Como revolucionar a nós mesmos. A política de Wittgenstein

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27 Fevereiro 2017

"É a segunda fase do pensamento de Wittgenstein uma expressão de seu conservadorismo? É verdade que, como filósofo, ele pensa em termos de costumes e convenções, de disposições enraizadas e formas bem-entrincheiradas de comportamento. E essa inclinação é, sem dúvida, modelada até certo ponto por sua visão social mais ampla. No entanto, não há nada necessariamente conservador aqui. Uma sociedade socialista também funcionaria via crenças habituais e formas comportamentais bem-assentadas, pelo menos se estiver realizando negócios há bastante tempo. Não é como se tudo estivesse perpetuamente sob debate. Sociedades de esquerda valorizam os legados históricos tanto quanto as de direita. Na verdade, foi Leon Trotsky quem lembrou que os revolucionários como ele próprio sempre viveram na tradição", escreve Terry Eagleton, autor de best-seller, como “Literary Theory: An Introduction”, “Why Marx Was Right” e “How to Read Literature”, em artigo publicado por Commonweal, 11-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa

Eis o artigo.

Este ensaio foi adaptado do livro “Materialism”, a ser publicado pela Yale University Press, de Terry Eagleton.

“Formas de vida” é um conceito crucial na segunda fase da filosofia de Ludwig Wittgenstein. É uma noção mais antropológica que política. Formas de vida consistem de práticas como esfregar o nariz, enterrar os mortos, imaginar o futuro estando à nossa frente, ou marcar na linguagem de alguém uma distinção entre várias formas de sorrir (rir alto, gargalhar, rir de mansinho, etc.), mas não entre um adolescente e um sobrinho pré-adolescente, como algumas sociedades tribais acham apropriado fazer. Nenhuma destas práticas é imune a mudanças; mas aqui e agora elas constituem o contexto dentro do qual o nosso discurso faz sentido, e são, pois, fundamentais em algum sentido provisório. Um fundamento não é necessariamente menor ou menos importante porque ele pode não existir amanhã ou em um outro lugar do mundo. Como escreve Wittgenstein em seu estilo simples, não diga que não existe uma última casa na estrada com base em que sempre alguém poderá construir uma outra. De fato, isso seria possível; mas neste exato momento esta é a última.

Wittgenstein insistia que as formas de vida são “dadas” simplesmente. Quando se pergunta por que alguém faz as coisas de um certo modo, poder-se apenas responder: “Isso é simplesmente o que faço”. As respostas, diz o filósofo, em algum lugar devem chegar a um fim. Não é de se admirar, portanto, que Wittgenstein tenha ganho uma reputação de conservador.

Todavia, ainda que ele seja de fato um pensador conservador, a culpa não é sua. Reconhecer a naturalidade de uma forma de vida não é necessariamente endossar os seus valores éticos ou políticos. “Isso é apenas o que fazemos” é uma resposta bastante razoável quando perguntados por que medimos as distâncias em quilômetros ao invés de milhas, mas não quando perguntados por que alguém administra injeções letais a cidadãos que não têm mais condições de trabalhar.

Em termos morais e políticos, Wittgenstein certamente não foi um apologista para a forma de vida conhecida como a civilização ocidental do século XX. Há inúmeras razões para acreditarmos que ele esteve profundamente infeliz com a cultura da modernidade de classe média dentro da qual, como um vienense formidavelmente criado numa classe média alta, se via preso.

"Uma época sem cultura” é como certa vez a descreveu. Ele pode não ter sido um marxista, mas alguns de seus melhores amigos o foram. Estes incluíam Nikolai Bakhtin, ex-membro do Exército Branco, boêmio da margem esquerda parisiense e Legionário Estrangeiro Francês, irmão mais velho do mais famoso ainda Mikhail Bakhtin e membro do Partido Comunista britânico; o antigo historiador George Thomson, mais tarde convertido ao maoísmo e ativista do idioma irlandês; Maurice Dobb, economista do Partido Comunista; e o economista italiano Piero Sraffa, camarada do prisioneiro Antonio Gramsci.

