Do Concílio à Igreja de Francisco. Artigo de Raniero La Valle

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30 Junho 2015

A Igreja é aquela que ajuda a decifrar os sinais do tempo e contribui para pôr em obra aquelas realidades que chegam a se fazer sinal do Reino, aquelas realidades que sejam legíveis como antecipações, início, "visualização de impressão" do Reino. Portanto, se o pontificado do Papa Francisco assume, seguindo Jesus, o objetivo do anúncio e da vinda do Reino, isso significa que a categoria interpretativa do pontificado é a categoria messiânica, isto é, a garantia de que o Reino existe, vem e está perto.

Publicamos abaixo o texto da palestra proferida por Raniero La Valle (foto abaixo), no dia 6 de junho, no Convento de San Domenico de Pistoia, para o ciclo de encontros da associação Koinonia. La Valle é jornalista e ex-senador da Itália pelo Partido Comunista Italiano.

O artigo foi publicado na revista Koinonia Forum, n. 439, 13-06-2015, 09-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Para um juízo global do atual pontificado até este momento, parece-me que se possa dizer, desenvolvendo a análise já iniciada no livro Chi sono io Francesco? [Quem sou eu, Francisco?] [1], que o Papa Francisco fez uma escolha estratégica, da qual há três indícios (e três indícios bastam para dar uma prova disso).

O primeiro é a escolha do nome Francisco, que ele adotou durante o conclave para responder à recomendação do cardeal Hummes: "Lembre-se dos pobres", mas que depois ele explicou associando o nome de Francisco de Assis a uma opção de evangelismo puro.

O segundo é a escolha de morar em Santa Marta, o que significa celebrar todas as manhãs a missa em segredo de palácio, mas com o povo em uma verdadeira assembleia, e a essa assembleia, a cada dia, sete dias por semana e 365 dias por ano, abrir o Evangelho e comentá-lo, declarando, por isso, continuamente, os critérios que determinam a sua ação pontifical cotidiana.

O terceiro é a Evangelii gaudium, que é uma espécie de Regra da Igreja universal, em que o Evangelho é assumido como razão do seu existir e da sua missão.

A escolha estratégica, revelada por esses três indícios, é a de voltar à linha de partida, isto é, de voltar a Jesus e ao seu anúncio, ou seja, ao seu Evangelho, que precede a Igreja e diz a todos os homens que o Reino está próximo. Isso significa que o conteúdo próprio do anúncio é o Reino, não a Igreja; se o exegeta católico Alfred Loisy dizia graficamente no seu livreto L'Evangile et l'Eglise, em 1902, que "Jesus anunciava o Reino, e foi a Igreja que veio" [2], o Papa Francisco tenta refazer o caminho.

Jesus anuncia o Reino, e, portanto, o problema também hoje para aqueles que o seguem é o do Reino. A Igreja visível é o seu "sinal e instrumento", não é a realidade do Reino (por isso, pode ser comparada a um hospital de campanha). E se a característica do Reino é a de ser "já e ainda não", a Igreja visível não é esse "já"; o "já" é aquele tanto do Reino que já está presente no mundo e é revelado pelos "sinais dos tempos"; portanto, por exemplo, para permanecer nos sinais dos tempos da Pacem in Terris, o "já" do Reino são os trabalhadores que se emancipam, as mulheres que adquirem dignidade de pessoas, os povos que se libertam, o direito que se instaura, as Constituições que tutelam os direitos fundamentais dos seres humanos, a ONU que realiza em germe uma comunidade de povos, e a guerra que é rotulada pelos próprios homens como "alheia à razão".

Os sinais adversos que indicam a ausência ou o afastamento do Reino são, ao contrário, segundo a leitura do Papa Francisco, a sociedade da exclusão, a humanidade descartada, a economia que mata, o dinheiro que governa em vez de servir, o trabalho alienado e precário, os jovens desempregados e assim por diante.

A Igreja é aquela que ajuda a decifrar os sinais do tempo e contribui para pôr em obra aquelas realidades que chegam a se fazer sinal do Reino, aquelas realidades que sejam legíveis como antecipações, início, "visualização de impressão" do Reino.

