''Estar nas encruzilhadas da história.'' As conversas do Papa Francisco com os jesuítas de Myanmar e Bangladesh

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17 Dezembro 2017

De 26 de novembro a 2 de dezembro, o Papa Francisco fez a sua 21ª viagem apostólica fora da Itália, dirigindo-se para Myanmar e Bangladesh. Na quarta-feira, 29 de novembro, logo após o encontro com os bispos de Myanmar, Francisco saiu da pequena sala que hospedou o encontro. Encontrou-se com 300 seminaristas esperando por ele para uma foto. Ele também cumprimentou um pequeno grupo de chineses, que mostravam com orgulho a bandeira da República Popular, e que lhe pediam: “Venha logo ao nosso país!”.

O comentário é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da La Civiltà Cattolica, em artigo publicado na edição de 16-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Depois de um trecho a pé, entre festa e saudações, o papa entrou na capela do piso térreo do arcebispado, onde se encontrou com 31 jesuítas que realizam a sua missão no país. Destes, 13 eram de Myanmar (três padres, cinco noviços e cinco escolásticos). Os outros eram originários da Tailândia, Malásia, Vietnã, Índia, Indonésia, Austrália e China. Outros 21 jesuítas originários de Myanmar não estavam presentes, por estarem envolvidos nos estudos na Indonésia, Sri Lanka e Filipinas.

Os jesuítas provinham de todas as instituições da Companhia de Jesus no país: as obras educativas, que são abertas a todos, independentemente do “background” étnico ou religioso; uma paróquia em uma diocese de fronteira, que atende o povo kachin e shan; uma escola em uma favela de Yangon, onde os jesuítas ajudam também os pobres a reconstruírem as suas casas e têm um pequeno serviço de microcrédito; o Serviço Jesuíta aos Refugiados, que trabalha principalmente com as centenas de milhares de pessoas deslocadas dentro dos Estados de Kachin e Kaya, e na fronteira com a Tailândia e a China.

Ao entrar, Francisco foi acolhido por um aplauso. Cumprimentou a todos, um por um. Embora a sala fosse, como é típico de uma capela, estreita e longa, o clima era o de um abraço espontâneo para além das fileiras. Os rostos dos jesuítas davam a entender a sua grande diversidade de proveniência. Um estudante fez com que ele vestisse um xale típico da etnia chin.

Francisco se sentou e disse que precisava de um tradutor para o inglês, apresentando Dom Mark Miles. E brincou dizendo: “Ele é um homem bom e não vai contar nada dos segredos jesuíticos sobre os quais falaremos aqui”. E logo sentiu o dever de agradecer aos presentes.

Abaixo, eu relato a transcrição das duas conversas a que assisti, e cuja publicação foi aprovada pelo Santo Padre, acrescentando algumas notas de contexto e uma consideração final.

Antonio Spadaro S.I.

* * *


Papa Francisco com os jesuítas em Myanmar (Foto: Antonio Spadaro | Reprodução do Twitter)

"Obrigado por terem vindo. Vejo muitos rostos jovens, e isso me agrada. É uma coisa boa, porque é uma promessa. Os jovens têm futuro se tiverem raízes. Se não têm raízes, vão aonde o vento sopra. Para começar, gostaria de fazer uma pergunta. Cada um a faça no seu exame de consciência: onde estão as minhas raízes? Tenho raízes? As minhas raízes são tenazes ou são fracas? É uma pergunta que nos fará bem. Santo Inácio começava os Exercícios Espirituais falando de uma raiz: 'O homem é criado para louvar...'. E concluía com outra raiz: a do amor. E propunha uma contemplação para crescer no amor. Não há verdadeiro amor se não lançar raízes. Eis: esta é a minha pregação inicial! Mas agora gostaria que vocês fizessem algumas perguntas."

Obrigado, Santo Padre, por estar conosco. Todos nós vivemos em Myanmar, e o senhor está compreendendo a situação do nosso país. Todos temos a mesma espiritualidade, a dos “Exercícios Espirituais”. Essa espiritualidade nos faz contemplar a encarnação. E é essa contemplação que nos leva para frente, que nos move à missão. Contemplando a situação real do Myanmar, o que o senhor espera de nós?