Wittgenstein era considerado comunista em alguns círculos de Cambridge, e confidenciou a um amigo que, na verdade, o era de coração. O seu amante, Francis Skinner, voluntariou-se para combater via Brigada Internacional na guerra civil espanhola, mas foi dispensado por motivos médicos. Um outro amigo, Frank Ramsay, foi repreendido por Wittgenstein como um “filósofo” burguês que evitou uma ruptura radical com os modos existentes de pensamento.

Em 1935, durante a era stalinista, Wittgenstein viajou para a União Soviética e com uma excentricidade típica requereu permissão para se tornar um trabalhador manual aí. As autoridades ficaram aparentemente pouco animadas com a proposta bizarra. Que Wittgenstein foi um stalinista não é exatamente o fato mais divulgado pelos seus admiradores. No entanto, este parece ter sido o caso. O biógrafo, Ray Monk, não aceita esta sugestão e prontamente a rejeita como um absurdo (“nonsense”), enquanto ao mesmo tempo fornece muitas provas da admiração deste sujeito pelo regime de Stalin.

Wittgenstein não se impressionou pelo discurso dos campos de trabalho e pela tirania soviética, insistindo que os que denunciavam Stalin não faziam ideia dos problemas e perigos que ele enfrentava. Wittgenstein continuou tendo um olhar favorável à União Soviética mesmo depois dos primeiros julgamentos e do pacto entre nazistas e soviéticos; ele afirmou que o que mais tiraria a sua simpatia pelo regime seria o crescimento das distinções de classe. Foi membro de uma universidade que mais tarde produziria uma famosa embreagem de agentes duplos, e ainda que não fosse ele próprio nenhum espião, foi, como Burgess, Blunt, Maclean, Philby e outros, dissidente da classe alta. Talvez ele era familiarizado com a obra de Marx, certamente lia a revista de esquerda New Statesman, não gostava de Winston Churchill e pretendia votar no Partido dos Trabalhadores nas eleições gerais de 1945. Também ficou preocupado com o desemprego em massa e com a ameaça do fascismo. O biógrafo não tem dúvida de que a simpatia do filósofo jaz com os desempregados, com a classe trabalhadora e com a esquerda política. “Estive olhando uma foto do Gabinete Britânico”, friamente escreveu Wittgenstein certa vez, “e pensei comigo: ‘um monte de velhos ricos’”. É tentador detectar uma pitada edipiana neste desprezo, dado que o pai monstruosamente autoritário de Wittgenstein era o fabricante mais rico do império austro-húngaro.

Se Wittgenstein foi atraído pela União Soviética, em grande parte isso pode ter acontecido por motivos conservadores: o respeito que tinha pela ordem, disciplina e autoridade; a idealização tolstoiana do trabalho manual (em que ele próprio fora notoriamente adepto); a sua alta afeição modernista pela austeridade (que ele chamava de “andar descalço”, mas que na Rússia da época poderia ser melhor chamado de destituição); sem falar de sua simpatia por um país que havia produzido o seu querido Dostoievsky juntamente com uma herança espiritual preciosa. Quanto à idealização do trabalho manual, Wittgenstein regularmente exortava os colegas e alunos a desistir da filosofia e fazer algo útil à mudança. Quando um jovem, talentoso discípulo, aceitou estas palavras e passou o resto da vida trabalhando em uma fábrica de conservas, Wittgenstein teria ficado extremamente feliz. Para fazer-lhe justiça, ele de fato tentou ouvir o seu próprio conselho, fugindo, de tempos em tempos, de Cambridge para viver uma vida mais humilde, apenas para ser caçado e levado de volta ao cativeiro intelectual.

Mesmo assim, o marxismo foi uma influência importante, embora oblíqua, na segunda fase do pensamento wittgensteiniano.

Foi a crítica da economia burguesa de Piero Sraffa, crítica que buscou restaurar as categorias reificadas dela aos seus contextos históricos, o que ajudou a inspirar o que se pode chamar de a virada antropológica no pensamento filosófico de Wittgenstein, e que forneceu às “Investigações Filosóficas” aquilo que Wittgenstein, no Prefácio de sua obra, chamou de as suas “mais fecundas ideias”. Foi também Sraffa quem fez o gesto napolitano – os dedos varridos postos por debaixo do queixo – que desempenhou uma parte na transformação do conceito de linguagem de Wittgenstein enquanto os dois viajavam juntos de trem. Quando se trata de se expressar com o corpo, é difícil superar os italianos.

