Congresso sobre ''Amoris laetitia'' foi dialógico, fundamentado na realidade e na colegialidade

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10 Outubro 2017

O congresso da semana passada sobre a Amoris laetitia, nos Estados Unidos, possibilitou muitas conversas fascinantes e destacou perspectivas diferentes mas congruentes sobre o documento. Hoje, gostaria de analisar o congresso e, especificamente, o que ele diz sobre o estilo do debate em torno da Amoris laetitia.

A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada no sítio National Catholic Reporter, 09-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

No início do segundo dia, eu estava do lado de fora da capela antes da missa com um dos organizadores do congresso, e ele me perguntou o que eu pensava sobre os procedimentos do primeiro dia. “Quem sabia que havia outros oito capítulos na Amoris laetitia?”, eu falei um pouco de brincadeira. O fato mais impressionante sobre o evento de dois dias, que testemunhou 18 palestras, foi o pouco tempo gasto em discutir o polêmico capítulo 8, que trata das situações conjugais irregulares e, especificamente, da questão de como a Igreja deve ministrar aos divorciados em segunda união.

Os capítulos 2, 4, 5 e 7 foram os mais citados. E muito mais atenção foi posta sobre como realizar a preparação ao matrimônio, como acompanhar os casais recém-casados e aqueles que começam uma família, como ajudar as famílias em crise, sejam essas crises morais ou socioeconômicas, em suma, muito mais atenção sobre toda a gama de questões que as famílias enfrentam, não apenas sobre a questão restrita de como ministrar aos divorciados em segunda união.

É estranho que aqueles que dizem se opor à Amoris laetitia passem tão pouco tempo falando sobre o capítulo 4, que apresenta uma meditação poderosa e bela sobre a espiritualidade e sobre o ensino da Igreja sobre a vida familiar cristã. Consequentemente, eles realmente não se concentram na questão-chave do fortalecimento das famílias. Se ao recitar a Familiaris consortio, a exortação apostólica de São João Paulo II de 1981 sobre a família, fosse suficiente, certamente a crise no matrimônio e na vida familiar teria diminuído. Mas não.

Os bispos e os teólogos reunidos no Boston College na semana passada abordaram essa crise de forma realista e especificamente através das lentes da nossa fé cristã. Eu suspeito que os críticos se surpreenderão quando lerem as atas, percebendo a que nível esse foi o foco das palestras e, com humildade, reconhecerem o nível ao qual a constante perseguição dos críticos sobre o capítulo 8 desviou a Igreja de um trabalho vitalmente importante.

A segunda coisa que se destacou para mim sobre o congresso foi o espírito dialógico do evento, dialógico tanto no sentido comum quanto etimológico da palavra: as pessoas falaram com as outras, não contra as outras, e as apresentações, assim como o próprio texto da Amoris laetitia, foram ricas em referências bíblicas.

Como disse o padre jesuíta James Keenan, um dos principais organizadores do congresso, não foi apenas uma experiência de colegialidade entre os bispos ou entre os teólogos, mas entre esses dois grupos juntos, e essa é uma experiência que se tornou muito pouco frequente na vida da Igreja nos Estados Unidos.

Na conclusão do Vaticano II, a Universidade de Notre Dame organizou uma série de conferências e discussões sobre os textos conciliares, analisados a partir de uma perspectiva inter-religiosa. Elas reuniram alguns dos principais bispos e teólogos do Concílio para discutir o evento em detalhes, explicar coisas que não eram óbvias e nuances que permitiam várias interpretações. O espírito dos encontros e o livro que se seguiu foram colaborativos.

Hoje, essa colaboração é mais difícil devido à polarização que afligiu a Igreja e à existência de uma certa simplificação do debate. As pessoas lançam slogans, não argumentos, umas contra as outras e confundem uma fluência em relação à última edição da revista First Things com competência teológica. Os teólogos ficaram desconfiados dos bispos e vice-versa.

Tudo isso foi varrido em Boston na semana passada. Nenhum prelado se posicionou de forma ostensiva nem invocou uma autoridade baseada unicamente no seu ofício. Os teólogos não murmuravam, eles se engajavam. As discussões foram frutíferas, principalmente porque entrelaçaram a reflexão teológica com a experiência real e vivida.

Essa prova de colaboração leva ao terceiro fato marcante do congresso sobre a Amoris laetitia, o modo como ele estava baseado na realidade. O cardeal Blase Cupich, outro organizador principal do evento, declarou no início do congresso: “Se olharmos para as Escrituras, vemos que Deus escolheu se revelar uma e outra vez nas famílias, começando pelo Gênesis. Então, a questão para nós, como ministros, não é apenas como podemos estar a serviço das pessoas e das famílias, mas também como Deus está se revelando nesse lugar privilegiado”.

Muitas das palestras se focaram em exemplos específicos extraídos de experiências familiares reais. No discurso de abertura, a professora Natalia Imperatori-Lee, do Manhattan College, afirmou que um dos temas-chave da Amoris laetitia, o acompanhamento, “ajuda a proteger contra a romantização do matrimônio e da vida familiar, que às vezes é evidente no ensino da Igreja”.