Portanto, se o pontificado do Papa Francisco assume, seguindo Jesus, o objetivo do anúncio e da vinda do Reino, isso significa que a categoria interpretativa do pontificado não é a da reforma eclesiástica, não é a da doutrina social, nem somente a da profecia, mas é a categoria messiânica, isto é, a garantia de que o Reino existe, vem e está perto.

Veremos, depois, em que se concentra esse anúncio messiânico do Reino e como a palavra que o resume e que o expressa é a misericórdia, de modo que o próprio nome desse Reino, que na representação das antigas culturas espaciais bem poderia ser definido como o "Reino dos Céus", pode ser hoje o de "Reino de Misericórdia"; e, por isso, se Deus, como Francisco diz incessantemente, é misericórdia, é sinônimo de "Reino de Deus".

Parece-me que aqui está a verdadeira novidade desse pontificado. Mas o Papa Francisco não poderia interpretá-la na solidão, sem expressar a continuidade de uma história, de uma tradição que é de toda a Igreja. E aqui, então, deve se estabelecer a relação entre o Papa Francisco e o Concílio Vaticano II, que deste papado é a verdadeira gênese e inesquecível precedente. Pode-se até dizer que o pontificado de Francisco relembra e completa o Concílio, também naquilo que o Concílio não foi ou não conseguiu produzir.

Concílio e Papa Francisco: um só evento

Portanto, o critério hermenêutico a se assumir para entender este pontificado é reconhecer que o Concílio e o Papa Francisco não são dois eventos à distância de 50 anos um do outro, mas são um evento único.

Interpretá-los desse modo não é de fazer uma escolha neutra. De fato, significa identificar uma trajetória que, partindo do Concílio e passando pelo pontificado de Francisco, deveria acabar em uma Igreja nova, uma Igreja da misericórdia, veículo de uma misericórdia que não é só para os céus, mas "in Terris". Em suma, o Evangelho que retorna. Esta é a tese ou, se quiserem, o sonho expressado nessas páginas.

A unidade entre Concílio e Papa Francisco resulta de gestos e palavras do próprio papa. O último gesto foi a beatificação, no dia 23 de maio passado, de Dom Romero na sua catedral de San Salvador, com seis cardeais, 100 bispos, quatro presidentes da América Latina e 260 mil pessoas: uma verdadeira reabilitação de um bispo conciliar abandonado por Roma em vida e, depois, longamente ocultado na Igreja. O primeiro gesto, ao contrário, no dia 27 de abril de 2014, foi a canonização de João XXIII, sem a necessidade de qualquer milagre a mais senão o de ter convocado o Concílio.

Quanto às palavras, dão fé aquelas com as quais, desde o início, o Papa Francisco se referiu ao Concílio, mas lido não como uma operação de reforma eclesiástica, mas como um anúncio "atualizado" do Evangelho ("atualização" [aggiornamento] era a palavra usada pelo Papa João XXIII). Assim, de fato, o Papa Francisco interpretou o Concílio quando disse, na entrevista à revista La Civiltà Cattolica: "O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Ele produziu um movimento de renovação que simplesmente vem do próprio Evangelho. Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. O trabalho da reforma litúrgica foi um serviço ao povo como releitura do Evangelho a partir de uma situação histórica concreta. Sim, existem linhas de hermenêutica de continuidade e de descontinuidade" – e aqui a alusão era às reservas manifestadas por Bento XVI [3] – "mas uma coisa é clara: a dinâmica de leitura do Evangelho atualizada para hoje que foi própria do Concílio é absolutamente irreversível" [4].

E assim o Papa Francisco continua o Concílio, quando diz, na Misericordiae vultus, que, com o Vaticano II, "começava, para ela, um percurso novo da sua história. Os Padres, reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja em uma cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova" [5].

Do Concílio à Bula de Proclamação do Ano Santo, portanto, é o próprio papa que identifica um processo que está em curso na Igreja. Ele começou no dia 11 de setembro de 1962, um mês antes do Concílio, com o discurso do Papa João XXIII sobre a Igreja de todos e especialmente Igreja dos pobres, continuou com o seu discurso do dia 11 de outubro, Gaudet Mater Ecclesia, chegou à Gaudium et Spes no dia do encerramento do Concílio de 8 de dezembro de 1965 e, por fim, depois de uma travessia no deserto (que durou 10 anos a mais do que os 40 regulamentares), através da Evangelii gaudium do Papa Francisco, vai rumo ao compromisso do dia 8 de dezembro de 2015, quando serão abertas as portas santas do Jubileu.

