O papa como o "Louco": a "filosofia da pedrinha" e a "saudável loucura". Artigo de Antonio Spadaro

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08 Mai 2017

“O Papa Francisco quer ser o Louco felliniano: ‘O zelo apostólico tem algo de loucura, mas de loucura espiritual, de saudável loucura. E Paulo tinha essa saudável loucura’. A pessoa que encarna essa loucura é o homem de fé.”

A opinião é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, 04-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O Boletim da Sala de Imprensa da manhã de Páscoa tinha sido claro: “O papa não profere a homilia, porque, à missa, segue-se a Bênção ‘Urbi et Orbi’, com a Mensagem pascal”. Mas Francisco decidiu, mesmo assim, dizer algumas palavras. E o fez de improviso, lentamente, meditando os pensamentos e as palavras. Seguindo um percurso mais semelhante a uma confissão pessoal face a face do que a uma homilia diante de uma praça lotada de fiéis.

“E também nós, pedrinhas pelo chão, nesta terra de dor, de tragédias, com a fé no Cristo Ressuscitado, temos um sentido, em meio a tantas calamidades. O sentido de olhar além, o sentido de dizer: ‘Veja, não há um muro; há um horizonte, há a vida, há a alegria, há a cruz com essa ambivalência. Olhe para a frente, não se feche. Você, pedrinha, tem um sentido na vida, porque é uma pedrinha junto daquela pedra, aquela pedra que a maldade do pecado descartou’. O que nos diz a Igreja hoje diante de tantas tragédias? Isso simplesmente. A pedra descartada não é realmente descartada. As pedrinhas que creem e se apegam àquela pedra não são descartadas, têm um sentido. E, com esse sentimento, a Igreja repete do fundo do coração: ‘Cristo ressuscitou’.”

Essas foram as palavras do Papa Francisco.

O papa: “Você, pedrinha, tem um sentido na vida”

O papa se sentia provado e estava, evidentemente, meditando em voz alta sobre um mundo fraturado e ferido. Ele diria isso depois, na bênção “Urbi et Orbi”, justamente, listando as terras feridas. Mas ele, nessa homilia, preferiu se deter sobre o caso de um rapaz que tinha ouvido no telefone: “Ontem, eu telefonei para um rapaz com uma doença grave – um rapaz culto, um engenheiro –, e falando, para dar um sinal de fé, eu lhe disse: ‘Não há explicações para aquilo que acontece com você. Olhe Jesus na cruz. Deus fez isso com o seu Filho, e não há outra explicação’. E ele me respondeu: ‘Sim, mas ele pediu ao Filho, e o Filho disse que sim. A mim, não perguntaram se eu queria isso’. Isso nos comove. A nenhum de nós é dito: ‘Você está contente com aquilo que acontece no mundo? Está disposto a levar adiante esta cruz?’. E a cruz segue em frente, e a fé em Jesus desmorona”.

Recolhendo essa experiência pessoal, o papa se coloca do lado daquele rapaz, calça os seus sapatos. Não oferece respostas fáceis.

Oferecer “um sinal de fé”, para ele, significa dizer: “Não há explicações para aquilo que acontece com você”. Mas logo acrescenta: “Olhe Jesus na cruz”. Diante da tragédia, Francisco faz como Jesus com os discípulos de Emaús: não se refugia em fórmulas, mas assume a experiência de quem está na sua frente. Faz-lhe companhia, caminha com ele. Assume a sua inquietação e indica Cristo.

Sua fé faz com que o papa diga somente: “Pare, Jesus ressuscitou!”. Pare! A fé no Ressuscitado, diante das tragédias pessoais e dos dramas do mundo, pede que os nossos pensamentos parem, porque Jesus, pedra descartada, é fonte de vida. Há um sentido, um além do sepulcro que ressoa no silêncio da morte. Francisco só pode dizer isso fazendo-se chocar dois significados da palavra “pedra”: a pedra do sepulcro está removida, e, assim, a pedra descartada, que é Cristo morto, tornou-se fundamento de vida.

Ao falar de improviso, o papa, visivelmente, aparece tomado pela imagem que acabou de usar e espontaneamente começa a falar de nós como de “pedrinhas pelo chão”, que, mesmo em meio à dor e às calamidades, temos um sentido: “Você, pedrinha, tem um sentido na vida”, diz Francisco com candura evangélica. E o sentido vem do fato de estar apegado à pedra, à rocha que é Cristo. Nós, pedrinhas apegados à rocha de Cristo, não temos “um muro” na frente, mas “um horizonte”.

O Louco: “Esta pedra deve servir para alguma coisa”

– Eu sou ignorante, mas li alguns livros. Você não vai acreditar, mas tudo o que há neste mundo serve para alguma coisa. Eis, pegue aquela pedra ali, por exemplo.