Eu acredito que não se pode pensar em uma missão – digo isso não apenas como jesuíta, mas como cristão – sem o mistério da Encarnação. É o mistério da Encarnação que ilumina toda a nossa aproximação à realidade e ao mundo, toda a nossa proximidade com as pessoas, com a cultura. A proximidade cristã é sempre encarnada. É uma proximidade como a do Verbo: condescendente. Lembro-lhes da synkatabasis, a condescendência... O jesuíta é aquele que deve sempre se aproximar, assim como o Verbo feito carne se aproximou. Olhar, escutar sem preconceitos, mas com mística. Olhar sem medo e olhar misticamente: isso é fundamental para o nosso modo de olhar a realidade.

E, a partir desse olhar, nasce a inculturação. A inculturação não é uma moda, não. É a própria essência do Verbo que veio na carne, que assumiu a nossa cultura, a nossa língua, a nossa carne, a nossa vida e morreu. A inculturação é encarregar-me da cultura do povo ao qual sou enviado.

E, por isso, a oração do jesuíta – refiro-me principalmente em relação à inculturação – é a oração de intercessão. É necessário rezar ao Senhor precisamente por aquelas realidades nas quais estou imerso.

Na Companhia, houve muitos insucessos na vida de oração. No início, alguns jesuítas deram dor de cabeça a Santo Inácio, porque queriam que o jesuíta ficasse fechado e dedicasse duas ou três horas à oração... E Santo Inácio dizia: “Não: contemplem na ação!”. E eu também vivi isso, em 1974. Houve – como vocês sabem – um movimento dos chamados “jesuítas descalços”, que queriam uma observação rígida, quase claustral, das regras. Uma reforma ao contrário, portanto, e contra o espírito de Santo Inácio. A verdadeira oração e a verdadeira observância jesuítica não vão por esse caminho. Não é uma observância restauracionista. A nossa observância olhar sempre para a frente com a inspiração do passado, mas olhar sempre para a frente. Os desafios não estão atrás, estão à frente.

Nisso, o bem-aventurado Papa Paulo VI ajudou muito a Companhia, e, no dia 3 de dezembro de 1974, dirigiu-nos um discurso que continua plenamente atual. Eu recomendo que vocês o leiam. É um documento atual. Ele diz, por exemplo, esta frase: “Por toda a parte, nas encruzilhadas da história, estão os jesuítas”. Paulo VI disse isso! Ele não diz: “Fiquem fechados em um convento”, mas diz aos jesuítas: “Vão para as encruzilhadas”. E, para ir às encruzilhadas da história, meus caros, é preciso rezar! É preciso ser homens de oração ao habitar as encruzilhadas da história!

Quero fazer uma reflexão sobre a nossa gente. Alguns, para ver o senhor, caminharam três dias, outros guardaram dinheiro por seis meses. Eu posso testemunhar que ficaram felizes ao vê-lo. Obrigado! A minha pergunta é esta: muitos meios de comunicação disseram que a sua visita a Myanmar é uma das mais difíceis e repleta de desafios. É realmente isso?

Você disse duas coisas. Primeiro, falou do Povo de Deus. Quando soube que essas pessoas haviam viajado e caminhado muito, que, para virem, tinham economizado dinheiro, confesso-lhes que senti uma grande vergonha. O Povo de Deus nos ensina virtudes heroicas. E eu senti vergonha por ser pastor de um povo que me supera em virtudes, em sede de Deus, em sentido de pertença à Igreja, porque vinham ver Pedro. Eu senti vergonha, e agradeço a Deus por me ter feito senti-la. Aliás, digo-lhes que, se há uma graça que o jesuíta deve pedir, é a de uma grande vergonha. Santo Inácio faz com que a peçamos na Primeira Semana dos Exercícios Espirituais diante de Cristo crucificado. Peçam a graça da vergonha, para vocês e para mim. É uma graça!

