“Nenhuma guerra é justa”: a ruptura do Papa Francisco

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10 Setembro 2017

“Quantas divisões tem o Papa?”, teria perguntado Stalin em 1935, uma piada mítica e inevitável para quem se interessa pelo poder real do Vaticano... Entretanto, 80 anos depois, o Vaticano continua lá, ao passo que o sistema defendido por Stalin desapareceu de corpo e alma.

A reportagem é de Pierre Haski, publicada por Le Nouvel Observateur, 07-09-2017. A tradução é de André Langer.

A questão reaparece com o Papa Francisco, que sistematicamente toma posições “desconcertantes” em relação aos dogmas de sua Igreja, sem que sempre seja possível julgar o impacto real e duradouro.

Este é o caso com a nova tomada de posição do Papa, clara, categórica e inapelável, feita no livro-entrevista [Política e sociedade] com o sociólogo Dominique Wolton, publicado no dia 06 de setembro na França (Éditions de l’Observatoire): “Nenhuma guerra é justa”. Uma posição que o anima, sem dúvida, no momento em que faz uma longa visita à Colômbia, com o objetivo de apoiar e consolidar a paz com a guerrilha das FARC, a última guerra da América Latina que o Vaticano contribuiu para resolver.

A paz, “a única coisa justa”

A passos lentos, a Igreja, antes mesmo da chegada do papa atual, começou a esboçar a ruptura com a doutrina da “guerra justa” proposta por Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) no século V, desenvolvida por Tomás de Aquino (Santo Tomás de Aquino) no século XIII, e por outros pensadores católicos na sequência, a ponto de ser incluída no Catecismo da Igreja Católica.

Mas ninguém o tinha feito de maneira tão forte como o Papa Francisco nesse livro, Política e sociedade: “Hoje, nós devemos repensar o conceito de ‘guerra justa’. Nós aprendemos na filosofia política que, em caso de defesa, a guerra é justificada e, nesse caso, é possível considerá-la justa. Mas, podemos definir uma guerra como ‘justa’? Ou, antes, trata-se de uma ‘guerra de defesa’? A única coisa justa é a paz”.

Dominique Wolton pergunta: “Você quer dizer que não podemos utilizar o termo ‘guerra justa’, é isso?”

Resposta do Papa: “Eu não gosto de usar o termo ‘guerra justa’. Nós ouvimos dizer: ‘Eu faço a guerra porque não tenho outros meios para me defender’. Mas nenhuma guerra é justa. A única coisa justa é a paz.”

“Deslegitimar a guerra”

O debate está presente na Igreja. No mês passado, no clima de violência em torno dos acontecimentos de Charlottesville, nos Estados Unidos, uma grande conferência católica americana pediu ao Papa Francisco para escrever uma encíclica sobre a não violência. De acordo com o jornal francês La Croix, em uma passagem intitulada “deslegitimar a guerra”, os religiosos americanos questionaram explicitamente a doutrina da “guerra justa” pedindo para “parar de justificar a guerra”.

E o jornal católico lembrou que, em abril de 2016, os organizadores da Pax Christi International, um movimento católico mundial pela paz, tinham “condenado sem rodeios esta doutrina multissecular e já tinham pedido ao Papa para escrever uma encíclica sobre o tema”.

Deslegitimar a guerra... A ideia pode provocar risadas no momento em que um conflito nuclear pode eclodir a qualquer momento entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, no momento em que a guerra na Síria ou no Iêmen não dá trégua, no momento em que não como pará-la no Afeganistão ou pode eclodir a qualquer momento na Ucrânia; em suma, no momento em que ela ocupa um lugar considerável nesta crônica regular.

Portanto, esse debate não é apenas teórico ou puramente teológico. Se tomarmos o tempo longo, que é o tempo da Igreja, entendemos a questão: terminado há séculos o tempo das cruzadas, as verdadeiras, aquelas que foram feitas em nome de Cristo e abençoadas pelo papa e pelos bispos – mas não terminadas para todos –, vimos a Igreja ortodoxa russa abençoar a intervenção russa na Síria em 2015.

Mas a guerra sempre tem necessidade de legitimidade. A doutrina católica, elaborada ao longo do tempo, prevê três condições para uma “guerra justa”:

– a autoridade, que deve ser o poder público;

– a justa causa, e em particular o fato de que o emprego de armas não leve a males e prejuízos mais graves que o mal que se quer eliminar;

– a intenção justa, isto é, a guerra seja do interesse geral e não pessoal.

Em nome desses poucos princípios gerais, que encontraram sua tradução no campo político moderno, foi possível legitimar um bom número de guerras, mesmo aquelas que, com o recuo da história, aparecem hoje como “injustas”. Por exemplo, as guerras coloniais ou neocoloniais.

Na nova fase em que o mundo se encontra com o fim da Guerra Fria em 1991, mais ainda do que antes, a guerra teve a necessidade de um verniz de legitimidade. O que pode vir da legalidade internacional, do Conselho de Segurança da ONU (intervenção no Afeganistão em 2001, na Líbia em 2011) ou do pedido de ajuda de um Estado (intervenção russa na Síria, francesa no Mali).

Mas quando essa legitimidade parece faltar, como no caso da invasão americana do Iraque em 2003, a opinião pública se insurge. Tony Blair, por exemplo, sofre ainda hoje com o seu envolvimento cego na guerra do Iraque, ao passo que Jacques Chirac e Dominique de Villepin beneficiam-se da imagem favorável de terem dito não a George W. Bush.

As guerras dos anos 2000 até hoje – Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen... – finalmente levantaram a questão da legitimidade, e da eficácia, do recurso à força para resolver conflitos complexos. Essas intervenções, ocidentais na sua grande maioria, mas não exclusivamente, terminaram quase todas mal, como mostra o envio de novas tropas americanas, decididas por Donald Trump, lá onde os Estados Unidos esperavam uma saída honrosa.

Uma das condições da “guerra justa” – o fato de que o emprego das armas não leve a males e prejuízos mais graves que o mal que se quer eliminar – seria suficiente para deslegitimar esse modo de ação empregado no caso do Iraque, da Líbia ou do Iêmen. E certamente serve de realce para os generais americanos que estão tentando acalmar os ardores bélicos de Donald Trump na península coreana.

Uma musiquinha

A posição do Papa, evidentemente, não será suficiente para acabar com as guerras ou para impedir o surgimento de novos conflitos armados. Em primeiro lugar, porque ninguém pede conselhos ao Papa antes de enviar seu exército, mas também porque as lógicas políticas presentes no mundo não mudam da noite para o dia, nem as rivalidades entre as potências, nem os conflitos desencadeados por forças não estatais, como o Estado Islâmico.

Mas a força do papa, suas “divisões”, para falar como Stalin, repousa principalmente em sua dimensão moral e simbólica. Leva tempo, abre um caminho e uma reflexão que vão levar tempo, muito tempo, antes de dar seus frutos.

Na melhor das hipóteses, obrigará os Estados, esses monstros frios, a realizarem esforços extras para legitimar suas guerras junto aos seus cidadãos e o resto do mundo.

Mas não é preciso ser católico ou mesmo sensível à pessoa do Papa Francisco para ouvir sua musiquinha que se instala em nossas mentes: “Não existe guerra justa”. Sem dúvida, haverá outras guerras, algumas talvez inevitáveis em um contexto conturbado, outras puramente defensivas, mas não nos farão mais engolir que elas podem ser “justas”...

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