Golpes brancos, a nova tendência na região

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03 Setembro 2016

A sequência, à medida que avança, vai crescendo em sua maquiagem e sua sofisticação. Começa em Honduras com um golpe rudimentar, no princípio quase de manual, mas com uma paródia de legalidade. Segue com um julgamento político expresso no Paraguai sem provas contra o presidente e violando seu direito de defesa e culmina no Brasil com um processo tão legal quanto ilegítimo e carente de fundamentos jurídicos.

A reportagem é de Santiago O’Donnell e publicada por Página/12, 01-09-2016. A tradução é de André Langer.

O golpe parlamentar que terminou com o governo da Dilma Rousseff é o elo mais recente de uma série de golpes brancos que começou com a derrocada do presidente de Honduras, Mel Zelaya, em 2009, e seguiu com o do Paraguai, Fernando Lugo, em 2014.

A sequência, à medida que avança, vai crescendo em sua maquiagem e sua sofisticação. Começa em Honduras com um golpe rudimentar, no princípio quase de manual, mas com uma paródia de legalidade. Segue com um julgamento político expresso no Paraguai sem provas contra o presidente e violando seu direito de defesa e culmina no Brasil com um processo tão legal quanto ilegítimo e carente de fundamentos jurídicos.

A sequência, além disso, começa na periferia da região, onde os Estados Unidos continuam sendo a força hegemônica, e chega ao próprio coração da América do Sul e principal potência regional, que é o Brasil, passando como escala intermediária por um país sul-americano e sócio do Mercosul, como o Paraguai, parte do grupo de países sul-americanos que formaram um bloco relativamente autônomo na década passada e começou a aplicar mecanismos próprios para resolver seus conflitos.

No começo da década passada, as novas instituições regionais, como o Mercosul e especialmente a Unasul, serviram para evitar a interrupção de regimes democráticos no Equador e na Bolívia e conflitos bilaterais como Colômbia-Venezuela, Colômbia-Equador ou Bolívia-Chile, desacordos todos eles que em tempos de guerra fria teriam tido os Estados Unidos como protagonista principal e eventual árbitro.

Mas, a distração de Washington com as guerras no Oriente Médio e o surgimento da China como principal sócio comercial, junto com a coincidência de um grupo de governantes carismáticos de similar sinal político, comprometidos com a integração regional, conseguiu romper a hegemonia do Consenso de Washington em nível sul-americano.

Ao passo que no México, na América Central e no Caribe, apesar de pontes estendidas através de organismos que excluem os Estados Unidos e o Canadá, como a Celac, por seu nível de integração com a potência do norte, tanto em nível de tratados de livre comércio como em temas de migração e de remessas, a dependência segue sendo quase absoluta, o que impede sua participação em outros projetos de integração. Este limite se viu com o golpe de Honduras.

Zelaya foi tirado de pijama da sua cama por uma patota do comandante do Estado Maior, Romeo Vázquez. Levaram-no a uma base militar estadunidense, fizeram-no subir em outro avião e o tiraram do país. Na manhã seguinte, em uma sessão expressa, assumiu um fantoche civil do comandante, o presidente do Congresso, Roberto Micheletti, e os militares decretaram o estado de sítio e uma série de medidas de controle social de cunho autoritário. Segundo cabogramas do Departamento de Estado estadunidense revelados pelo Wikileaks, os Estados Unidos não apoiaram o golpe e até tentaram dissuadir os seus autores, embora Zelaya não fosse do seu agrado. De fato, os Estados Unidos acompanharam o resto dos países da OEA em sua condenação no dia seguinte aos acontecimentos.

Mas, poucas horas depois, os Estados Unidos, na contramão da América Latina, começaram a apoiar a transição do governo golpista para rápidas eleições, aproveitando que Zelaya estava no final do seu mandato. Enquanto isso, arrebatados por seus êxitos na América do Sul, Brasil e Argentina apostaram fortemente na volta de Zelaya, com Cristina Kirchner acompanhando o presidente legítimo em uma fracassada tentativa de retorno e Lula dando-lhe asilo na embaixada brasileira de Tegucigalpa, uma vez que o regresso não pôde se concretizar. Com seu apoio à transição do governo golpista, os Estados Unidos marcaram um limite à expansão do bloqueio sul-americano sem romper suas políticas de Estado de não invadir mais depois do desembarque dos Marines no Panamá, em 1989, e de não apoiar mais golpes, ao menos abertamente, desde a fracassada tentativa de golpe contra Chávez em 2002.

Assim, chegamos ao segundo golpe branco contra um governo progressista por parte de uma elite financeira e política mal-acostumada a perpetuar-se no poder do jeito que for. Desta vez, tocou ao ex-bispo Fernando Lugo, outro personagem que não era do agrado dos Estados Unidos, entre outras coisas, Wikileaks dixit, porque substituiu uma unidade antiterrorista estadunidense dedicada a treinar tropas de elite paraguaias, por assessores militares da Argentina e do Brasil. Além disso, não era um político tradicional nem era particularmente versátil na hora de negociar. Sem apoios no Congresso, abandonado por seus sócios do Partido Liberal, traído por seu vice Federico Franco, ficou à mercê do general Alfredo Stroessner e seu Partido Colorado. A oportunidade veio após a comoção social provocada pelo chamado massacre de Curuguaty, no qual morreram 11 camponeses e seis policiais em uma fazenda de soja no leste do país.

Embora a violência já viesse de longe e talvez ninguém tivesse feito mais para mediar o conflito entre camponeses e fazendeiros do que o próprio Lugo, o Congresso decidiu destituí-lo por sua “responsabilidade política” no conflito. O julgamento durou menos de 48 horas e Lugo teve menos de duas horas para se defender. Por falta de provas reais, foi destituído por 215 dos 225 congressistas paraguaios depois que a Suprema Corte rejeitara um pedido de adiar o processo. A destituição foi condenada pela maioria dos países da Unasul, mas, ao contrário do golpe branco hondurenho, uma moção de censura na OEA teve apenas oito votos a favor e 28 contra. A Unasul mandou uma delegação de chanceleres que, ao término da sua missão, emitiu um documento crítico, os países bolivarianos da ALBA não reconheceram o governo de fato de Franco e o Mercosul suspendeu a participação do Paraguai até as eleições, nove meses depois do golpe, que levaram ao governo do colorado Horacio Cartes.

Agora veio o golpe contra a Dilma. Desta vez, foram respeitados os tempos e rituais marcados pela formalidade, em um processo parlamentar que foi supervisionado in situ pelo presidente da Suprema Corte. Mas, novamente, trata-se de uma interrupção do regime democrático para impor um governo de fato de uma elite nostálgica de poder, através de mecanismos constitucionais previstos para sancionar ações criminosas mesmo que a presidenta não seja acusada de ter cometido crime algum, aproveitando o mau humor social por uma prolongada recessão e um persistente escândalo de corrupção que envolve muitos dos principais empresários e dirigentes políticos do país, mas não a própria Dilma.

Seguindo com a progressão de condenação total no caso hondurenho e condenação parcial no caso paraguaio, desta vez as vozes de protesto em nível regional são mais a exceção do que a regra, atento à virada para a direita que a América do Sul está dando. Diferentemente do que aconteceu em Honduras, mas em sintonia com o que aconteceu no Paraguai, no caso brasileiro Washington se manteve cauto e distante, como que aceitando a nova realidade geopolítica de sua perda de hegemonia. No entanto, atenta aos múltiplos interesses que ainda possui na região, assim como sua aliança tradicional com os fatores de poder que ficaram do lado dos golpistas ou operaram diretamente para erodir as forças democráticas especulando com a possibilidade de recapturar lucros extraordinários, a administração de Barack Obama não demorou para reconhecer a legalidade dos governos surgidos destes processos. Não é o mesmo que invadir um país, mas não deixa de ser uma intervenção negativa.

Assim estão as coisas depois do golpe branco no Brasil. À espera de outros elos nesta nova cadeia de intervenções antidemocráticas, a menos que o jovem bloco regional sul-americano crie mecanismos que lhe permitam preservar o que fica em pé e regenerar o falta em termos de cultura democrática, tanto nos países ameaçados por esta nova tendência, como naqueles que já optaram por saídas autoritárias para suas crises de governabilidade.

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