Incompletude, inquietação e imaginação. Audiência do Papa Francisco à comunidade da revista La Civiltà Cattolica

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13 Fevereiro 2017

Às 10h30 da última quinta-feira, 9 de fevereiro, na Sala do Consistório do Palácio Apostólico Vaticano, o Santo Padre Francisco recebeu em audiência a Comunidade da revista La Civiltà Cattolica, por ocasião da publicação do fascículo de número 4.000.

Colégio de Escritores e demais colaboradores da revista La Civiltà Cattolica, em audiência com o Papa Francisco, no dia 09-02-2017

A Sala de Imprensa da Santa Sé, 09-02-2017, publicou a íntegra do discurso. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Caros escritores do Colégio da Civiltà Cattolica, caros colaboradores leigos,

Estou contente por encontrá-los junto com os outros jesuítas da Comunidade, as religiosas e todos aqueles que colaboram com vocês na vida da revista e na administração da casa em que vocês moram. Saúdo também os editores que, a partir deste momento, publicarão a sua revista em espanhol, inglês, francês e coreano. Sinto aqui presente também toda a ampla família dos seus leitores. Reencontro-os todos juntos de bom grado por ocasião da publicação do fascículo de número 4.000. É um marco realmente único: a revista fez uma viagem no tempo de 167 anos e prossegue com coragem a sua navegação em mar aberto.

Eis: permaneçam em mar aberto! O católico não deve ter medo do mar aberto, não deve buscar o abrigo de portos seguros. Especialmente você, como jesuítas, evitem se agarrar a certezas e seguranças. O Senhor nos chama a sair em missão, a ir ao largo e não a se aposentar para acalentar certezas. Indo ao largo, encontram-se tempestades e pode haver vento contrário. No entanto, a santa viagem se faz sempre na companhia de Jesus, que diz aos seus: “Coragem, sou eu, não tenham medo!” (Mt 14, 27).

A navegação de vocês não é solitária. Os meus antecessores, do Bem-aventurado Pio IX a Bento XVI, encontrando-os em audiência, reconheceram várias vezes como a navegação de vocês é na barca de Pedro. Esse vínculo ao pontífice ao pontífice é desde sempre uma característica essencial da sua revista. Vocês estão na barca de Pedro. Ela, às vezes, na história – hoje como ontem – pode ser sacudida pelas ondas, e não é de se admirar disso. Mas também os próprios marinheiros chamados a remar na barca de Pedro podem remar em sentido contrário. Isso sempre aconteceu. Vocês, da Civiltà Cattolica, devem ser “‘remadores experientes e valorosos’ (Pio VII, bula Sollicitudo omnium Ecclesiarum): remem, então! Remem, sejam fortes, mesmo com o vento contrário! Rememos a serviço da Igreja. Rememos juntos!” (Homilia nas Vésperas com Te Deum, 27 de setembro de 2014). Esse é o vínculo entre mim e vocês. E eu expresso o meu “vivo desejo de que esse vínculo não só se mantenha, mas se fortaleça” (João Paulo II, Discurso aos escritores da Civiltà Cattolica, 19 de janeiro de 1990). Sigamos sempre em frente na nossa navegação, impulsionados pelo sopro do Espírito Santo que nos guia.

Quatro mil fascículos não são uma coleção de papel. Há uma vida dentro, feita de tanta reflexão, de tanta paixão, de lutas sustentadas e contradições encontradas. Mas, acima de tudo, de tanto trabalho. Eu soube que os seus antigos antecessores gostavam de ser chamados simplesmente de “trabalhadores”. Não “intelectuais”, mas “trabalhadores”. Eu gosto muito dessa definição, que é humilde, modesta e muito eficaz. Santo Inácio nos quer trabalhadores na vinha mística. Eu trabalho de um modo, vocês trabalham de outro. Mas estamos juntos, ao lado. Eu, no meu trabalho, vejo vocês, sigo vocês, acompanho vocês com afeto. A sua revista está muitas vezes na minha escrivaninha. E eu sei que vocês, no seu trabalho, nunca me perdem de vista. Vocês acompanharam fielmente todas as passagens fundamentais do meu pontificado, começando pela longa entrevista que eu concedi ao seu diretor em agosto de 2013: a publicação das encíclicas e das exortações apostólicas, dando delas uma interpretação fiel; os Sínodos, as viagens apostólicas, o Jubileu da Misericórdia. Agradeço-lhes por isso e lhes peço para prosseguir nessa estrada, trabalhando comigo e rezando por mim.