A próxima etapa desse percurso é o Ano Santo. E aqui as coisas se tornam difíceis, porque não falamos de coisas já ocorridas, mas que deverão ocorrer. Como serão? É claro que, aqui, abre-se a grande alternativa: porque ou o Jubileu será o Jubileu de costume, gerido como uma Expo eclesiástica, e então não teria muito significado, ou o Jubileu pode ser o nó através do qual o evento Concílio-Papa Francisco poderia se prolongar na vida futura da Igreja e se sairia rumo à Igreja da misericórdia.

Eu tendo por essa segunda hipótese. E o fato de que é precisamente essa a intenção com que o Jubileu foi convocado é sustentado pelo fato de que o papa o programou de tal modo que não só se abrirão as portas das quatro basílicas romanas, mas também de todas as catedrais, as concatedrais, os santuários e as "igrejas significativas" do mundo: porque, desta vez, não se trata de fazer com que os peregrinos entrem para ganhar indulgências; desta vez, se trata de fazer entrar a misericórdia.

E então o povo cristão, o povo não só dos devotos, mas o povo dos fiéis deveria fazer com que se abram não apenas as portas das igrejas, mas também as das casas e até as dos corações, para além da divisão do mundo entre sacro e profano, entre religioso e secular, que não é coisa cristã.

Fé e modernidade até o Concílio

Na citação das etapas desse percurso que vai do Concílio ao Ano Santo, deve ter se notado que há uma palavra, há um motivo que se repete em todas, e essa palavra é "gaudium", esse motivo é a alegria: Gaudet Mater Ecclesia, Gaudium et spes, Evangelii gaudium.

Mas de que alegria se trata? Qual era a alegria que, na época, o Concílio buscava e qual é a alegria reservada para amanhã?

A alegria que o Concílio buscava e para a qual João XXIII o tinha convocado em um tempo de angústia e de luto (angor et luctus) era a alegria de poder voltar a crer.

Porque o mundo, ao menos no Ocidente, tinha perdido essa alegria. Mas ela não voltou depois do Concílio, mas, ao contrário, precisamente depois do Concílio, essa perda da fé pareceu mais dramática.

Quinze anos depois da conclusão do Concílio, em um livro de 1980, um grande filósofo cristão, Italo Mancini, fazia a pergunta crucial: como continuar crendo? [6].

Estava-se em plena secularização, e o diagnóstico que ele fazia era de que, dada a cultura e a situação do tempo, era quase impossível crer.

Devemos nos perguntar o que tinha acontecido para chegar a esse ponto. Tinha acontecido que tinha se cumprido uma época histórica em que as Igrejas tinham tentado colocar o mundo sob a custódia do sagrado, e o mundo tinha reagido colocando Deus entre parênteses e abrindo mão d'Ele.

Esse foi o confronto da Igreja com a modernidade, que começou, como recordou o próprio Bento XVI, com o processo contra Galileu. Fazendo um balanço do Concílio, no dia 22 de dezembro de 2005, o Papa Ratzinger dissera, de fato, que a relação da Igreja com a modernidade tinha se rompido em três frentes: entre a Igreja e as ciências modernas, entre a Igreja e o Estado moderno, entre a fé cristã e a pluralidade das religiões do mundo e, portanto, entre verdade e liberdade religiosa, entre obediência e liberdade [7].

Por força desses conflitos, tinha acontecido que, enquanto a humanidade tinha entrado em uma '' época nova", como Bertolt Brecht a definia na sua Vida de Galileu, a Igreja e o Deus em nome do qual ela falava tinham se colocado de enviesado, como se o Evangelho, a fé, Deus fossem um impedimento, uma interdição para os esforços do homem que construía um mundo diferente, mais seu. Nem o Deus da cristandade trazia a paz e, ao contrário, não impedia a guerra entre os próprios princípios cristãos.

Mas a modernidade não aceitou ser detida. Não se podia frear o desenvolvimento histórico. Ciência, política, direito, pluralismo e liberdade humana deviam seguir em frente. E, se havia um Deus que impedia isso, esse devia ser um Deus mal-entendido, um Deus equivocado.

