se salva da onda modernista, nem Paulo VI, nem João Paulo II, nem Bento XVI. Para os tradicionalistas, toda a Igreja atual é “modernista”. Atacar Bergoglio é a estratégia para atacar o Vaticano II.

Nos seus escritos a partir do Concílio e sobre o Concílio, o então jovem teólogo Joseph Ratzinger inverte o esquema com o qual muitos se acostumaram a olhar para aquilo que aconteceu no Vaticano II: ele escreve que haviam se manifestado duas opções em confronto. Por um lado, “um pensamento que parte de toda a vastidão da Tradição cristã e, com base nela, tenta descrever a constante amplitude das possibilidades eclesiais”. Por outro lado, “um pensamento puramente sistemático, que admite apenas a presente forma jurídica da Igreja como critério das suas reflexões e, portanto, teme necessariamente que qualquer movimento fora dela seja cair no vazio”. O “conservadorismo” desta segunda opção, de acordo com Ratzinger, enraizava-se “na sua estranheza à história e, portanto, no fundo, em uma ‘carência” de Tradição, isto é, de abertura ao conjunto da história cristã”. O futuro Bento XVI falava, aqui, do debate sobre a colegialidade. Na sua opinião, essas considerações ajudam a ler também o debate atual, por exemplo, sobre a Amoris laetitia?

Os tradicionalistas pararam na neoescolástica, isto é, em uma interpretação particular do tomismo que, na vulgata católica, assumira um valor de dogma. Para eles, os “preambula fidei” são decisivos para ter acesso a uma fé cujo conteúdo se resolve em um dogma, ao qual a razão presta o seu “obséquio” de modo “indubitável”. A razão leva à incontestável eliminação da dúvida. Uma fé “indubitável” é uma fé plenamente “racional”. Estamos diante de um “racionalismo apologético”, resultante de um processo histórico que o neotomismo se recusava a analisar. Na reação geral ao tradicionalismo do século XIX, justamente de Bonald, Lamennais, Bonney, Bautain, que, por sua vez, reagia ao Iluminismo em nome de um fideísmo, o tomismo prolongava a lição do Vaticano I, que condenava muitas posições dos tradicionalistas, na direção de um racionalismo cristão sui generis. Reação a uma reação, racionalismo contra fideísmo, a neoscolástica era uma filosofia iluminada pela teologia sem poder reconhecer isso.

Essa situação “híbrida” causaria muitos problemas, a tal ponto que um pensador como Etienne Gilson teria que se esforçar muito para restaurar o justo equilíbrio entre fé e razão. Isso apenas para dizer que a noção de “tradição”, reivindicada pelos tradicionalistas de hoje é, paradoxalmente, uma noção “moderna”. Os tradicionalistas rejeitam o moderno e, ao mesmo tempo, têm uma concepção da razão tipicamente moderna.

Ratzinger perceberá isso por ocasião do seu estudo sobre São Boaventura, em 1954: a tradição cristã medieval não era a tradição moderna formulada pelos neotomistas. Para a neoescolástica, a Revelação se reduz à aceitação do dogma. A ideia da Revelação como agir de Deus no tempo, na história, como tensão dramática entre graça e liberdade humana, está totalmente ausente. A neoscolástica é desprovida de reflexão histórica, de uma teologia da história, assim como de uma filosofia da história. O resultado é um “positivismo” da Revelação acolhido passivamente a partir dos “preambula fidei”. Assim, pensava-se que se poderia preencher o fosso entre razão natural e Logos revelados.

O que o senhor pensa do longo documento, assinado pelos três bispos do Cazaquistão, que critica as aberturas da Amoris laetitia, acusando o documento, de fato, de ter liberado o divórcio?

Esse documento não acrescenta nada ao debate que acompanhou a publicação da Amoris laetitia. Os três bispos cazaques só quiseram reiterar o seu “não” ao documento papal. Para alguns deles, a dissidência era conhecida e não viraria notícia, se não fosse o pretexto de manter viva a reação contra o papa. Na realidade, depois que o cardeal Müller não se prestou ao jogo dos tradicionalistas, a letra dos cinco parece ser um fogo-fátuo.

Justamente a você o cardeal declarou, referindo-se ao volume de Rocco Buttiglione, Risposte amichevoli ai critici di Amoris laetitia [Respostas amigáveis aos críticos da Amoris laetitia], do qual você escreveu o prefácio: “Estou convencido de que ele [Buttiglione] dissipou as dúvidas dos cardeais e de muitos católicos que temiam que, na Amoris laetitia, tivesse se realizo uma alteração substancial da doutrina da fé, tanto sobre o modo válido e fecundo de receber a santa comunhão, quanto também sobre a indissolubilidade de um matrimônio validamente contraído entre batizados”.