– Qual?

–  Esta... Uma qualquer... Bem, esta também serve para alguma coisa: até mesmo esta pedrinha.

– E para que serve?

– Serve... Mas e eu vou saber? Se eu soubesse, sabe quem eu seria?

– Quem?

– O Pai Eterno, que sabe tudo: quando você nasce, quando você morre. E quem pode saber isso? Não, eu não sei para que serve essa pedra, mas para algo deve servir. Porque, se isso é inútil, então tudo é inútil: até mesmo as estrelas. E você também, você também serve para alguma coisa, com a sua cabeça de alcachofra.

Essas são as palavras que o Louco – o ator Richard Basehart – dirige a Gelsomina – a inesquecível Giulietta Masina – no filme “A estrada”, de Federico Fellini [1].

A trama do filme é conhecida: o andarilho Zampano, homem forte e comedor de fogo, que se exibe nas feiras de aldeia, tinha comprado, por dez mil liras, a mansa Gelsomina, pobre, feínha e ignorante. A pobrezinha passa a ser a sua serva, sua cozinheira e amante. O contraste entre Gelsomina, sensível e voltada ao mistério, e Zampano, emblema de violência e brutalidade, não poderia ser maior. Mas, um dia, entra na sua vida um equilibrista e tocador de violino, o Louco, justamente.

De maneira irônica, leve e simpática, o equilibrista zomba de Zampano, provocando-o astutamente. Ele ensina a Gelsomina o valor da vida. O irascível Zampano acidentalmente quebrará a cabeça do Louco, deixando-o morrer no meio de um prado. Gelsomina enlouquece, e Zampano vai embora, abandonando-a ao seu destino.

Anos depois, voltando àqueles lugares, ele fica sabendo casualmente que Gelsomina morreu. E ele, bêbado, na beira do mar, compreende, pela primeira vez, a sua pequenez e solidão e a grandeza do universo. E chora. O terrível Zampano explode em soluços na praia, diante do mistério da natureza e da vida, com um grito que parece anunciar um renascimento, uma ressurreição.

“A estrada”, o filme preferido de Francisco

O papa conhece bem o filme de Fellini. Na entrevista publicada na Civiltà Cattolica em setembro de 2013, ele havia dito: “‘A estrada’ de Fellini é o filme de que, talvez, eu mais gostei. Eu me identifico com aquele filme, no qual há uma referência implícita a São Francisco[2].

Mas o papa gosta particularmente daquela que poderíamos chamar, justamente, de “filosofia da pedrinha”, professada pelo Louco. Sabemos disso porque, encontrando-se em novembro de 2013 no Vaticano com o diretor argentino Pino Solanas, ele tinha citado essa célebre cena do filme felliniano. Portanto, o papa claramente pretende calçar o sapato do Louco, fazendo aos fiéis o discurso da pedrinha que o Louco fez a Gelsomina, melancólica tocadora de trompete, para redimi-la da violência do Zampano. E o verdadeiro significado do filme de Fellini está precisamente “pregação noturna” – como foi definida – do Louco a Gelsomina: qualquer ser vivo tem um sentido bem preciso, e nenhum sofrimento é vão. Se uma pedrinha não tem sentido, nada tem sentido [3].

O Louco para além do “palhaço”

O Papa Francisco quer ser o Louco, portanto. Além disso, em uma homilia dele em Santa Marta, em 16 de maio de 2013, ele tinha feito referência à loucura para Deus, dizendo que “o zelo apostólico tem algo de loucura, mas de loucura espiritual, de saudável loucura. E Paulo tinha essa saudável loucura”.

A pessoa que encarna essa loucura é o homem de fé: “Nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1Co 1, 23), escreve Paulo. E ainda: “O que é estulto no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios” (1Co 1, 27), e “nós somos loucos por causa de Cristo” (1Co 4, 10) [4].

O “louco de Deus” é o guardião de uma mensagem que traz consigo o sentido da vida e da “terra de dor”. A mensagem, neste caso, é que a “pedrinha” está “junto daquela pedra” que é Cristo. Há uma solidariedade, uma pertença, uma companhia profundo entre a “pedrinha” e a “pedra” – ao mesmo tempo pedra de descarte e rocha – que revela o sentido e faz viver.

Isso não desfaz a pergunta. Ao contrário, é precisamente Francisco que a levanta: “Como podem acontecer tantas desgraças, doenças, tráfico de pessoas, guerras, destruição, mutilações, vinganças, ódio? Mas onde está o Senhor?”. É também o papa que certifica tragicamente o “coração fechado pela tristeza, a tristeza de uma derrota”.