Um amigo de Wittgenstein, George Thomson, certa vez registrou que o filósofo era um marxista na prática, mas não em teoria. É difícil enxergar como uma afirmação como essa seria verdadeira em se tratando de um alguém que reprimia grevistas pela falta de autodisciplina e castigava ativistas pacifistas como “escória”. Ele igualmente associou o fascismo e o socialismo como estando entre aqueles aspectos da modernidade que achava “falsos e estranhos”. Ele pôde ter ficado sentido com a situação dos desempregados, mas também atribuiu um alto valor aos costumes, à lealdade, à ordem, à referência, à autoridade e à tradição; ele condenou a revolução como imoral. Nietzsche, a quem a delicadeza de uma alma pode ser mensurada pelo seu instinto à reverência, compartilhava grande parte desta visão de mundo, embora sem dúvida teria considerado a fé de Wittgenstein nos costumes, na convenção e na sabedoria cotidiana como uma capitulação a uma moral “de rebanho” desprezível. Como homem, Wittgenstein podia ser arrogante e incansavelmente exigente, com uma predileção à altivez aristocrática. O pluralismo generoso presente na segunda fase de seu pensamento joga contra o temperamento imperioso próprio seu. A sociabilidade de suas ideias choca-se com o seu ascetismo monacal. Ele considerava o provérbio inglês “It takes all kinds to make a world” [No mundo, há de haver todos os tipos; diversidade é essencial: o mundo estaria incompleto se todos fossem iguais] como sendo o ditado mais belo e amável, porém o pensador parece ter achado estes tipos profundamente inconvenientes.

Mesmo a segunda fase do pensamento de Wittgenstein sendo um pouco anti-Nietzscheana, houve, todavia, uma pitada do “Übermensch” em sua personalidade austera, exigente e não conformista. Como o animal do futuro em Nietzsche, ele era um espírito livre, bastante independente que buscava a solidão na natureza. Pouco animado com a ideia de liberdade individual, viu-se sob o controle de Oswald Spengler, quiçá o pensador conservador mais influente da Europa do século XX. De fato, grande parte de seu pensamento social e político pareceria originar-se na linhagem alemã da chamada “Kulturkritik” [crítica cultural], com sua hostilidade à ciência, ao progresso, ao liberalismo, à igualdade, ao comercialismo, à tecnologia, à democracia e ao individualismo possessivo, com sua aversão a conceitos abstratos e visões utópicas, preconceitos que Wittgenstein compartilhava. Os “Kulturkritikers” falam pela sabedoria espontânea e intuitiva dos aristocratas, em contraste com o racionalismo dissecado das classes médias. O conhecimento é mais “know-how” (saber como) do que “know-why” (saber por quê). Para estes tradicionalistas europeus de classe média, a vida cotidiana é não tem culpa da angustia, da falta de moradia e do tormento espiritual que assola a alta modernidade. Poucos hábitos mentais são mais estranhos ao modernismo do que a confiança tranquila de Wittgenstein no ordinário.

Qual o segredo das contradições aparentes na política de Wittgenstein? Como alguém consegue ficar suspenso desse jeito entre Marx e Nietzsche? Parece haver pouca dúvida de que este tradicionalista fastidioso realmente teve opiniões de esquerda. Talvez algumas delas vieram a desaparecer com o tempo. Mas pode ser também que a sua simpatia pelo marxismo surgiu em parte daquilo que Raymond Williams chama de “identificação negativa”. Como conservador, crítico culturalmente pessimista da classe média moderna, Wittgenstein sentiu-se capaz de fazer alianças com os seus colegas comunistas enquanto repudiava estas convicções em outros. É o caso de adotar como amigo os inimigos do meu inimigo; ou, se preferir, é a relação secreta do latifundiário com o larápio contra o guarda-caça do pequeno burguês. O tradicionalista, afinal de contas, tem muito em comum com o socialista. Ambos os campos pensam em termos corporativos, diferentemente do indivíduo defensor do liberalismo ou do livre mercado. Ambos consideram a vida social como prática e institucional em seu núcleo. Ambos veem as relações humanas como a matriz da identidade pessoal, não como uma violação dela. Ambos buscam castigar uma racionalidade que cresceu demais, retornando ao próprio seu lugar dentro da existência social como um todo.

