Sagrado Coração de Jesus, uma devoção "absolutamente necessária para salvar a fé da precisão dogmática"

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

03 Junho 2016

Se há uma imagem consumida até a insignificância ou, melhor, reduzida a paródia de si mesma e entregue ao antiquário da rede, trata-se do Sagrado Coração: um Jesus loiro, de olhos azuis, que, em pose lânguida, aponta para o próprio coração cercado de espinhos, em bela evidência na sua frente, fora do peito, com os raios que partem para todas as direções. Em suma, uma imagenzinha amarrotada que parece interessar, dentro da bolha midiática, apenas aos vendedores dos talk shows e aos zelotes das guerras virtuais.

A reportagem é de Marco Burini, publicada no sítio Settimana News, 02-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Mas não está esgotada apenas a imagem. É a própria devoção ao Sagrado Coração que parece não ter nada a ver com a nossa vida aqui e agora, resíduo de uma época da qual não temos sequer memória.

Apenas por isso, também, pela aparente inatualidade do assunto, o trabalho de Marcello Neri, Giustizia della misericordia. Europa, cristianesimo e spiritualità dehoniana [Justiça da misericórdia. Europa, cristianismo e espiritualidade dehoniana], mereceria ser lido.

Ele não fala apenas disso. Há mais, e talvez vou voltar sobre isso, mas esse é, sem dúvida, o centro da sua reflexão, e não poderia ser diferente, já que a espiritualidade dehoniana se fundamenta precisamente sobre o Sagrado Coração.

Está bem, dirá o leitor, como você poderia falar mal de um livro publicado pelos dehonianos, que fala de dehonianos, no site de uma publicação dehoniana? Vamos lá... Você está se vendendo e ponto, não enrole tanto...

Não vou enrolar tanto, prometo, mas, se me derem um pouco de confiança, apesar desse gigantesco conflito de interesses (ah, esqueci, Marcello é meu amigo), vocês não ficarão decepcionados.

Porque Marcello fez parte dos dehonianos e os honra justamente enquanto toma outro caminho, ou, melhor, eu diria, depois de ler esse ensaio, que essa distância está repleta de afeto, e o afeto deixou a sua pena (o teclado) mais afiada, mais profunda, mais persuasiva.

Aqui, há uma inteligência incomum do momento histórico que todos estamos atravessando, filtrada pela experiência pessoal e pelo debate com a figura e os escritos desse padres francês pouco conhecido do século XIX, Léon Dehon, fundador de uma congregação bastante particular, sem um carisma específico, se não o de conservar, justamente, a devoção ao Sagrado Coração, precisando quando, no auge do seu enraizamento popular, começava o seu declínio.

Um gesto profético, em suma, fruto de uma intuição decisiva: a devoção ao Sagrado Coração é "absolutamente necessária para salvar a qualidade afetiva das fés do gelo da precisão dogmática, racionalizante e reconfortante, em que a neoescolástica tentava hiberná-la para sempre".

Uma urgência que não desapareceu, vistos os enormes icebergs que ainda pontilham o mar eclesial. Como prova disso, como observa o autor, nem mesmo a Igreja pós-conciliar se reconciliou com a devoção do povo ou, melhor, manteve-a às margens, como um objeto de que se devia duvidar e até controlar – embora isso seja impossível com um material tão incandescente.

Até o momento em que irrompeu Francisco na cena, que, ao contrário, começa justamente a partir daqui, e aqui quer chegar: ao Sagrado Coração de Jesus, que, como ele recém-disse muito claramente, "é o centro", "o centro da misericórdia", aquela misericórdia que "se suja as mãos, toca, põe-se em jogo, quer se envolver com o outro, dirige-se àquilo que é pessoal com aquilo que é mais pessoal, não se ocupa com um caso, mas se compromete com uma pessoa, com a sua ferida".

Comprometimento total com o homem, portanto. Nada mal para uma devoção que foi o símbolo da contraposição entre catolicismo e modernidade e, depois, foi arquivada ou desclassificada como "coisas de freiras".

Mas, de todos os modos, a modernidade acabou (exceto nas mentes de alguns japoneses perdidos na selva), e Bergoglio entendeu isso muito bem, a tal ponto que é precisamente a devoção o motor da sua crítica ao paradigma econômico dominante (poucos, depois três anos de pontificado, captaram isso com a precisão de Marcello). Porque devoção não rima com resignação, mas com reivindicação, devoção é exercício de fraternidade e grito de justiça.

O leitor paciente que seguiu até aqui deve ter entendido, de fato, que devoção é uma palavra muito mais densa e ampla do que a que nos propuseram quando crianças na catequese: não os hieróglifos de uma língua morta enunciados diante de um Deus insensível, mas os gestos de um afeto vivo, intercambiados com um Deus amável. Corpo a corpo, coração a coração.

E não há nada de romântico ou de meloso nisso, apesar das toneladas de entulhos literários e de má poesia. Apesar de, acima de tudo, uma perda geral dos sentidos que é a verdadeira questão, hoje. Muito diferente do relativismo.

Além disso, se fosse possível arquivar, de uma vez por todas, uma iconografia alheia à sensibilidade contemporânea – kitsch, aliás –, se se conseguisse representar o Sagrado Coração de outra maneira, representá-lo a partir de uma sensibilidade pessoal e comunitária reencontrada, embora autêntica, seria melhor.

Enquanto isso, porém, limpemos a cabeça de reflexões preguiçosas e de lugares comuns baratos. Esse livro defende o nosso caso.

Descrição da obra

Pensar a fundo a espiritualidade dehoniana no contexto atual da Europa abre as portas para um perfil transcultural inesperado e permite elaborar uma reflexão sobre a presença da congregação religiosa em tempos de globalização.

O texto se concentra simbolicamente em torno da figura da misericórdia, que permite unir a espiritualidade dehoniana à retomada surpreendente da devoção ao Sagrado Coração, que tece as tramas de uma sensibilidade espiritual como critério de análise da justiça social na Evangelii gaudium do Papa Francisco. E permite, por outro lado, compreender o Ano Santo como tempo oportuno para um repensamento e um reposicionamento dessa espiritualidade no rastro aberto pelo Papa Francisco.

Sumário

Siglas e abreviaturas
Agradecimentos.
Introdução.
I. Sagrado Coração: sensibilidade espiritual e justiça social. Uma retomada inesperada
II. Confiance. O Deus amável e o estilo de uma fé
III. As grandes palavras dehonianas. Uma figura de justiça
IV. Fraternidade e vínculo social

Sobre o autor

Marcello Neri é professor de teologia católica na Universidade de Flensburg (Alemanha), onde é codiretor do grupo de pesquisa "Literatur und Theologie". Também é membro do Comitê Científico do Centro de Estudos "Sara Valesio", de Bolonha. Pela EDB publicou Il corpo di Dio. Dire Gesù nella cultura contemporanea (2010), Il monte e la senape. Meditazioni sul Simbolo apostolico (2012) e La dimora ospitale. Riflessione teologica sull’incarnazione (2012).

  • Marcello Neri. Giustizia della misericordia. Europa, cristianesimo e spiritualità dehoniana. Coleção "Cammini dello spirito". Bologna: EDB, 2016, 136 páginas.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Sagrado Coração de Jesus, uma devoção "absolutamente necessária para salvar a fé da precisão dogmática" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU