A vida como história de liberdade. Artigo de Rosino Gibellini

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12 Fevereiro 2014

“Também na Igreja, a história da liberdade se faz luta pela liberdade e, portanto, processo de libertação para ampliar os espaços da liberdade.”

Publicamos aqui a introdução à nova edição de Libertà e manipolazione. Una riflessione sulla società e sulla Chiesa [Liberdade e manipulação. Uma reflexão sobre a sociedade e sobre a Igreja] (EDB 2013), de Karl Rahner.

O texto foi escrito pelo teólogo italiano Rosino Gibellini, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em filosofia pela Universidade Católica de Milão, e republicado pelo blog Teologi@Internet, da Editora Queriniana, 07-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O que é, em última análise, a nossa vida e a vida dos povos? É uma história de liberdade, que se expressa superando as limitações e restrições vários (ou manipulações) que condicionam e obstaculizam a sua expressão e a sua constituição. Rahner escreve em um ensaio paralelo – por temática e por tempo: "Talvez seja possível interpretar com um certo direito tudo o que aconteceu no palco da história como um produto da liberdade a serviço da liberdade" [1]. A história da liberdade se faz luta pela liberdade e, portanto, processo de libertação para ampliar os espaços da liberdade.

O ensaio de Karl Rahner (1904-1984) – então professor da Universidade de Münster – que é reproposto a leitores e leitoras, cerca de 40 anos depois da sua primeira publicação, em 1970, na edição original alemã, prontamente traduzido em 1971, conserva a sua atualidade. Em 1970, estava-se em torno do 1968 [2], que, nos seus movimentos juvenis, reivindicava mais liberdade na sociedade; mas também a Igreja Católica era abalada pelas discussões sobre a encíclica Humanae vitae (1968), de Paulo VI, assim avaliada retrospectivamente pelo grande teólogo da moral Bernhard Häring: "Se tivermos em mente tudo isso, não é de se admirar que inúmeros bispos e um número ainda maior de teólogos, pastores, confessores e especialmente pessoas casadas e conselheiros matrimoniais tenham dificuldade em aceitar o caráter absoluto das novas normas" [3].

A atualidade é dada pela situação de crise da sociedade civil, diversamente interpretada (Habermas, Beck, Bauman, Rémond), mas também de uma crise da Igreja [4], que perdeu o dinamismo e os horizontes de esperança, abertos pelo Concílio Vaticano II, do qual completam-se nestes anos o 50º aniversário de celebração e de promulgação dos 16 documentos conciliares [5].

O autor do ensaio proposto está entre os teólogos católicos mais conhecidos do século XX. Na conferência programática de Chicago, Teologia e antropologia, de 1966, Rahner defende a necessidade – dada a já não obviedade e estranheza das doutrinas cristãs em um mundo secular e pluralista – de tratar com método antropológico-transcendental todas as doutrinas teológicas, de modo a poder identificar para cada ponto doutrinal uma inspiração antropológica correspondente [6].

Por causa dessa sua sistematização, a teologia de Rahner representa a contribuição mais rigorosa, no âmbito da teologia católica, àquela que foi definida como a "virada antropológica na teologia". O seu discípulo, Johann Baptist Metz, bem caracterizou a contribuição do seu mestre à teologia católica: "A teologia de Rahner forçou o sistema da 'teologia de escola', abrindo-o ao sujeito. Ele cavou 'o sujeito' da rocha de um objetivismo escolástico, em que essa 'teologia de escola' estava aprisionada em todas as suas partes" [7].

A temática do ensaio proposto, estruturalmente de antropologia teológica, expressa-o nessa linha, no tempo em que se assistia a passagem da teologia transcendental-antropológica de Rahner à teologia política, promovida pelo discípulo já citado, J. B. Metz, em Sobre a teologia do mundo (1968), em que se prospectava a Igreja como instituição de liberdade crítica com relação à sociedade, então interpretada nos seus dinamismos pela Escola de Frankfurt [8].

Liberdade é uma palavra de longa história [9], que se torna palavra-chave nos últimos dois séculos; e o teólogo, nesse ensaio, a ilumina na sua dimensão social e, especialmente, no seu sentido teológico e eclesial.