Chegamos à sua segunda pergunta. Esta é uma viagem muito difícil, sim. Talvez ela também correu o risco de ser cancelada em certo ponto. Portanto, é uma viagem difícil. Mas, justamente por ser difícil, eu devia fazê-la! De fato, lemos no Ofício das Leituras, há pouco tempo, o que diz o profeta Ezequiel dos pastores que se aproveitam do seu povo, que vivem às custas do seu povo. Vivem para sugar o leite, são pastores que tomam o leite das ovelhas e tosam a sua lã. São dois símbolos. O alimento está para a riqueza, e a lã, para a vaidade. Um pastor que se acostuma com as riquezas e a vaidade acaba, como diz Santo Inácio, em uma grande soberba. Por isso, Santo Agostinho retoma esse tema do profeta Ezequiel em um famoso tratado – De pastoribus – mostrando que, se o mau pastor se apega à riqueza, se apega à vaidade, acaba se tornando soberbo. Portanto, aquilo que faz o bom pastor estar bem é a pobreza. Santo Inácio chamava a pobreza assim: a mãe e o muro da vida religiosa. O Povo de Deus é povo pobre, povo humilde, um povo que tem sede de Deus. Nós, pastores, devemos aprender com o povo. Por isso, se esta viagem parecia difícil, eu vim porque nós devemos estar nas encruzilhadas da história.

Quando soubemos da sua visita, começamos a sentir e a pensar que nós estamos nas encruzilhadas, como o senhor acabou de dizer. A sua visita, para nós, é um impulso nesse sentido. A questão é que, muitas vezes, o senhor diz que é preciso ter o cheiro das ovelhas. Nós, aqui, viemos de lugares diferentes do país, onde sentimos esse cheiro como padres. Alguns de nós sentem o cheiro dos refugiados. Como podemos sentir e pensar com a Igreja, como Santo Ignácio nos pede, percebendo esse cheiro tão intenso que vem do Povo de Deus? Como sentir a presença do papa?

Há pouco tempo, aos bispos, eu falei de dois cheiros: cheiro de ovelhas e cheiro de Deus. Nós devemos conhecer o cheiro de ovelha, para entender, compreender e acompanhar, e as ovelhas devem perceber que emanamos cheiro de Deus. E esse é o testemunho. Hoje, a missionariedade, graças a Deus, não passa pelo proselitismo. O Papa Bento XVI disse isso claramente: a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração, por testemunho. Como vocês podem sentir a presença do papa, vocês que trabalham lá? Como os refugiados podem senti-la? Responder não é fácil. Eu visitei, até agora, quatro campos de refugiados. Três enormes: Lampedusa, Lesbos e Bolonha, que se encontra no norte da Itália. E lá o trabalho é de proximidade. Às vezes, não se distingue bem entre um lugar do qual se espera sair e uma prisão com outro nome. E, às vezes, os campos são verdadeiros campos de concentração, prisões.

Na Itália, vive-se muito intensamente essa realidade dos refugiados que vêm da África, porque estão lá na frente, e acontecem verdadeiras tragédias. Uma pessoa refugiada com quem eu falei me disse que levou três anos para chegar da sua casa a Lampedusa. E, naqueles três anos, foi vendida cinco vezes. Sobre o tráfico das jovens que são enganadas e vendidas aos traficantes de prostitutas em Roma, um velho sacerdote me dizia ironicamente que não tinha certeza se, em Roma, havia mais sacerdotes ou mais jovens mulheres escravizadas na prostituição. E são meninas sequestradas, enganadas, levadas de um lugar a outro. A Igreja diocesana de Roma trabalha muito nisso. É um trabalho de libertação.

Depois, pensemos na exploração das crianças com o trabalho infantil. Pensemos nas crianças que esqueceram a brincadeira e devem trabalhar. Eis a nossa “Terceira Semana” dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio: vê-los é ver Cristo sofredor e crucificado. Como eu me aproximo de tudo isso? Sim, eu tento visitar, falo claramente, especialmente com os países que fecham as suas fronteiras. Infelizmente, na Europa, há países que escolheram fechar as fronteiras. O mais doloroso é que, para tomar essa decisão, eles tiveram que fechar o coração. E o nosso trabalho missionário deve chegar também àqueles corações que estão fechados à acolhida dos outros.