“Estou cansada de viver. O que estou fazendo no mundo?”, pergunta-se Gelsomina. E Francisco aqui assume a voz de Gelsomina e a sua inquietação. Não propõe soluções e, ao contrário, faz uma triste ladainha, fazendo-se intérprete não do pregador de respostas, mas do pobrezinho que se interroga e geme: “Pensemos que um pouco, cada um de nós pense, nos problemas cotidianos, nas doenças que vivemos ou que alguns dos nossos parentes têm; pensemos nas guerras, nas tragédias humanas”.

Mas, justamente diante dessa triste ladainha, o papa anuncia, “simplesmente, com voz humilde”: “Eu não sei como vai isso, mas tenho certeza de que Cristo ressuscitou, e eu aposto nisso”. O anúncio da Ressurreição é dado no meio do naufrágio, justamente, pelo náufrago. E esse é o paradoxo cristão que Francisco encarna perfeitamente calçando os sapatos do Louco.

Desde Søren Kierkegaard, a teologia já metabolizou e previu que o teólogo pode ser considerado um palhaço. Mas essa metáfora tem também um valor trágico, enquadrando o teólogo como um palhaço que grita realmente “fogo!” para um verdadeiro incêndio, mas provocando apenas as risadas até às lágrimas dos presentes. Ninguém o leva a sério.

Com a homilia pascal de improviso de Francisco – que também faz referência a uma figura circense – o palhaço dá lugar a um acrobata louco, que, em vez disso, é absolutamente credível e convincente. E, nas entrelinhas, lemos a figura do inesquecível príncipe Myškin, o “idiota”, tão amado por Bergoglio na sua beleza e tragicidade, e Dom Quixote. E, no Louco felliniano, tudo isso converge: convivem candura e tragédia, beleza e humorismo.

Não é o palhaço que consegue pregar o Evangelho, sendo ouvido, mas sim o Louco, que faz da própria liberdade dos esquemas e da queda de toda máscara a sua figura.

* * *

O Louco é um acrobata: o sentido da vida é um risco, como o representado pelo fio esticado no alto com o qual ele se confronta. Mas também é um sonhador, que não sabe fazer as contas com a violência de Zampano, mas sabe neutralizá-la. É preciso um louco para redespertar em nós o sentido do mistério. E a fé na Ressurreição.

Notas

1. A obra está disponível em muitos formatos. Quem desejar ver a sequência citada, pode encontrá-la aqui. É fundamental ler, nesse ponto, a entrevista, publicada na nossa revista, do grande mestre do cinema: V. Fantuzzi, “Fellini ‘ai raggi X’”, in Civ. Catt. 1990, I, pp. 58-71. Aqui, justamente em referência à sequência citada, fala-se de um “cristianismo elementar” (p. 64).

2. A. Spadaro, “Entrevista com o Papa Francisco”, in Civ. Catt. 2013, III, p. 472. Posteriormente, o papa fizera referência implícita à trilha sonora do filme no discurso aos participantes do Jubileu do Espetáculo Viajante, em 16 de junho de 2016.

3. Talvez não seja sem significado um bastidor, revelado recentemente pelo Pe. Virgilio Fantuzzi, escritor da nossa revista: o diálogo entre Gelsomina e o Louco foi desenvolvido pelo diretor junto com um jesuíta, renomado especialista em cinema, o Pe. Eugenio Bruno, durante um encontro na Residência do Gesù, em Roma, na Via degli Astalli. A ocasião dessa confidência foi o funeral de Gian Luigi Rondi, celebrado pelo Pe. Fantuzzi, na Igreja de Sant’Anselmo, no Aventino, em 24 de setembro de 2016.

4. O então padre Bergoglio já havia recordado isso em um escrito, citando “As catequeses” de São Cirilo di Jerusalém. Cfr. J. M. Bergoglio, Nel cuore di ogni padre. Alle radici della mia spiritualità, Milano: Rizzoli, 2014, p. 305. Várias vezes, Bergoglio, como papa, apelou à “saudável loucura”, advertindo também contra a loucura negativa que impele o homem ao mal ou o afasta dos outros. Falando aos jornalistas durante o voo de volta do Rio de Janeiro, em 28 de julho, 2013, sobre o tema da segurança, ele disse: “Fazer um espaço de blindagem entre o bispo e o povo é uma loucura, e eu prefiro esta loucura: fora, e correr o risco da outra loucura. Eu prefiro esta loucura: fora. A proximidade faz bem para todos”. Recordando um episódio ocorrido na Argentina, ele definiu como “loucura” uma condição que levou um homem a um gesto de fé grande e desesperada: uma menina de sete anos tinha adoecido, e os médicos lhe tinham dado poucas horas de vida. O pai, um eletricista, “homem de fé”, “ficou como louco e, naquela loucura”, tomou um ônibus para ir ao santuário mariano de Luján, a 70 quilômetros de distância (cfr. Homilia em Santa Marta, 20 de maio de 2013).

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