Assim, foram homens muito cristãos, educados pelas Igrejas, embebidos pelos Evangelho, muitas vezes até mesmo padres e pastores, começando pelo calvinista holandês Hugo Grócio, que encontraram a solução; e esta foi a escolha de seguir em frente para construir a história "como se Deus não existisse": até mesmo na blasfema hipótese – como escreveu Grócio no seu De jure belli ac pacis, em 1625 – de "que Deus não existisse ou não se ocupasse da humanidade".

E essa foi a fórmula da laicidade que ainda perdura e que governa a nossa cultura: uma hipótese, dada como ficção e considerada infundada por aqueles mesmos que a tinham proposto, mas eficaz.

Assim, Deus foi exilado, embora o Deus exilado fosse, na realidade, um Deus artefato, não crível e deturpado pela forma como era apresentado pelas Igrejas; um Deus que, além disso, se deixava exilar, porque é um Deus discreto, um Deus que se oferece, mas não se impõe, não é invasivo, que, depois, é a razão pela qual o Papa Francisco diz que "a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível" [8].

E, durante a longa rejeição católica da modernidade, a partir do processo contra Galileu ao Syllabus, ao non expedit, à excomunhão aos comunistas, à Humanae vitae, antes foram embora os cientistas, depois foram embora os juristas, depois foram embora os operários (e o cardeal Suhard escrevia em Paris: "Agonia da Igreja?"), depois foram embora as mulheres e, por fim, foram embora os jovens, que hoje não se casam mais, não batizam os filhos, não leem a Bíblia, não têm a fé entre os seus problemas, e muitos nem sequer suspeitam mais da existência de culturas religiosas.

Em suma, como escrevia Mancini citando o Nietzsche de A gaia ciência, esvaziamos o mar, escurecemos o céu, varremos o horizonte, gritamos com as multidões "Deus está morto" [9].

Porém, vínhamos de um tempo em que se agitaram grandes esperanças que permitiram entrever a época nova, mas, depois, essas esperanças foram frustradas. Mancini citava as esperanças suscitadas pelo marxismo, quando, no fim do século XIX, os operários alemães se enchiam o peito com o canto proletário: "Move conosco a época nova".

Depois, lembrava as esperanças que tinham acompanhado a epopeia partidária e, depois, aquelas que haviam saudado a fundação da República com a Assembleia Constituinte, depois recordava o Concílio [10].

Mas todas essas esperanças havia desaparecido. Mesmo aquelas suscitadas pelo Concílio, talvez porque ele tinha sofrido uma torção com respeito à intenção com a qual João XXIII o havia convocado e não tinha sido recebido como um novo grande discurso sobre a fé, mas como um novo grande discurso sobre a Igreja.

Entender o que o Concílio foi

Talvez, pode ser que o Concílio não tenha sido entendido, talvez não tenha sido entendido durante o seu próprio desenvolvimento, quando houve equívocos sobre o "fim pastoral" do Concílio e não se compreendeu que, quando João XXIII o havia convidado a reinvestigar e reapresentar o tesouro da fé daquele modo que os nossos tempos requerem, "ea ratione quam tempora postulant nostra", ele queria dizer que era justamente o discurso sobre Deus, era justamente a mensagem fundamental do evangelho, mais do que o estatuto da Igreja, que devia ser reproposto ao homem da modernidade.

Por isso, é preciso agora entender melhor o Concílio. Por isso, não podemos nos limitar a lembrar aquilo que foi entendido na época por aqueles que fizeram o Concílio, por aqueles que o contaram, por aqueles que começaram a fazer a sua história; e muito menos podemos nos contentar com o que disseram aqueles que, em seguida, se dividiram na interpretação do Concílio, de Paulo VI – que falou da "fumaça de Satanás" que, depois do Concílio "por alguma fissura tinha entrado no templo de Deus" [11] – a Dom Marchetto, o demolidor da chamada "escola de Bolonha", a Bento XVI, que sofria o pós-Concílio como "uma batalha naval na escuridão da tempestade", semelhante à que, segundo São Basílio, tinha acontecido depois do Concílio de Niceia, na qual tinha sido distorcida até mesmo "a reta doutrina da fé" [12]. Devemos entender agora o que não tinha sido entendido na época.