1. A liberdade criatural, em sentido teológico, é liberdade do egoísmo e pelo amor de Deus e do próximo: "É liberdade liberada por obra da graça" [10]. Mas ela é exercida no espaço do mundo e "no material do mundo" (p. 18). Há, portanto, uma relação entre liberdade religiosa (entendida como liberdade em sentido teológico) e liberdade civil (ou profana, como é chamada). A liberdade religiosa precisa de um espaço de liberdade civil, por ser liberdade que atua no mundo, e é liberdade "agonal" (p. 27), que luta para se afirmar contra as diversas manipulações: "A história do ser humano continua sendo fundamentalmente história da liberdade contra as manipulações" (p. 26).

A história do ser humano não é evolutiva, mas sim "criativa" (p. 32), é "história da luta pela liberdade" (p. 34); é "história aberta, fundamentada na esperança e na responsabilidade" (p. 32). Mas a esperança do cristão é escatológica, esperança em um "futuro absoluto" (expressão recorrente na teologia de Rahner) com o advento do reino de Deus; e isso explica um "realismo cético" (p. 37) do cristão com relação à história da progresso (Hegel e Croce) e ao utopismo revolucionário (Marx), mas não exclui, por si mesmo, um "empenho de esperança" (p. 36), bem diferente do conservadorismo dos cristãos, gerado, indevidamente, pelo motivado ceticismo com relação ao futuro intramundano.

Aqui, Rahner fala abertamente do ceticismo dos cristãos e da Igreja, que não se mostraram defensores e colaboradores na história da liberdade do mundo moderno, mas sim "críticos e censores, certamente não portadores dessa história" (p. 38), e isso no campo histórico, bem verificável e documentado, mas justamente em contradição com uma concepção profunda e cristã do mundo. Bela página rahneriana, pós-conciliar, incomum no tempo de improdutivas lamentações, que se colocam mais no lado do ceticismo (histórico) dos cristãos e da Igreja, superado, em linha doutrinal, pelos documentos do Concílio Vaticano II.

Rahner, rápido e orientativo nas conclusões: "De todos os modos, apesar da confusão existente no mundo e na Igreja, põe-se hoje a tarefa de cooperar decisivamente nessa história da liberdade" (p. 39). Essa advertência, teológica, ainda vale no tempo do fundamentalismo, mas também do ressurgimento da consciência apocalíptica, como é expressada também pelo filósofo Massimo Cacciari no seu livro muito estimulante Il potere che frena [O poder que freia] (Adelphi Edizioni, 2013), em que se prevê (e se prediz) que a humanidade dominada pela técnica só pode esperar a abertura de novas caixas de Pandora. E Rahner: "A vontade de que a história prossiga é um dever para o cristão" (p. 41).

2. A história da Igreja também é, ou deveria ser, história de liberdade; a Igreja como "koinonia da esperança e do amor é o lugar em que ocorre aquela salvação que se realiza somente na liberdade" (p. 48). Mas é um espaço de liberdade a ser conquistado sempre de novo, dada a pecaminosidade humana até mesmo dos homens da Igreja e também da Igreja como instituição, que gere poder.

Em um livro seu, pungente e realista, o teólogo brasileiro Leonardo Boff tinha denunciado corajosamente em Igreja: Carisma e Poder (1981): "O carisma não exclui o elemento hierárquico, mas o inclui. O carisma é mais fundamental que o elemento institucional. O carisma é a força pneumática (dynamis tou Theou) que instaura as instituições e as mantém" [11]. Rahner reconhece que a Igreja historicamente alimentou "desconfianças" contra a liberdade, percebida como "ameaça", em vez de se constituir na sociedade como "instância crítica de liberdade" (p. 50-51).

3. Por fim, Rahner avança no tema da relação entre Magistério e teologia, que se coloca na temática mais vasta da "democracia na Igreja", que é apenas mencionada e não expressamente tratada no ensaio. Aqui, o teólogo alemão desce ao concreto, fazendo referência expressa à Carta do episcopado alemão (30 de agosto 1968) depois da encíclica Humanae vitae (25 de julho 1968), para reivindicar à pesquisa teológica um espaço de liberdade, não como concessão soberana e benevolente, mas sim como exigência de verdade: "Esse espaço de liberdade, como dimensão da verdade cristã e eclesial, deve ser sublinhado e reconhecido" (p. 56).