Quantas coisas aconteceram em 167 anos de vida da revista e contadas nos seus 4.000 cadernos! A cada milésimo fascículo, vocês se encontraram com o papa: Leão XIII, Pio XI, Paulo VI celebraram os anteriores. Agora, ei-los aqui comigo. E, com vocês, está o padre geral da Companhia de Jesus, porque o Bem-aventurado Pio IX quis que o Colégio “dependesse completamente e em tudo” dele (breve apostólico Gravissimum supremi). Eu confirmo essa confiança da Civiltà Cattolica ao padre geral precisamente por causa da tarefa específica que a sua revista desempenha a serviço direto da Sé Apostólica.

E, mais em geral, confirmo os Estatutos originais da revista de vocês, que Pio IX escreveu em 1866, instituindo a Civiltà Cattolica “de modo perpétuo”. Ao lê-los hoje, notamos uma linguagem que não é mais a nossa. Mas o sentido profundo e específico da revista de vocês está bem descrito e deve permanecer inalterado, ou seja, o de uma revista que é expressão de uma comunidade de escritores todos jesuítas que compartilham não só uma experiência intelectual, mas também uma inspiração carismática e, ao menos no núcleo fundamental da redação, a vida cotidiana da comunidade. A variedade dos assuntos de que vocês tratam deve ser escolhida e elaborada em uma consulta entre vocês, que requer um intercâmbio frequente (cf. Leão XIII, carta Sapienti consilio). E cabe a vocês o debate não só sobre as ideias, mas também sobre o modo de expressá-las e os meios adequados para fazer isso. O centro da Civiltà Cattolica é o Colégio dos Escritores. Tudo deve girar em torno dele e da sua missão.

Essa missão – pela primeira vez em 167 anos –, a partir de hoje, se alarga para além das fronteiras linguísticas do italiano. Tenho a alegria de poder abençoar as edições da Civiltà Cattolica em espanhol, inglês, francês e coreano. Trata-se de uma evolução que os seus antecessores, nos tempos do Concílio, tiveram em mente, mas que nunca foi posta em prática. Há muito tempo já, a Secretaria de Estado a envia a todas as Nunciaturas no mundo. Agora que o mundo está cada vez mais conectado, a superação das barreiras linguísticas ajudará a difundir melhor a sua mensagem em um raio maior. Essa nova etapa contribuirá também para ampliar o seu horizonte e para receber contribuições escritas por outros jesuítas em várias partes do mundo. A cultura viva tende a abrir, a integrar, a multiplicar, a compartilhar, a dialogar, a dar e a receber dentro de um povo e com os outros povos com os quais entra em relação. A Civiltà Cattolica será uma revista cada vez mais aberta ao mundo. Esse é um novo modo de viver a missão específica de vocês.

E qual é essa missão específica? É a de ser uma revista católica. Mas ser uma revista católica não significa simplesmente defender as ideias católicas, como se o catolicismo fosse uma filosofia. Como escreveu o fundador de vocês, Pe. Carlo Maria Curci, a Civilta Cattolica não deve “parecer como coisa de sacristia”. Uma revista só é realmente “católica” se possui o olhar de Cristo sobre o mundo e se o transmite e o testemunha.