Além disso entender "depois", entender in progress é uma característica fundamental da experiência de fé. Há um ponto crucial do Evangelho de João em que Jesus fala de uma compreensão diferida. Jesus diz que aquilo que, no momento, não entendemos, entenderemos depois. E ele diz isto a Pedro, depois do lava-pés: "Você não entende agora o que eu estou fazendo. Entenderá depois" (Jo 13, 7).

É interessante, para efeitos do discurso que estamos fazendo, o fato de que aquilo que Pedro não entende no início não é uma palavra de Jesus, ou seja, algo que tenha a ver com um conceito, com um discurso sobre a fé, com uma teologia. O que Pedro não entende no cenáculo é um ato de Jesus, é um fazer de Jesus, o fato de se cingir o quadril, o curvar-se, o ajoelhar-se aos pés do outro, lavar-lhe os pés. Ou seja, ele não entende um ato de misericórdia. Talvez, ele entendeu algumas palavras de Deus, mas não entendeu a misericórdia de Deus.

E como aquilo que devemos entender hoje do Concílio, do pontificado e da Igreja é como ir rumo ao reino de misericórdia, é conveniente que nos refiramos a esse episódio do Evangelho e que esperemos que Pedro e a Igreja compreendam e façam se tornar a realidade de amanhã aquela misericórdia que não entenderam e não praticaram ontem.

Deus e o homem do Concílio

Portanto, em primeiro lugar, devemos voltar a interrogar e a entender o Concílio a partir da sua misericórdia. O Papa João XXIII tinha dito no seu discurso programático do dia 11 de outubro, não por acaso citado por Francisco na Misericordiae vultus: "Agora, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o do rigor". Por que João XXIII diz isso em 1962? Porque aquilo que a Igreja deve fazer naquele Concílio é interpretar o momento histórico, não repetindo doutrinas bem conhecidas e muito menos renovando condenações, mas lendo os sinais dos tempos.

E é interessante que aqui João XXIII contrapõe a misericórdia ao rigor, à severidade. O Papa João XXIII não queria dizer que, entre misericórdia e rigor, uma coisa valha pela outra. Não é um opcional para a Igreja ser misericordiosa ou dura de coração. As duas coisas não são iguais. Uma é justa, e a outra é errada. Mas, se a Igreja no mundo é a figura do Pai, o fato de a Igreja ser misericordiosa ou dura de coração significa propor um Deus misericordioso ou duro de coração.

O Concílio, ele mesmo, ainda antes do Papa Francisco, propôs um Deus da misericórdia. Um Deus não vingativo, não violento, que não ser aplacado, que não expulsa nenhum homem ou mulher para longe de Si, nem mesmo depois da queda, mas que, sem interrupção, não deixa de amá-los e de proporcionar-lhes as ajudas necessárias para a salvação.

E se esse Deus era novo, até mesmo em relação ao Deus então transmitido nas coletas do Ordinário Romano e no catecismo, novo também era o homem, livre na sua consciência, livre para buscar a verdade sem restrições, posto por Deus nas mãos do seu conselho.

A antropologia do Concílio considera o homem capaz de ser responsável pela sua história, de construir caminhos de justiça e paz sore a terra, de abrir portas através das quais, nas palavras de Walter Benjamin, o messias possa entrar. Sem cair na acusação de pelagianismo, sem ceder ao pessimismo antropológico da "massa dannata", a Gaudium et Spes assume "a convicção de que a humanidade não só pode e deve aumentar cada vez mais o seu domínio sobre a criação, mas também lhe compete instaurar uma ordem política, social e econômica que sirva cada vez melhor ao gênero humano e ajude os indivíduos e os grupos a afirmarem e desenvolverem a própria dignidade" (Gaudium et Spes, n. 9).

Além disso, a Constituição Pastoral diz com tranquila consciência "aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus" (n. 34).

Portanto, não há nenhum prometeísmo condenado pelo Concílio. Ao contrário, o homem é considerado capaz de buscar o bem e de governar os processos. Por isso, o homem pode conseguir instituir ordenamentos de justiça, promulgar Constituições, implementar o direito e construir a paz.

Segundo o Concílio, Deus confia no homem, e o homem pode ser bem-sucedido. Um otimismo que não tem a sua origem em uma análise sociológica, mas em uma antropologia cristológica, que culmina na afirmação da Gaudium et Spes segundo a qual "pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem" (n. 22). Onde "cada homem" significa não apenas os cristãos, mas "todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente. Com efeito, já que Cristo morreu por todos, e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos considerar que o Espírito Santo dá a todos a possibilidade de se associarem a esse mistério pascal por um modo só de Deus conhecido" (idem).