É a segunda fase do pensamento de Wittgenstein uma expressão de seu conservadorismo? É verdade que, como filósofo, ele pensa em termos de costumes e convenções, de disposições enraizadas e formas bem-entrincheiradas de comportamento. E essa inclinação é, sem dúvida, modelada até certo ponto por sua visão social mais ampla. No entanto, não há nada necessariamente conservador aqui. Uma sociedade socialista também funcionaria via crenças habituais e formas comportamentais bem-assentadas, pelo menos se estiver realizando negócios há bastante tempo. Não é como se tudo estivesse perpetuamente sob debate. Sociedades de esquerda valorizam os legados históricos tanto quanto as de direita. Na verdade, foi Leon Trotsky quem lembrou que os revolucionários como ele próprio sempre viveram na tradição.

De qualquer forma, o conservadorismo de Wittgenstein põe limites a seu pensamento. Não é verdade, como ele afirma, que para resolver os nossos problemas simplesmente precisamos rearranjar o que já sabemos. Na verdade, isso é flagrantemente falso. Tampouco é verdade, como ele sugere, que alguém em busca de uma resposta a tais dúvidas é como uma pessoa presa em uma sala sem perceber que a porta não está trancada, mas que precisa puxar ao invés de empurrar. Há uma certa loquacidade em tal discurso que ofende. Lembra muito a complacência que Wittgenstein desprezava. Entretanto, alguns dos hábitos mentais mais desagradáveis ele veio a adotar. Em todo caso, o que dizer dos conflitos e das contradições inerentes a uma forma de vida? Não existem momentos em que o consenso é jogado longe? Os costumes e as convenções não podem estar sujeitos à disputa feroz? “É característico de nossa linguagem”, escreve Fergus Kerr parafraseando um argumento de Wittgenstein, “fazer brotar, sobre as bases de formas estáveis de vida, modos regulares de agir”. Mas formas de vida não são sempre estáveis ou modos regulares de agir, pelo menos não em períodos de turbulência política. O próprio Wittgenstein vivenciou uma época de turbulência – uma época em que a crise social e política de proporções titânicas fez sua presença ser sentida entre outros lugares naquela confusão de estabilidade e regularidade que conhecemos como modernidade. Talvez a afeição que sentia pelos costumes e pela tradição era, em parte, uma compensação pela revolta/agitação histórica, um pingo de nostalgia por uma era menos contenciosa.

É uma característica marcante da modernidade que nós nos achemos incapazes de concordar até mesmo nos fundamentos. Quase todo mundo acha que tentar asfixiar crianças pequenas não é um curso de ação a ser elogiado, mas não conseguimos concordar sobre os motivos pelos quais concordamos, e talvez jamais conseguiremos. O pluralismo liberal pode envolver a criação de um pacto com aqueles cujas opiniões repudiamos por completo. Um dos preços que pagamos pela liberdade é termos de conviver com um monte de lixo ideológico. Pelo menos nesse sentido não há certamente nenhuma congruência dentro das formas de vida. Alguém pode replicar dizendo que isso é entender erroneamente a noção essencialmente antropológica de forma de vida, confundindo-a com uma unanimidade moral ou política. Mesmo assim, o conservadorismo social de Wittgenstein pode levá-lo a subestimar o desacordo e o antagonismo, projetando o antropológico para dentro do político. A ideia de um conflito estrutural parecer-lhe-ia bem estranho. É difícil afastar a suspeita de que quando pensa sobre uma forma de vida, é uma tribo ou uma aldeia rural que ele tem em mente – e não uma sociedade industrial avançada.

Tratar de um problema filosófico, Wittgenstein observa nas “Investigações Filosóficas”, é como tratar uma doença. “É possível”, escreve em “Observações sobre os Fundamentos da Matemática”, que “a doença dos problemas filosóficos seja curada somente através de um modo transformado de pensamento e de vida, não através de um remédio inventado por um indivíduo”. Marx poderia ter dito o mesmo sobre a ideologia. Para os dois pensadores, tais problemas conceituais são sintomáticos, diferentemente do sintoma neurótico para Freud, que marca o local de um distúrbio patológico na vida cotidiana – um distúrbio, como a ideologia, que revela e esconde. Marx, Nietzsche, Freud e Wittgenstein não se põem na tarefa de tratar os sintomas. Pelo contrário, procuram abordar as origens do transtorno, o que significa abordar as expressões variadas dele em um espírito de diagnóstico. Somente através de uma mudança de comportamento é que parte de nossos bloqueios conceituais poderão ser mandados para as latas de lixo da história. “De forma alguma tenho certeza”, comenta Wittgenstein, “de que prefiro uma continuação de minha obra por outros a uma mudança na maneira como as pessoas vivem, mudança que faria supérfluas todas estas dúvidas”.