Não sei o que mais dizer sobre esse tema, senão que é um tema grave. Hoje à noite vamos jantar. Muitos desses refugiados têm como janta um pedacinho de pão. Talvez nós vamos pegar uma sobremesa. Isso me traz à mente uma imagem de Lesbos. Eu estive lá com o Patriarca Bartolomeu e o arcebispo ortodoxo de Atenas, Jerônimo. Lá, estavam todos sentados em fileiras, muito ordenados – havia muitos milhares –, e eu estava caminhando na frente. Atrás de mim vinha o Patriarca Bartolomeu e, depois dele, o arcebispo Jerônimo. Eu estava cumprimentando e, em certo momento, dei-me conta de que as crianças me davam a mão, mas olhavam para trás. Eu me perguntei: “O que está acontecendo?”. Eu me virei e vi que o Patriarca Bartolomeu tinha os bolsos cheios de balas e as dava às crianças. Com uma mão, me cumprimentavam e, com a outra, pegavam a bala. Pensei que, talvez, era o único doce que comiam há muitos dias.

E há outra imagem de Lesbos que me ajudou muito a chorar diante de Deus: um homem de cerca de 30 anos com três filhinhos me disse: “Sou muçulmano. Minha esposa era cristã. Nos amávamos muito. Um dia, os terroristas entraram. Viram a cruz dela. Disseram-lhe para tirá-la. Ela disse que não e foi degolada na minha frente. Continuo amando a minha esposa e os meus filhos”.

Essas coisas devem ser vistas e devem ser contadas. Essas coisas não chegam aos salões das nossas grandes cidades. Temos a obrigação de denunciar e de tornar públicas essas tragédias humanas que se tentam silenciar.

Muitos jesuítas estão aqui em formação e, como formadores, tentamos entender melhor qual é, hoje, a figura do jesuíta. O senhor é um bom jesuíta, comprometido com a missão que lhe foi confiada. Como tal, o que pode nos dizer? Qual são os seus conselhos aos jovens jesuítas de Myanmar para se tornarem um bom jesuíta?

Melhor que não os ensinem a serem como eu! [e aqui explode rindo]. Vou dizer duas coisas. Entre os meus formadores, havia um jesuíta idoso, um jesuíta que tinha estado nas fronteiras existenciais. Era um grande jesuíta cientista e, uma vez, ele me deu um conselho: se você quer perseverar na Companhia, pense claro e fale obscuro. Era um grande cientista, mas era um mau formador. Entenderam? [e aqui ri junto com os jesuítas presentes].

A segunda coisa que eu quero mencionar diz respeito a outro homem: e quero mencioná-lo aqui em Myanmar, porque eu acredito que ele nunca imaginaria que o seu nome seria pronunciado por estes lados. Trata-se de um jesuíta argentino e se chamava Miguel Angel Fiorito. Ele fez uma edição crítica das “Memórias Espirituais” de São Pedro Fabro, mas era um filósofo e fizera a tese sobre o desejo natural do homem de encontrar Deus de acordo com São Tomás. Era um professor de filosofia, reitor da Faculdade, mas amava a espiritualidade. E ensinava a nós, estudantes, a espiritualidade de Santo Inácio. Foi ele quem nos ensinou o caminho do discernimento.

Você, que é um formador, se encontrar um jesuíta que está em formação, mas não sabe discernir, que não aprendeu o discernimento e que oferece poucas esperanças de que o aprenderá, embora seja um rapaz excelente, diga-lhe para buscar outro caminho. O jesuíta deve ser mestre de discernimento, para si e para os outros. Santo Inácio não nos pediu para fazer dois exames de consciência por dia para tirarmos os nossos piolhos ou pulgas. Não: ele fez isso para que víssemos o que acontece no nosso coração. Para mim, o critério vocacional para a Companhia é este: o candidato sabe discernir? Aprenderá a discernir? Se sabe discernir, sabe reconhecer o que vem de Deus e o que vem do mau espírito, então isso lhe basta para seguir em frente. Mesmo que não entenda muito, mesmo que vá mal nos exames... Tudo bem, contanto que saiba fazer discernimento espiritual. Pensem em São Pedro Claver. Ele sabia discernir e sabia que Deus queria a sua vida entre os escravos negros, sobre os quais alguns estimados teólogos discutiam se tinham ou não a alma.