Depois dessa declaração de Müller, que sentido tem continuar escrevendo cartas com as quais se chama o papa a respeitar a “tradição”? O cardeal Müller foi o prefeito da Doutrina da Fé, o guardião da ortodoxia reconhecido como tal também por aqueles que criticavam o papa. Agora, assim que ele declara que a Amoris laetitia não viola a tradição da Igreja, ele não é mais reconhecido por eles como alguém de autoridade. Esse é um jogo de baixo perfil que permite entender como a disputa atual está voltada, por parte dos opositores de Francisco, não a compreender as razões, mas à deslegitimação do adversário.

Roberto De Mattei declarou isso abertamente na entrevista que eu citei antes: “Há momentos na nossa vida e na história da Igreja em que somos obrigados a escolher entre dois campos, como defendeu Santo Agostinho, sem ambiguidades e compromissos. Sob esse aspecto, a recente publicação nos Acta da carta do Papa Francisco aos bispos de Buenos Aires  leva novamente as posições a dois polos frontalmente opostos. A linha daqueles cardeais, bispos e teólogos que consideram que é possível interpretar a Amoris Laetitia em continuidade com a Familiaris consortio, n. 84, e outros documentos do Magistério fica pulverizada. A Amoris laetitia é um documento que discrimina os campos: deve ser aceito ou rejeitado na íntegra. Não há uma terceira posição, e a inserção da carta do Papa Francisco aos bispos argentinos tem o mérito de deixar isso claro”.

O senhor concorda com aqueles que repetem que hoje há “confusão” na Igreja?

A confusão é evidente. Só que quem a provoca certamente não é o papa, mas sim aqueles que, para se oporem a eles, não hesitam em multiplicar as vozes da dissidência, os sinais de rendição, a desmobilização e o esvaziamento das igrejas. Como se os pontificados de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI tivessem sido passeios tranquilos, e as multidões tivessem transbordado as missas dominicais. O ano de 1989 também privou os conservadores da memória histórica. Aquilo que chama a atenção nos críticos do papa é a obstinação em trazer à tona os episódios “negativos”. Nos blogs, no Facebook, eles estão continuamente em busca do caso destoante. Tem-se a impressão de que eles não têm olhos para os testemunhos positivos que existem, inúmeros, no mundo. Também nisso, eles são “modernos”. Participam da cegueira da mídia, que tem olhos apenas para o negativo. Na realidade, eles precisam do negativo para “existirem”. Criticam Hegel, como fazem Redaelli e Livi, que acusam Ratzinger de ser hegeliano (sic!), e, ao mesmo tempo, são “dialéticos”. Para eles, pôr-se significa opor-se. Como em Hegel.

Dante dizia que o contrário de uma heresia não é a verdade, mas sim uma heresia de sinal oposto. Aqueles que criticam a Amoris laetitia, afirmando que o documento e as suas interpretações favorecem o subjetivismo e a ética da situação, não correm o risco de cair no extremo oposto, aquele objetivismo que faz tábula rasa do sujeito, das suas intenções, das circunstâncias atenuantes, das histórias pessoais?

O objetivismo é uma característica da neoescolástica, porque o neotomismo se constitui em oposição à subjetividade moderna. Na sua oposição, ele joga fora, junto com a água suja, também o bebê. Ele não entende que a dimensão do sujeito, da liberdade, está implícita na própria Revelação. Caso contrário, teríamos um Deus imperador do mundo, não o Deus na cruz. Para os tradicionalistas, ao contrário, toda ênfase do sujeito, da “experiência” da verdade, é subjetivismo e, portanto, modernismo.

As acusações contra a Amoris laetitia também são explicadas assim. Para os críticos, entre a norma inviolável da indissolubilidade do matrimônio e o caso particular, não há nada no meio. Toda declinação peculiar da norma a partir das condições concretas do sujeito é uma queda no relativismo, na ética da situação, no praxismo. Eles não têm a mínima ideia das nuances envolvidas na teologia moral e no direito canônico. Em todo lugar, eles temem o perigo do subjetivismo.