No meu encontro com vocês há três anos, eu lhes apresentei a sua missão em três palavras: diálogo, discernimento, fronteira. Repito-as hoje. No bilhete de felicitações que eu lhes enviei pelo número 4.000, eu usei a imagem da ponte. Eu gosto de pensar na Civiltà Cattolica como uma revista que seja, ao mesmo tempo, “ponte” e “fronteira”.

Hoje, gostaria de acrescentar algumas reflexões para aprofundar aquilo que os seus fundadores, retomados depois por Paulo VI, chamaram de “desenho constitucional” da revista. E vou lhes também três “padroeiros”, ou seja, três figuras de jesuítas para se olhar para seguir em frente.

A primeira palavra é Inquietação. Faço-lhes uma pergunta: o coração de vocês conservou a inquietação da busca? Só a inquietação dá paz ao coração de um jesuíta. Sem inquietação, somos estéreis. Se vocês quiserem habitar pontes e fronteiras, devem ter uma mente e um coração inquietos. Às vezes, confunde-se a segurança da doutrina com a suspeita pela busca. Para vocês, não seja assim. Os valores e as tradições cristãs não são peças raras a serem trancadas nos cofres de um museu. Que a certeza da fé, em vez disso, seja o motor da busca de vocês.

Dou-lhes como padroeiro São Pedro Fabro (1506-1546), homem de grandes desejos, espírito inquieto, nunca satisfeito, pioneiro do ecumenismo. Para Fabro, é justamente quando são propostas coisas que se manifesta o verdadeiro espírito que move à ação (cf. Memorial, 301). Uma fé autêntica implica sempre um profundo desejo de mudar o mundo. Eis a pergunta que devemos nos fazer: temos grandes visões e impulso? Somos audazes? Ou somos medíocres e nos contentamos com reflexões de laboratório?

Que a revista de vocês tome consciência das feridas deste mundo e identifique terapias. Que seja uma escrita que tenda a compreender o mal, mas também a derramar óleo sobre as feridas abertas, a curar. Fabro caminhava com os seus pés e morreu jovem de fadiga, devorado pelos seus desejos pela maior glória de Deus. Caminhem com a inteligência inquieta de vocês, que os teclados dos seus computadores traduzem em reflexões úteis para construir um mundo melhor, o Reino de Deus.

A segunda palavra é Incompletude. Deus é o Deus semper maior, o Deus que nos surpreende sempre. Por isso, vocês devem ser escritores e jornalistas de pensamento incompleto, isto é, aberto e não fechado e rígido. Que a fé de vocês abra o seu pensamento. Deixem-se guiar pelo espírito profético do Evangelho para ter uma visão original, vital, dinâmica, não óbvia. E isso especialmente hoje, em um mundo tão complexo e cheio de desafios, em que parece triunfar da “cultura do naufrágio” – alimentada por messianismo profano, por mediocridade relativista, por suspeita e por rigidez – e a “cultura da lata de lixo”, onde cada coisa que não funciona como se gostaria ou que já se considera inútil é jogada fora.

A crise é global, e, portanto, é necessário dirigir o nosso olhar para as convicções culturais dominantes e para os critérios mediante os quais as pessoas consideram que algo é bom ou mau, desejável ou não. Só um pensamento realmente aberto pode enfrentar a crise e a compreensão de aonde o mundo está indo, de como são enfrentadas as crises mais complexas e urgentes, a geopolítica, os desafios da economia e a grave crise humanitária ligada ao drama das migrações, que é o verdadeiro nó político global dos nossos dias.

Portanto, dou-lhes como figura de referência o servo de Deus padre Matteo Ricci (1522-1610). Ele compôs um grande mapa-múndi chinês, representando os continentes e as ilhas até então conhecidos. Assim, o amado povo chinês podia ver retratadas, de forma nova, muitas terras distantes que eram nomeadas e descritas brevemente. Entre estas, também a Europa e o lugar onde o papa vivia. O mapa-múndi também serviu para introduzir ainda melhor o povo chinês às outras civilizações. Eis, com os seus artigos, vocês também são chamados a compor um “mapa-múndi”: mostrem as descobertas recentes, deem um nome aos lugares, deem a conhecer qual é o significado da “civilização” católica, mas também deem a conhecer aos católicos que Deus também está trabalhando fora das fronteiras da Igreja, em cada verdadeira “civilização”, com o sopro do Espírito.