A minha formação durou 14 anos desde o noviciado até a ordenação sacerdotal. Ao longo desse caminho, outros companheiros de formação abandonaram. Nós, sacerdotes jesuítas locais, somos apenas três agora. Quais são as suas palavras de encorajamento para aqueles que estão em formação?

Uma das coisas que o Senhor respeita é a liberdade. Incluindo a liberdade de se afastar dele, a liberdade de pecar. Ele está em silêncio e sofre. Está calado. Chega a esse extremo. Desse extremo até aqui, há muitas situações que não são pecado, mas são situações históricas que fazem com que a pessoa desanime ou fazem com que ela entenda que aquele não era o seu caminho... O abandono de um religioso, o abandono de um sacerdote é um mistério. E devemos respeitá-lo, ajudá-lo, se pedir ajuda, permanecer disponíveis e rezar por ele. De fato, o Senhor o espera no momento mais oportuno. E nunca devemos nos desesperar, porque o Senhor é bom e até, eu diria, perdoem-me a palavra, “esperto”.

Sobre a esperteza de Deus, eu desejo acrescentar uma coisa: quero lhes falar de uma obra de arte que me toca. Trata-se de um capitel que está na igreja de Santa Maria Madalena em Vézelay, no centro da França, onde começa o Caminho de Santiago. De um lado do capitel, está Judas enforcado, com a língua de fora, os olhos abertos, morto. E, ao lado dele, o diabo pronto para levá-lo embora. Do outro lado do capitel, está a figura do Bom Pastor, que o agarrou, colocou-o sobre as costas e levou-o embora. Esse escultor do século XIII era um artista, mas, no seu coração, era também um teólogo. Era um místico. E era audaz. Ele se permitiu dizer algo que nenhum de nós, nenhum teólogo, ousaria dizer a partir da cátedra: Deus é esperto. Deus é esperto. E é singular. Se olharmos bem para os lábios do Bom Pastor, vemos que há uma expressão de sorriso burlão, como se dissesse ao diabo: “Eu te fiz isso!”.

Isso me ensina muito. Esperar sempre... é a mesma frase que o Cura d’Ars disse à viúva daquele suicida, angustiada porque o marido tinha ido para o inferno: “Senhora, entre a ponte da qual o seu marido se jogou e o rio, está a misericórdia de Deus”. Nunca nos esqueçamos da palavra “misericórdia”.

Eu sou um jesuíta em formação como “mestre” e trabalho em uma favela. As pessoas são muito pobres, mas lá as pessoas querem se ajudar umas às outras. Uma garota me perguntou: como posso ajudar aqueles que precisam, se eu mesma preciso de ajuda? Tentei lhe dar uma resposta intelectual, mas não me convenceu. Então, alguém me aconselhou de fazer a questão ao Santo Padre.

As respostas intelectuais não servem. Eu não sou um anti-intelectual, que fique claro! É preciso estudar muito, mas a resposta intelectual e abstrata, neste caso, não serve. Diante de uma mãe que perdeu o filho, de um homem que perdeu a esposa, de uma criança, de um doente... você não pode falar. Apenas o olhar... o sorriso, apertar as mãos, o braço, fazer uma carícia... e talvez, naquele ponto, o Senhor te inspirará uma palavra. Mas não se ponha a dar explicações. E a pergunta que aquela garota lhe fez, era uma pergunta existencial: como eu, que não tenho nada, posso fazer para ajudar os outros? Aproxime-se! E pense em que essa pessoa pode te ajudar. Aproxime-se. Acompanhe. Fique perto. E o Espírito Santo – não esqueçamos que o temos dentro – vai inspirar o que você pode fazer, o que pode dizer. Porque dizer é a última coisa. Primeiro fazer. Ficar em silêncio, acompanhar, estar perto. Proximidade, vizinhança. É o mistério do Verbo que se fez carne. Proximidade. A palavra que talvez você pode dizer à garota é: “Aproxime-se”. Ela precisa de proximidade. E você também precisa de proximidade. E de deixar que Deus faça o resto.