O tema assume a sua relevância, também no 50º aniversário da memória do Concílio. Reconhece-se que o entusiasmo do Concílio tinha favorecido uma colaboração fativa entre bispos e teólogos, que não precisou de uma teorização. O teólogo Otto Hermann Pesch escreve (nos anos 1990), com uma certa amargura: "No 'núcleo duro', porém, continua-se sendo da opinião de que não existe uma semelhança real, em certos casos também em forma de disputa, entre magistério e teologia, mas que há, aqui, o anúncio e, lá, a teologia, que é forçada a uma obediência interior e exterior diante do ensino oficial – embora ainda não formalmente dogmatizado – da Igreja. Olhando bem, com tal visão não é sequer respeitado o custoso compromisso alcançado pela Constituição sobre a Revelação" [12]. Assim se evidencia a passagem da colaboração no Concílio a uma justaposição entre Magistério e teologia nas décadas seguintes, que contribuiu com a crise, hoje lamentada, da Igreja Católica.

Citamos um recente documento oficial sobre A teologia hoje, assinado pela Comissão Teológica Internacional em 2012, que se mostra consciente dos problemas existentes e se situa na linha de uma desejada colaboração entre bispos e teólogos [13]. Escreve o recente documento vaticano no número 42: "Inevitavelmente, às vezes, poderá haver tensões no relacionamento entre os teólogos e bispos. Em sua análise profunda da interação dinâmica, no organismo vivo da Igreja, dos três ofícios de Cristo como profeta, sacerdote e rei, o Bem-aventurado John Henry Newman reconheceu a possibilidade de tais 'colisões crônicas ou contrastes', e é bom lembrar que ele via isso como 'de acordo com a natureza das coisas'".

E continua citando a Tese 9 do documento Magistério e Teologia de 1975: "Com relação às tensões entre teólogos e Magistério, a Comissão Teológica Internacional, em 1975, assim se expressou: 'Onde quer que haja uma verdadeira vida, aí haverá sempre tensão. Essa tensão não precisa ser interpretada como hostilidade ou oposição real, mas pode ser vista como uma força vital e um estímulo para a realização em comum de (suas) respectivas tarefas por meio de diálogo'".

Talvez se trate de recuperar, em nome de uma nova evangelização, aquela capacidade de síntese, da qual nasceram laboriosamente, na real comunhão e colaboração entre Magistério e teologia, os documentos do Concílio Vaticano II.

Notas:

1. K. RAHNER, Istituzione e libertà (1971), in Schriften zur Theologie, Band X; trad. it., Nuovi saggi V. Roma: Paoline, 1975, 153-174; qui: 168.

2. Cf. R. GIBELLINI, Sessantotto e teologia. Teologi@Internet 124 (10-12-2008).

3. Cf. B. HÄRING, Liberi e forti in Cristo, vol. 2 (1979), versione integral do inglês. Roma: Paoline, 1980, vol. 2, 636.

4. Cf. F.-X. KAUFMANN, Kirchenkrise. Wie überlebt das Christentum?, Herder, Freiburg-Basel-Wien 2011; H. KÜNG, Salviamo la Chiesa (2011). Milão: Rizzoli, 2011.

5. Cf. S. SCATENA – D. GIRA – J. SOBRINO – M.C. BINGEMER (edd.), A cinquant’anni dagli inizi del Vaticano II (1962-2012), Concilium 48 (3/2012). Bréscia: Queriniana, 2012

6. Cf. R. GIBELLINI, La teologia del XX secolo. Bréscia: Queriniana, 1992, 2007 6 ed. aum., 251.

7. Ibid., 252.

8. Ibid., 324.

9. Cf. E. STERPA, Storia della libertà, Rubbettino, Soveria Mannelli (CZ) 2008.

10. K. RAHNER, Istituzione e libertà, cit. n. 1, 172.

11. L. BOFF, Igreja: carisma e poder. São Paulo: Ática, 1994, 259.

12. O.H. PESCH, Il Concilio Vaticano II. Preistoria, svolgimento, risultati, storia post-conciliare (1996 4). Bréscia: Queriniana, 2005, 304.

13. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Teologia hoje: perspectivas, princípios e critérios. Livraria Editora Vaticana, Cidade do Vaticano, 2012.

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