Persuadir as pessoas a mudarem a forma como vivem não é uma tarefa simples. Homens e mulheres, crê Wittgenstein, estão imersos numa confusão mental, e libertá-los dessa condição significa “arrancá-los do número enorme de elos que os mantêm firmes. Uma espécie de rearranjo do todo da linguagem deles se faz necessário”. Tão radical é essa emancipação que irá “ter sucesso somente com aqueles em cuja vida já existe uma rebelião instintiva contra a linguagem em questão e não com aqueles cujo instinto é pela vida no exato rebanho que criou a linguagem como sua expressão adequada”. O pensador que foi acusado de consagrar a sabedoria banal da vida cotidiana volta aqui com o rebanho (manada) nietzschiano. A metáfora política da rebelião, da violência de “arrancá-los”, o sentimento de um antagonismo profundo entre o “rebanho” conformista e aqueles capazes de iluminação: dificilmente essa é a linguagem de um defensor do senso comum. Na verdade, Wittgenstein explicitamente repudia qualquer populismo filosófico. Não devemos tentar evitar um problema filosófico apelando ao senso comum, observa ele, mas permitir sermos levados por completo para dentro da dificuldade a fim de que possamos, ao final, lutar para sair dele.

O segundo Wittgenstein via a tarefa do filósofo não como a de proferir a verdade de cabeça erguida, estratégia que reduziria a filosofia a um caso puramente teórico, mas como a de presentear os leitores com uma série de piadas, imagens, anedotas, exclamações, perguntas irônicas, pensamentos em voz alta, fragmentos de diálogos e perguntas não respondidas, de forma que possam alcançar o ponto em que a iluminação se lança sobre eles e vejam o mundo sob uma nova luz. É um conjunto de táticas que Søren Kierkegaard também implementa, sob o título de “indireção”. “O único método correto de fazer filosofia”, afirma Wittgenstein, “consiste não em dizer alguma coisa ou deixar para que uma outra pessoa faça a afirmação (...) Eu simplesmente atraio a atenção da pessoa ao que ela realmente está fazendo e evito proferir asserções”. Como a psicanálise freudiana ou a crítica marxista da ideologia, a filosofia é, para Wittgenstein, uma atividade desmitologizadora, uma terapia mantida guardada para casos particularmente dolorosos de mistificação. Se o filósofo e o psicanalista tiverem a garantia de que nunca farão algo além das devidas tarefas, não é porque estarão ensinando verdades imperecíveis, e sim porque a fantasia e a ilusão são tão endêmicas à humanidade quando a gripe.

Apesar das suspeitas obscuras que tinha para com a filosofia, Wittgenstein consegue ser gracioso o suficiente para conferi a ela um valor limitado. Segundo ele, para transformar o mundo, é preciso mudarmos a forma como o enxergamos, e a filosofia pode ser útil neste aspecto. No entanto, embora mudar a forma como vemos as coisas é uma condição necessária para mudá-las na realidade, na opinião do pensador esta não é uma condição suficiente. É por isso que ele insiste tanto em que a filosofia deixe tudo como estava antes. A sua tarefa não é prover as bases para a nossa forma de falar, visto que já temos uma em nossa forma de vida. Que absurdo idealista é imaginar que são os filósofos que poderão transformar a nossa atividade! “Será revolucionário aquele que primeiro conseguir revolucionar a si próprio”, comenta Wittgenstein, e um filósofo não pode fazer isso por nós mais do que poderia espirrar em nosso lugar. Como bocejar e vomitar, a emancipação é algo que temos de fazer por nós próprios. Com certeza, isso é algo que Wittgenstein tentou fazer por si. Para ele, a necessidade de reconstruir a própria vida não era uma piedade vazia. Na qualidade de filho de um industrialista incrivelmente rico, ele se desfez de grande parte de sua considerável fortuna e, no curso de sua carreira, foi engenheiro aeronáutico, arquiteto amador, professor em Cambridge, professor de escola primária, jardineiro de um mosteiro, eremita na Noruega e um recluso no oeste da Irlanda. Em tudo isso, demonstrou uma coragem e ima integridade moral exemplares. O seu desprezo pela vida aristocrática não era uma afetação pedante.