Santo Padre, eu me pergunto por que o senhor sempre encontra tempo para visitar os jesuítas durante as suas viagens. E outra pergunta: quais são as três coisas importantes que um jesuíta pode fazer pelas pessoas deste país, pela Igreja de Myanmar?

A razão pela qual eu sempre encontro os jesuítas é a de não me esquecer que sou missionário e que devo converter os pecadores! [o papa, assim, provoca uma risada geral]. Sobre a pergunta: eu gosto que você usou a palavra “Igreja”. Inácio trazia muito no coração o sentir com a Igreja, sentir na Igreja. E isso também requer discernimento. Mas é preciso estar perto da hierarquia. E, se não concordo com aquilo que o bispo diz, devo ter a parrésia de ir falar com ele com coragem e dialogar. E, no fim, obedecer. Recorde-se de Santo Inácio, quando foi eleito o Papa Gian Pietro Carafa, Paulo IV. Quando lhe perguntaram o que aconteceria se o papa dissolvesse a Companhia, acredito que Santo Inácio respondeu que, com um pouco de oração, ajeitaria tudo. E ficaria em paz. Mas não se pode pensar na Companhia de Jesus como uma Igreja paralela ou uma sub-Igreja. Todos pertencemos à Igreja santa e pecadora. Pertence-se à Igreja na alegria e na tristeza. Temos exemplos de grandes jesuítas que se sentiram crucificados pela Igreja do seu tempo e mantiveram a boca fechada. Pensemos no cardeal De Lubac, para nomear um. E em tantos outros. Eu diria: ser homens da Igreja. Quando a Companhia se mete na órbita da autossuficiência, deixa de ser a Companhia de Jesus.

Um grave problema aqui é o fundamentalismo. Eu venho de uma região onde há muitas tensões com os muçulmanos. Eu me pergunto como é possível cuidar das pessoas que têm essa tendência ao fundamentalismo. O que o senhor sente sobre isso, visitando o nosso país?

Veja, fundamentalismos existem por toda a parte. E nós, católicos, temos “a honra” de ter fundamentalistas entre os batizados. Acho que seria interessante se alguns de vocês que estão se preparando para a formatura estudassem as raízes do fundamentalismo. É uma atitude da alma que se ergue a juiz dos outros e de quem compartilha a sua religião. É um ir ao essencial – pretender ir ao essencial – da religião, mas a tal ponto de se esquecer do que é existencial. Esquecem-se as consequências. As atitudes fundamentalistas assumem diversas formas, mas têm o fundo comum de sublinhar muito o essencial, negando o existencial. O fundamentalista nega a história, nega a pessoa. E o fundamentalismo cristão nega a Encarnação.

* * *

O encontro encerra em um clima de festa com a oração “Salve Rainha” e, depois, com saudações pessoais e fotografias.

* * *


Papa Francisco com os jesuítas em Bangladesh (Foto: Antonio Spadaro | Reprodução do Twitter)

No dia 1º de dezembro à tarde, o papa, durante a sua visita a Bangladesh, participou de um encontro ecumênico e inter-religioso pela paz, junto com quatro representantes religiosos (um muçulmano, um hindu, um budista e um católico) e um representante da sociedade civil. A oração final foi recitada por um bispo anglicano.

Depois, no palco do mesmo encontro, subiu um grupo de Rohingya, que o papa acolheu, escutando as suas histórias e pedindo a um deles que rezasse. No fim, transferiu-se para a Nunciatura Apostólica de Dhaka, onde estavam à espera dele em uma sala, sentados em círculo, 13 jesuítas que desempenham a sua missão no país.