A terceira palavra é Imaginação. Este, na Igreja e no mundo, é o tempo do discernimento. O discernimento sempre se realiza na presença do Senhor, olhando para os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentimento das pessoas que conhecem a via humilde da obstinação cotidiana, e especialmente os pobres. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida. Mas é preciso penetrar a ambiguidade, é preciso entrar nela, como fez o Senhor Jesus assumindo a nossa carne. O pensamento rígido não é divino, porque Jesus assumiu a nossa carne que não é rígida, senão no momento da morte.

Por isso, eu gosto muito da poesia e, quando é possível, continuo lendo-a. A poesia é cheia de metáforas. Compreender as metáforas ajuda a tornar o pensamento ágil, intuitivo, flexível, afiado. Quem tem imaginação não se enrijece, tem senso de humor, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior. É capaz de escancarar visões amplas, mesmo em espaços restritos, como fez nas obras pictóricas o irmão Andrea Pozzo (1642-1709), abrindo com a imaginação espaços abertos, cúpulas e corredores, lá onde só existem tetos e muros. Dou-lhes também ele como figura de referência.

Cultivem, portanto, na sua revista o espaço para a arte, a literatura, o cinema, o teatro e a música. Assim vocês fizeram desde o início, desde 1850. Alguns dias atrás, eu meditava sobre a pintura de Hans Memling, o pintor flamengo. E pensava sobre como o milagre de delicadeza que está na sua pintura representa bem as pessoas. Depois, eu pensei nos versos de Baudelaire sobre Rubens, lá onde ele escreve que “la vie afflue et s’agite sans cesse, / Comme l’air dans le ciel et la mer dans la mer”. Sim, a vida é fluida e se agita sem parar, assim como se agitam o ar no céu e o mar no mar. O pensamento da Igreja deve recuperar a genialidade e entender cada vez melhor como o homem se compreende hoje, para desenvolver e aprofundar o próprio ensinamento. E essa genialidade ajuda a entender que a vida não é um quadro em preto e branco. É um quadro em cores. Algumas claras e outras escuras, algumas tênues e outras vivas. Mas, de todos os modos, prevalecem as nuances. E esse é o espaço do discernimento, o espaço em que o Espírito agita o céu como o ar, e o mar como a água. A tarefa de vocês – como pediu o Bem-aventurado Paulo VI – é o de viver o debate “entre as exigências candentes do homem e a perene mensagem do Evangelho” (Discurso por ocasião da XXXII Congregação Geral da Companhia de Jesus, 3 de dezembro de 1974). E essas exigências candentes, vocês já trazem dentro de vocês mesmos e na sua vida espiritual. Deem a esse debate as formas mais adequadas, também novas, como requer hoje o modo de comunicar, que muda com o passar do tempo.

Espero que a Civiltà Cattolica, graças também às suas versões em outras línguas, pode chegar a muitos leitores. Que a Companhia de Jesus sustente essa obra tão antiga e preciosa ou, melhor, única pelo serviço à Sé Apostólica. Seja generosa em dotá-la de jesuítas capazes e a difunda lá onde é mais oportuno. Penso sobretudo nos centros de formação educativa e nas escolas, em particular para a formação de professores e pais. Mas também nos centros de formação espiritual. Recomendo a sua particular difusão nos seminários e nos centros de formação. Que os bispos a sustentem. O seu vínculo com a Sé Apostólica faz dela, de fato, uma revista única no seu gênero.

Concluo este nosso encontro agradecendo-lhes pelo testemunho que vocês dão. Confio todos vocês aqui presentes à intercessão de Nossa Senhora da Estrada e de São José, concedendo-lhes a minha Bênção Apostólica. Obrigado.

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