Nesse processo, a obra de Deus e a operação humana estão combinadas. E essa também é a mensagem do Papa Francisco, essa é a razão que ele dá à esperança, que não é apenas a espera de que alguma coisa aconteça, mas também é a luta para fazê-la acontecer.

Cinquenta anos depois, projeto misericórdia

Essa reproposição de Deus e do homem na forma que os nossos tempos requerem, foi o grande ato de misericórdia do Concílio. Misericórdia, para o Concílio, queria dizer restituir Deus ao mundo, para além das imprecisões e dos mal-entendidos em que Ele havia sido oculto, restituir à humanidade "o rosto silenciado de Deus" (para retomar uma expressão do cardeal Kasper) e queria dizer restituir o homem como a criatura mais preciosa, e não repudiada, que saiu das mãos de Deus; e, por isso, significava dar a alegria de poder voltar a acreditar.

Mas, depois do Concílio, não foi valorizada a novidade do anúncio, muito menos teve sucesso a reforma da Igreja, pela única razão de que, sem uma reforma do papado, a reforma da Igreja não pode ser feita.

E eis que Francisco reabre o processo. Começa por si mesmo, isto é, do papado, a reforma da Igreja, porque, diz ele em Evangelii gaudium, "como sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também em uma conversão do papado" (n. 32), e reabre a questão de Deus, que a modernidade tinha fechado, propondo a misericórdia e anunciando o seu reino.

A misericórdia não é a acomodação, o bonachismo, "tudo está bem", "vejam como se amam", "não se preocupe, Deus perdoa sempre". Não é isso. A misericórdia é um sinal de contradição, envolve a cruz e deve passar por uma porta estreita; por isso, as portas santas através das quais a misericórdia deverá passar devem se alargar, como diz o Salmo 24:

Portas, levantem seus frontões
Elevem-se, portais antigos
Pois vai entrar o Rei da glória!

Para poder usar a misericórdia, Dom Romero teve que ampliar os seus próprios pontos de vista, converter-se e enfrentar a contradição, não só com o governo do seu país, mas também com a sua Igreja. E agora o Papa Francisco, na carta para a beatificação, reconhece onde estava a sua santidade: "Deus concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e de ouvir o sofrimento do seu povo e moldou o seu coração para que o orientasse e o iluminasse a ponto de fazer do seu agir um exercício pleno de caridade cristã".

Portanto, para exercer a misericórdia, é preciso ver, ouvir, abrir o coração e agir com caridade.

A contradição à misericórdia

Agir com caridade, porém, significa enfrentar a contradição. E aqui há um novo problema: qual é a contradição? O que está em contradição com a misericórdia não é a crueldade.

Hannah Arendt, assistindo ao processo de Eichmann, não encontrou a crueldade, mas a "banalidade do mal". Se a contradição à misericórdia fosse a crueldade e a impiedade, a misericórdia não seria tão rara, porque nem todos são crueis ou impiedosos. Ao contrário, a contradição à misericórdia é a dureza de coração, e esta é bastante difundida.

É muito significativo que o conteúdo da promessa messiânica, tanto em Ezequiel quanto em Jeremias, consista no fato de que Deus tirará o coração de pedra e dará um coração de carne (Ez 36, 26). "Darei para vocês um coração novo e colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne" (Ez 1, 19). "Eis que chegarão dias – oráculo do Senhor – em que eu farei uma aliança nova com Israel e Judá (…) Colocarei minha lei em seu peito e a escreverei em seu coração (…) Pois eu perdoo suas culpas e esqueço seus erros" (Jer 31, 31-34).

É claro que esse ideal messiânico – misericórdia em vez de dureza de coração – é para a terra, porque os corações habitam a terra.

Há uma homilia em Santa Marta, do dia 9 de janeiro de 2015, em que o Papa Francisco falou do coração endurecido e das causas pelas quais o coração se endurece. Uma causa é ter sofrido uma experiência de dor e ter medo de repeti-la. Há um provérbio argentino que diz que, se alguém se queima com o leite, quando vê a vaca, chora.