O superior da missão expressou a alegria dos jesuítas pela presença do papa: “Somos um grupo de jesuítas que atuam em Bangladesh. Nove somos originários do país. Três vêm da Índia, e um da Bélgica. Deus nos abençoou, e nós trabalhamos aqui em Bangladesh em três dioceses. A missão conta com outros 14 escolásticos, três juniores e três noviços. Trabalhamos em uma casa de Exercícios e de formação, nos ministérios paroquiais, no apostolado educacional e no serviço aos refugiados. A primeira presença dos jesuítas nesta terra remonta ao fim do século XVI. Em 1600, foi construída uma igreja, mas, já no ano seguinte, ela foi destruída. Depois de fatos alternados, estamos novamente em Bangladesh desde 1994, quando fomos convidados pela Igreja local. Hoje, o senhor nos dá o privilégio de encontrá-lo. Nós todos nos sentimos orgulhosos de ser jesuítas e pedimos a sua bênção. Hoje, eu pensava em fazer um discurso, mas, depois, pensei que era melhor não fazê-lo: é muito melhor ter uma conversa aberta...”.

O papa respondeu à saudação, dizendo:

“As duas datas que você mencionou chamaram a minha atenção: 1600 e 1994. Portanto, durante séculos, os jesuítas viveram fatos alternados sem uma estabilidade de presença. E isso está bem: os jesuítas vivem também assim. O Pe. Hugo Rahner dizia que o jesuíta deve ser um homem capaz de se mover fazendo discernimento, seja no campo de Deus, seja no campo do diabo. Esses anos de vocês foram um pouco assim: um mover-se sem estabilidade e um seguir em frente à luz do discernimento.”

Santo Padre, obrigado por ter falado do povo Rohingya. São nossos irmãos e irmãs, e o senhor falou deles nestes termos: como irmãos e irmãs. O provincial enviou dois de nós para desenvolver um serviço de ajuda entre eles...

Jesus Cristo hoje se chama Rohingya. Você fala deles como irmãos e irmãs: eles o são. Penso em São Pedro Claver, que é muito caro para mim. Ele trabalhou com os escravos do seu tempo... e pensar que alguns teólogos da época – não muitos, graças a Deus – discutiam se eles tinham uma alma ou não! A vida dele foi uma profecia, e ele ajudou os seus irmãos e as suas irmãs que viviam em uma condição vergonhosa. Mas essa vergonha hoje não acabou. Hoje, discute-se muito sobre como salvar os bancos. O problema é a salvação dos bancos. Mas quem salva a dignidade de homens e mulheres hoje? As pessoas que vão à falência não interessam mais a ninguém. O diabo consegue agir assim no mundo de hoje. Se tivéssemos um pouco de senso de realidade, isso deveria nos escandalizar. O escândalo midiático hoje diz respeito aos bancos, e não às pessoas.

Diante de tudo isso, devemos pedir uma graça: a de chorar. O mundo perdeu o dom das lágrimas. Santo Inácio, que fazia essa experiência, pedia o dom das lágrimas. São Pedro Fabro também fazia isso. Uma vez, existia o formulário de uma missa justamente para pedir o dom das lágrimas. E a oração era: “Senhor, vós que fizeste brotar água da rocha, fazei brotar lágrimas do meu coração pecador”. A desfaçatez do nosso mundo é tamanha que a única solução é rezar e pedir a graça das lágrimas. Mas, nesta noite, diante daquela pobre gente que encontrei, eu senti vergonha! Senti vergonha por mim mesmo, pelo mundo inteiro! Desculpem, estou apenas tentando compartilhar com vocês os meus sentimentos...

Como a Companhia de Jesus pode responder hoje às necessidades de Bangladesh?

Sinceramente, não conheço bem as atividades da Companhia de Jesus em Bangladesh. Mas o fato de o provincial ter encarregado dois jesuítas de trabalhar nos campos de refugiados me faz entender que os jesuítas se mexem! E isso é próprio da nossa vocação, e está bem dito em uma mensagem da “Fórmula do Instituto” da Companhia: discurrir, isto é... seguir em frente, mover-se... andar por aí... provar os espíritos... Isso é bom e é próprio da nossa vocação.

Sentimo-nos abençoados pelo fato de o senhor ter vindo a Bangladesh, isto é, a uma nação onde existe uma comunidade cristã tão pequena. E o senhor criou cardeal o arcebispo da nossa capital. Por que essa atenção por nós?

Devo dizer que, também para mim, Bangladesh foi uma surpresa: há tanta riqueza! Nomeando os cardeais, tentei olhar para as pequenas Igrejas, aquelas que crescem na periferia. Não para dar consolação a essas Igrejas, mas para lançar uma mensagem clara: as pequenas Igrejas que crescem na periferia e que não têm antigas tradições católicas hoje devem falar à Igreja universal, a toda a Igreja. Sinto claramente que elas têm algo para nos ensinar.

Como o senhor se sente hoje, depois de ter celebrado a missa com os católicos? Conseguiu cumprimentar as crianças, como sempre faz?

Sim. Cumprimentei algumas delas. E esta noite cumprimentei as duas meninas Rohingya. As crianças me dão ternura. A ternura faz bem neste mundo tantas vezes cruel: precisamos dela. Quero acrescentar uma coisa a esse respeito: Santo Inácio era místico. A sua verdadeira figura foi redescoberta recentemente. Tinha uma imagem rígida dele. Mas ele era uma mãe com os doentes! Ele era capaz de uma profunda ternura, que ele manifestou em muitas ocasiões. Foi o Pe. Arrupe que, como geral da Companhia, nos repetiu essas coisas e nos mostrou a profunda alma de Inácio. Ele fundou o Centro Inaciano de Espiritualidade e a revista Christus para aprofundar, de maneira renovada, a nossa espiritualidade. Para mim, é uma figura profética. A sua pergunta me faz pensar em como é importante ter um coração capaz de ternura e de compaixão por quem é fraco, ou pobre, ou pequeno.

E lembrem-se de que foi o Pe. Arrupe que fundou o Serviço dos Jesuítas para os Refugiados. Em Bangkok, antes de tomar o avião no qual teria um derrame, ele disse: “Rezem, rezem, rezem”. Esse era o sentido do discurso que ele dirigiu lá aos jesuítas que estão trabalhando com os refugiados: não negligenciar a oração. Esse foi o seu “canto do cisne”. Foi justamente essa a herança última que ele deixou para a Companhia. Entenderam? A sociologia é importante, sim, mas importa mais, muito mais, a oração.

* * *

O pensamento logo foi ao fato de que, pouco antes, no seu encontro com os Rohingya, o papa sentira a necessidade não de concluir com um discurso sociológico, mas de pedir a um deles que elevasse uma oração e de rezar juntos. O papa, nesse ponto, perguntou se havia mais perguntas, mas um deles respondeu: “Não. A sua presença aqui entre nós é mais do que muitas respostas!”. O encontro concluiu com a bênção de rosários e algumas fotos de grupo.

Ao meditar as palavras usadas pelo pontífice nessas conversas, é sempre necessário lembrar aquilo que ele mesmo escreveu no prefácio de um livro que contém, entre outras coisas, as suas conversas anteriores com os jesuítas durante as viagens: “Devo dizer que eu sinto esses momentos muito livres, especialmente quando ocorrem durante as viagens: trata-se da oportunidade para fazer as minhas primeiras reflexões sobre essa viagem. Sinto-me em família e falo a nossa linguagem de família, e não temo mal-entendidos. Por isso, o que eu digo, às vezes, pode ser um pouco arriscado”. E acrescentou: “Às vezes, aquilo que eu sinto que devo dizer, eu digo para mim mesmo, é importante também para mim. Nas conversas, nascem-me algumas coisas importantes sobre as quais eu reflito depois” (Papa Francisco, Adesso fate le vostre domande. Conversazioni sulla Chiesa e sul mondo di domani. Milão: Rizzoli, 2017, p. 8).

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