Os tradicionalistas desconfiam não apenas do liberalismo ético, mas também do político. A oposição ao Vaticano II é uma oposição “teológico-política” ao princípio da liberdade religiosa sancionado pelo Concílio. Como afirma De Mattei ainda: “Pode haver um ato do Magistério autêntico e solene, mas errôneo. Tal foi, por exemplo, na minha opinião, a declaração conciliar Dignitatis humanae, que, além do seu caráter pastoral, é, sem dúvida, um ato magisterial e, também certamente, contradiz, de maneira pelo menos indireta e implícita, a doutrina da Igreja sobre a liberdade religiosa”. De Mattei não se pergunta, aqui, se a tradição do Sílabus não contraria a tradição da Igreja dos primeiros quatro séculos, até Teodósio, firme na afirmação do princípio da liberdade religiosa reafirmado na Dignitatis humanae.

É o que eu esclareço no meu livro de 2013, Critica della teologia politica. Da Agostino a Peterson: la fine dell'era costantiniana [Crítica da teologia política. De Agostino a Peterson: o fim da era constantiniana]. Aqui também estamos diante da celebração de um rosto histórico da tradição que não faz as contas com todo o desenvolvimento da tradição da Igreja. Os tradicionalistas são antimodernos e iliberais, mas são contra o papa. Iliberais e protestantes: um paradoxo. Na realidade, são contra Pedro, porque, depois do Concílio, ele abandonou os vestígios do poder real.

Eles criticam a sua autoridade, porque ele não quer ter uma autoridade absoluta. Não gostam da simplicidade do pastor, adoram os mantos de arminho. Confundem a sacralidade com os ornamentos do poder, os enfeites, as molduras douradas. No fundo, sonham com o Sacro Império Romano, com cuja perda eles nunca se resignaram.

Há já muitos anos, o então cardeal Ratzinger fazia a pergunta sobre a efetiva validade dos matrimônios celebrados sem fé. Na origem de muitas discussões na atual temporada eclesial, parece haver, no fundo, a relação com a modernidade e a pergunta sobre a evangelização: como se anuncia o Evangelho hoje, em contextos cada vez mais “líquidos”, descristianizados e secularizados?

O cardeal Müller, na entrevista com você, também lembrou a reflexão de Ratzinger: “Diante da instrução muitas vezes insuficiente na doutrina católica e em um ambiente secularizado em que o matrimônio cristão não é um exemplo de vida convincente, coloca-se o problema da validade também de matrimônios celebrados de acordo com o rito canônico. Existe um direito natural de contrair um matrimônio com uma pessoa do sexo oposto. Isso também vale para os católicos que se afastaram da fé ou mantiveram apenas um vínculo superficial com a Igreja. Como considerar a situação daqueles católicos que não apreciam a sacramentalidade do matrimônio cristão ou até mesmo a negam? Sobre isso, o cardeal Ratzinger queria que se refletisse, sem ter uma solução bela e pronta (...) É possível que o penitente esteja convencido em consciência, e com boas razões, da invalidade do primeiro matrimônio, embora não podendo oferecer a prova canônica disso. Nesse caso, o matrimônio válido diante de Deus seria o segundo, e o pastor poderia conceder o sacramento, certamente com as precauções apropriadas para não escandalizar a comunidade dos fiéis e não enfraquecer a convicção na indissolubilidade do matrimônio”.

As palavras do cardeal são claras. Sob esse perfil, a Amoris laetitia constitui um efetivo aprofundamento da posição da Igreja sobre o matrimônio. Ela faz isso tendo em mente a inviolabilidade da norma que não é atenuada e, ao mesmo tempo, as efetivas condições históricas em que a mensagem cristã aterrissa hoje.

A perspectiva da exortação apostólica é a missionária, de um cristianismo que, apesar dos sinais cristãos provenientes da história, se desenvolve em um mundo, em grande parte, neopagão. Esse é o ponto em que a posição do papa diverge da dos tradicionalistas. Para o papa é o horizonte missionário, ditado pelo anúncio e pelo encontro de testemunhas marcadas pela misericórdia de Deus, que deve guiar a presença do cristão no mundo de hoje.

Para os tradicionalistas, ao contrário, é a reafirmação nu do dogma, na sua pureza diamantina, que deve orientar uma presença militante, que vê no mundo de hoje somente o adversário de uma luta que não terá fim. O testemunho não é compaixão, misericórdia, firmeza ideal. Não, é combate, contraste dialético entre identidades irreconciliáveis, estranhas, inimigas. Na sua crítica à noção de “diálogo” dos progressistas, os tradicionalistas se tornaram, sem se darem conta, maniqueus; no ódio ao irenismo do pacifismo, parecem ser arautos da guerra.

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