Mas depois há uma dureza de coração que está diretamente relacionada com a lei. Esta, diz o papa, é típico das pessoas "que são muito apegadas à letra da lei". Isso acontecia com os fariseus, com os saduceus, com os doutores da lei do tempo de Jesus, que objetavam: "Mas a lei diz isto, mas diz isto até aqui...", e assim "faziam outro mandamento"; no fim, "pobrezinhos, vestiam 300-400 mandamentos e se sentiam seguros". Na realidade, todos eles "são pessoas seguras, mas da mesma forma que é seguro um homem ou uma mulher na cela de uma prisão atrás das grades; é uma segurança sem liberdade".

Portanto, a dureza de coração produz a lei e tira a liberdade. Por isso, a contradição à misericórdia é a lei. A contradição à misericórdia para Eichmann era executar as ordens, obedecer a lei. A contradição à misericórdia para com os refugiados do Mediterrâneo não são os traficantes que [Federica] Mogherini [alta representante da União Europeia para Política Externa e Segurança] e [Matteo] Renzi [primeiro-ministro italiano] querem bombardear. A contradição à misericórdia para com os refugiados é a lei de Dublin, são os acordos de Schengen, são os tratados europeus, são as leis da exclusão, são as leis de cidadania que criam a última discriminação sancionada pelo direito.

A contradição da lei

A dureza de coração ou o coração de pedra não são em si mesmos uma perversão do homem. São a condição do homem no estado de natureza, como se Deus não existisse e como se a cultura não tivesse começado.

Ora, a lei restringe o estado de natureza e é uma alternativa ao caos, ao reino da selva, à mortandade generalizada. A lei, portanto, dá segurança (é assim, segundo Hobbes, que nasce o Estado), mas é a segurança dentro de uma cela atrás de uma grade...

Certamente, a lei pode crescer em direção a um coração cada vez menos duro. Há um progresso do direito ou, melhor, esse é precisamente o orgulho do Ocidente. As Constituições são instrumentos no caminho que vai da dureza de coração à misericórdia. Uma das glórias da Constituição italiana é a de ser uma estação no caminho da misericórdia, sem, por isso, deixar de ser laica (bastaria o artigo 3 para demonstrar isso). Por isso, [Sergio] Mattarella [presidente italiano], em audiência no Vaticano, confirmou o recebimento do convite do papa a um Jubileu da misericórdia.

Quanto à guerra, ela é mais do que uma contradição à misericórdia: é uma loucura. A verdadeira contradição à misericórdia é a lei da guerra, é o ius ad bellum, é o ius in bello, são os códigos penais militares de guerra, mas também são as leis humanitárias de guerra, as Convenções de Genebra que tentam dar um desconto à guerra sem sucesso. A única lei que seria segundo a misericórdia seria o ius contra bellum, recentemente invocado pelo cardeal de Estado, Parolin,

Mas a verdadeira alternativa à dureza de coração original é a misericórdia que vai além da lei e também substitui e reduz a lei a nada.

A contradição entre a misericórdia e a lei está no coração da mensagem cristã, isto é, do Evangelho. A descontinuidade cristã trazida por Jesus está na superação da lei mosaica, isto é, precisamente na superação do regime determinado pela dureza de coração e na instauração do regime da misericórdia.

É muito claro aos cristãos dos primeiros séculos que a lei de Moisés foi dada por causa da dureza do coração. O apologeta Justino, em meados do século II, quando os Evangelhos se fixam na Igreja, escreve que "sabemos que as normas mosaicas foram dadas por causa da dureza do coração do povo" (Diálogo com Trifão, 47, 1). E Jesus, explicitamente, a propósito do repúdio, também imputa a lei à dureza de coração.

Mas ainda no Antigo Testamento há a contradição entre misericórdia e lei. Os sacrifícios pertencem à ordem da lei, são minuciosamente regulados pela lei, são, por assim dizer, o salário da lei, o preço da lei. Mas Deus diz: "Eu quero misericórdia e não sacrifícios; ao contrário, socorram a viúva, o órfão, façam justiça".

A novidade de Jesus, depois tornada universal por Paulo, é que os sacrifícios não justificam. É a misericórdia que justifica: a viúva que dá o óbolo, o pecador no fundo da Igreja são justificados; o jovem rico que observa a lei, mas vai embora triste porque tem muitos bens, não é justificado.