A filosofia de Wittgenstein é, de fato, uma forma de iconoclastia. Em “Ecce Homo”, Nietzsche declara a derrubada dos ídolos como sendo uma parte essencial de sua tarefa. Um martelo, acredita ele, está entre as ferramentas mais preciosas do filósofo. Coerentemente com esse espírito, Wittgenstein escreve que “tudo o que a filosofia pode fazer é destruir ídolos”. Ela deve libertar o pensamento humano dissipando certas concepções reificadas que ganharam um controle letal sobre nós.

“Filósofos”, queixa-se Wittgenstein, “como se estivessem a congelar a linguagem e torná-la rígida”. O ceticismo da teoria de Wittgenstein não é simplesmente um preconceito antigo, embora o seja também. Ele ancora-se no materialismo. Boa parte do nosso conhecimento é um conhecimento carnal, baseado nas nossas respostas corporais. Quando Wittgenstein escreve nas “Investigações Filosóficas” sobre como obedecemos “cegamente” às regras, ele não estava tentando fomentar uma subserviência covarde à autoridade, mas, de novo, ancorar o pensamento no corpo. Cruzar a estrada no momento em que a pequena figura verde começa a piscar é um sinal do fato de que a nossa relação com o mundo não é primariamente teórica.

Seguimos o sinal cegamente, o que não significa dizer que o façamos de um modo irracional. Obedecer de modo impensado faz parte da maneira como internalizamos as convenções compartilhadas que governam as nossas formas de vida, convertendo-as em disposição corporal. Não precisamos “interpretar” o símbolo.

Wittgenstein argumenta que a linguagem vincula-se a certos fatos da natureza, assim como ao nosso comportamento corporal. Possuímos um leque de respostas naturais, instintivas a outras respostas (medo, piedade, desgosto, compaixão e assim por diante) que eventualmente acabam entrando em nossos jogos morais e políticos de linguagem, mas que são em si anteriores à interpretação. E estas respostas, pertencentes como o são à história natural da humanidade, são de natureza universal. Fazem parte do que significa ser um corpo humano, por mais que um corpo específico possa ser culturalmente condicionado. É sobre esta base material que as formas mais duráveis de solidariedade humana podem-se edificar. Imaginemo-nos em uma situação em que estamos tentando aprender a linguagem de uma cultura muito diferente da nossa. Observemos como os seus membros cozinham, fazem brincadeiras, prestam cultos, costuram suas roupas, punem os transgressores e assim por diante, e ao assim fazer poderemos encontrar uma base para entender suas formas de expressão na medida em que elas se ligam a estas atividades. Entretanto, grande parte disso depende de compartilhar a mesma constituição física como eles compartilham – no que Wittgenstein chama de a “expressividade natural” do corpo humano. Se, ao proferirmos palestras magnificamente eloquentes sobre suas crenças cosmológicas, completando-as com alusões eruditas e observações interessantes, eles responderem como se tivessem tendo suas pernas amputadas à altura dos joelhos sem anestesia, compreendê-los iria ser uma tarefa quase impossível. Melhor seria encontrarmo-nos com coelhos. Conforme observa Fergus Kerr, “é a nossa corporeidade que funda o nosso ser capaz, em princípio, de aprender qualquer idioma natural sobre a terra”.

A concepção wittgensteiniana de filosofia é indevidamente modesta. Ela pode ser mais do que uma terapia a mentes mistificadas. No entanto, na busca por subjugar as pretensões da filosofia, ele revela um respeito pelo mundo mundano que não é comum na intelligentsia. Em seu estilo patrício, ele pode na verdade ser demasiado crédulo quanto à prática estabelecida. Em sua melhor forma, não obstante, o pensador combina a sensibilidade de um artista à vida comum, com a insistência de um profeta segundo o qual o homem e a mulher ordinários (comuns) devem ser arrancados do apego a fantasias egoístas. É um equilíbrio bastante raro.

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