Outra forma pela qual as discussões estavam baseadas na realidade foi o emprego útil de dados das Ciências Sociais – outro tipo de diálogo. A irmã franciscana Katarina Schuth e os professores Julie Hanlon Rubio, Meghan Clark e Hosfman Ospino introduziram importantes informações das Ciências Sociais nos seus trabalhos. Por exemplo, Rubio, membro do conselho de diretores do National Catholic Reporter, observou:

“Os casais casados que pensam sobre o divórcio se beneficiarão ao colocar a visão da Amoris laetitia sobre o matrimônio ao lado dos dados das Ciências Sociais sobre o divórcio. Existem alguns dados que sugerem que as tentativas de tratar crises no matrimônio são inadequadas. Por exemplo, muitos conselheiros matrimoniais não têm formação extensiva em aconselhamento para casais, de modo que a ênfase pode se desviar para as necessidades de cada indivíduo. A maioria das paróquias católicas não têm capacidade para aconselhar ou apoiar casais em crise, e a maioria dos casais não buscam ajuda nas suas paróquias. Muitos casais não recebem o apoio que eles precisam de amigos e familiares. Concentrar-se apenas na misericórdia na Amoris laetitia pode resultar em uma ênfase muito restrita sobre se uma exceção às regras se aplica ou não.”

Isso aponta para algumas questões importantes, disse ela, a saber: “Observar a imagem mais completa permite questões mais profundas: quão grave é o sofrimento que estamos experimentando? Temos certeza de que o nosso sofrimento atual continuará? Temos capacidades para além da nossa imaginação? O crescimento é possível ou não? Quem sofrerá se nos separarmos? Mesmo que possamos nos divorciar, deveríamos fazer isso?”.

Houve um tempo em um passado não tão distante que as lideranças da Igreja olhavam com desconfiança para a introdução de dados das Ciências Sociais, e nenhum de nós – certamente muito menos as muitas famílias rompidas que receberam pouco ou nenhum apoio das suas paróquias – se beneficiou com a ignorância de tais dados.

A formação foi um quarto tema dominante do congresso. O Pe. Lou Cameli, da Arquidiocese de Chicago, disse na sua apresentação:

“Certamente, elementos de doutrina, moral, direito e prática pastoral estão presentes na Amoris laetitia, especialmente como pressupostos. Mas o todo – aquilo que os italianos chamariam de ‘insieme’, tudo isso em conjunto – nada mais é do que um novo impulso para a formação espiritual-moral e para a prática pastoral, como indica o título do nosso congresso. Em uma palavra, a Amoris laetitia é um documento de formação, e é isso que o torna notável e novo na tradição do ensino magisterial.”

“Essa novidade – continuou –, como eu espero ilustrar, tem as suas raízes no Concílio Vaticano II, com a preocupação do Concílio pela experiência humana e pela jornada do povo peregrino de Deus. A Amoris laetitia toma essas preocupações e situa o matrimônio e a vida familiar como foco central de conversão e transformação na vida cristã. Em certo sentido, esse movimento é uma consequência lógica da revolução espiritual iniciada por Santa Teresa de Lisieux e os seus fundamentos para a democratização da santidade, isto é, um acesso imediato e pleno à santidade para todas as pessoas nas circunstâncias comuns das suas vidas.”

Se os críticos da Amoris laetitia trouxessem a perspicácia intelectual e o conhecimento teológico que Cameli trouxe ao assunto, eles parariam de criticar e perceberiam que têm um trabalho profundo, difícil e reflexivo a fazer. A formação, tanto dos casais casados quanto do clero que os assiste, não é um trabalho fácil. Leva tempo. Mas quem pode negar que o tempo e o trabalho são essenciais para que a Igreja continue sendo uma expressão saudável do Evangelho?

O tema da formação sacerdotal foi abordado por várias apresentações e foi objeto de muita discussão, tanto nos períodos de discussão formal, quanto ao longo do almoço e das pausas para o café. O Mons. Philippe Bordeyne, reitor do Institut Catholique de Paris, compartilhou como os bispos franceses estão formando o seu clero e leigos para realizar a conversão pastoral pedida pela Amoris laetitia, e o arcebispo Charles Scicluna, de Malta, fez o mesmo pelo seu país. A formação da consciência e a formação de padres e leigos para ajudar os outros a formarem as suas consciências é um tema que exige muito, muito estudo.

A declaração mais marcante veio do cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. “A preparação ao matrimônio e o acompanhamento matrimonial não deveriam ser feitos pelos padres”, disse. “Eu creio firmemente nisso. Os padres não têm credibilidade. Eles nunca viveram na realidade da situação, e, portanto, é muito difícil para eles. Os leigos precisam ser formados e precisam fazer esse tipo de trabalho. São eles que podem acompanhar melhor os casais em momentos de dificuldade e de desafio.”

A sua sugestão de que as paróquias capacitem os leigos para acompanhar os casais casados foi ecoada pelo bispo Robert McElroy, que falou sobre a sua experiência ao convocar um sínodo para discutir a implementação da Amoris laetitia.

Fico feliz que a nossa Igreja esteja envolvida em um debate rigoroso sobre os problemas nevrálgicos do capítulo 8 da Amoris laetitia. É saudável e importante. Mas foi emocionante ver estudiosos e bispos se reunirem para examinar as implicações do documento como um todo e compartilhar as suas intuições sobre os desafios que a Igreja Católica enfrenta, enquanto buscar levar seus ensinamentos sobre o matrimônio e a família tanto para os seus membros, quanto para uma cultura em que quase não há uma família que não tenha sido ferida pelas ruínas de uma vida familiar rompida, sobre como conduzir uma pastoral que vá além de repetir o catecismo, sobre como formar casais e clérigos e os nossos próprios egos, para que as nossas famílias possam ser reconhecidas como o “lugar privilegiado” onde Deus se revela, do qual Cupich falou.

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