A misericórdia justifica: tinha sede, tinha fome, estava nu, me deram de beber, me alimentaram, me vestiram. Esse é o anúncio do tempo messiânico. O pontificado de Francisco coloca-se em uma linha messiânica quando retoma e leva adiante a contradição entre a misericórdia e a lei, e, para removê-la, aposta no sofrimento e na luta dos pobres.

Então, qual é a tarefa que cabe a nós, discípulos, se não quisermos prosseguir em qualquer ordem, mas, como quer a Koinonia em Pistoia, construir "um projeto abrangente de Igreja"? Trata-se de construir essa Igreja da misericórdia, não uma Igreja que se derreta como o sangue de São Januário, não uma Igreja que, para se livrar das sobrecargas religiosas, corre o risco de um platonismo sem encarnação.

Mas aquela Igreja que está escrita nas páginas da Evangelii gaudium, que traduz até nos detalhes mais concretos a Igreja, definida pelo Concílio como sinal e instrumento do Reino.

Para construir essa Igreja de amanhã, é preciso assumir a contradição principal, lembrando que o gesto definitivo da misericórdia foi o de pregar o quirógrafo da lei, que nos era adverso, no lenho da cruz (Cl 2, 14). Por isso, podemos chamar esse reino de reino da misericórdia e anunciar que esse reino está próximo (Mt 10, 7). E como quem o contradiz é a lei, o gesto político decisivo para apressá-lo é a objeção de consciência, começando pela objeção do papa à economia que mata.

Essa objeção de consciência pode ser legitimamente exercida também contra a lei da Igreja. Admitindo-se, por exemplo, que a Humanae vitae é uma lei da Igreja, há uma objeção de consciência de massa, um verdadeiro sinal dos tempos, que a fez cair.

Do mesmo modo, pode haver uma objeção de consciência a uma lei que ainda excluísse da eucaristia todos os cristãos que passaram para as segundas bodas. Esse é um campo onde é fácil que a dureza de coração cristalizada em uma lei se oponha à misericórdia. O próprio Jesus ressaltou isso, criticando a lei sobre o repúdio que Moisés tinha concedido aos maridos por causa da dureza do seu coração.

Mas a indissolubilidade do matrimônio a qualquer custo, enrijecida em uma lei incontestável, também não poderia veicular uma dureza de coração impiedosa e ser contra a misericórdia? Não se pode remediar uma dureza de coração com outra dureza de coração.

É importante que essas questões já sejam discutidas na Igreja de modo sinodal, com um início de envolvimento também dos simples fiéis. Essa é a razão pela qual, no último encontro em Roma da assembleia Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri [Igreja de toda, Igreja dos pobres], pensou-se em promover um Sínodo ou mais Sínodos de discípulos, para contribuir para construir a Igreja e o Reino da misericórdia.

Pois bem, se levarmos a sério a alternativa da misericórdia e levarmos a dialética entre lei e misericórdia até mesmo para dentro dos sagrados cânones, sem negar o papel e a bondade daqueles que cuidam da manutenção da lei e dos cânones, o nosso lugar e o nosso carisma de discípulos é o de estar do lado da misericórdia.

Raniero La Valle
Merry la Vallée, Pentecostes, 24 de maio de 2015

Notas:

1. Raniero La Valle, Chi sono io Francesco? Cronache di cose mai viste. Milão: Ponte alle Grazie, 2015.
2. Giuseppe Ruggieri lembra isso no seu recente Della fede, Carocci Editore, 2014, p. 69-70.
3. Bento XVI. Discurso à Cúria Romana de 22 de dezembro de 2005, recém-subido ao pontificado.
4. La Civiltà Cattolica, 19 de setembro de 2013.
5. Misericordiae vultus, n. 4.
6. Italo Mancini. Come continuare a credere. Milão: Rusconi, 1980.
7. Bento XVI. Discurso à Cúria Romana, op. cit.
8. La Civiltà Cattolica, op. cit.
9. Nietzsche. A gaia ciência. Aforisma 125.
10. Italo Mancini, op. cit., p. 22-25.
11. Paulo VI. Homilia na Festa de São Pedro e São Paulo, 29 de junho de 1972.
12. Bento XVI, Discurso à Cúria, op. cit.

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Do Concílio à Igreja de Francisco. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU