Um último ato radical. Artigo de Eamon Duffy

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17 Fevereiro 2013

A declaração de Bento XVI ao renunciar, proferida na última segunda-feira, "simples, racional e em certo nível incontestável é um importante divisor de águas. Ao articulá-la, Bento XVI se separou, tácita mas decisivamente, com dois séculos, da espiritualização ultramontana do ofício papal e das suas responsabilidades", constata o Eamon Duffy, professor de história do cristianismo da Universidade de Cambridge e membro do Magdalene College, em artigo publicado na revista católica britânica The Tablet, 16-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo o historiador inglês, "não é nenhum menosprezo aos muitos dons de Joseph Ratzinger dizer que nada no seu papado provavelmente vai lhe cair tão bem quanto a sua maneira de deixá-lo".

Eis o texto.

A renúncia do Papa Bento XVI confunde os binários simples de liberal ou conservador pelos quais as ações papais são rotineiramente medidas. O seu conservadorismo não precisa de ilustração: ele estava amplamente em evidência na sua reabilitação determinada da liturgia pré-conciliar não reformada, apesar da maciça resistência dos bispos do mundo, ou o que muitos consideram como os seus esforços super-rogatórios de reintegrar a cismática Fraternidade São Pio X na linha católica principal. E não houve nenhum sinal no seu pontificado de qualquer movimento longe do estilo decididamente não colegial de governo que ele herdou de João Paulo II.

Mas, para tudo isso, a surpreendente renúncia de segunda-feira mostrou que a compreensão do papado por parte de Bento XVI é radicalmente diferente não só da do Papa Wojtyla, mas também da maioria dos seus antecessores do século XX.

Joseph Ratzinger, é claro, tem um temperamento mais acanhado do que o extrovertido Wojtyla, embora ele tenha entrado com uma eficácia surpreendente no molde de celebridade do qual o papa polonês foi pioneiro. A visita de Bento XVI à Grã-Bretanha em 2010 foi o tipo de triunfo pessoal que ninguém teria previsto para esse professor tímido e austeramente cerebral.

Mas o discurso de renúncia de Bento XVI o distancia cuidadosa e nada explicitamente de um aspecto crucial da visão de João Paulo II. Os católicos sempre acreditaram que os papas são, por instituição divina, primeiro entre os bispos, o centro visível da unidade católica e a corte de apelo final em disputas sobre a doutrina e a moral. Mas, desde meados do século XIX, os próprios papas se tornaram o foco de elevada emoção religiosa e às vezes duvidosa especulação doutrinal. A infalibilidade papal foi (erroneamente) entendida como uma qualidade pessoal, dando ao papa o acesso único à mente de Deus. O ofício de papa foi imaginado como algo diferente em espécie do de todos os outros bispos. O Papa Paulo VI escreveu em seu diário logo após a sua eleição: "O posto é único. Traz grande solidão. Eu era solitário antes, mas agora a minha solidão se torna completa e aterradora. Jesus estava sozinho na Cruz (...) meu dever é planejar, decidir, assumir toda responsabilidade por guiar os outros (...) e sofrer sozinho".

Em seus últimos anos de agonia e de declínio físico e mental, Karol Wojtyla expressou essa compreensão quase mística do papado no pleno brilho da mídia mundial. Enquanto a doença e a idade lhe roubavam a sua energia e foco titânicos, ele já não habitava mais o papado em qualquer sentido significativo como executivo-chefe da Igreja Católica (cujas funções foram, de fato, descarregadas pela Cúria), mas, ao contrário, como um ícone vivo do sofrimento semelhante ao de Cristo. A resistência heroica e a grandeza religiosa dos últimos dias de Wojtyla fizeram com que qualquer sugestão de que um papa gravemente doente e nem sempre lúcido deveria, talvez, renunciar há muito tempo parecesse mesquinha e tacanha.

Mas se a decência a silenciava, a questão não foi embora. O anúncio de segunda-feira deixa claro que, assim como ele reverenciava João Paulo II, Joseph Ratzinger reconheceu pessoalmente a sua força. Sua declaração de renúncia fez uma alusão inconfundível aos últimos anos de Wojtyla. Ele estava consciente, disse, de que, devido à sua "essência espiritual", o papado "deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando". Mas ele continuou insistindo que, para o adequado desempenho do ministério petrino, "é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito".

Essa declaração simples, racional e em certo nível incontestável é um importante divisor de águas. Ao articulá-la, Bento XVI se separou, tácita mas decisivamente, com dois séculos, da espiritualização ultramontana do ofício papal e das suas responsabilidades. A partir desse papa aparentemente mais conservador de todos vem uma insistência radical de que o papa é um funcionário e, quando deixa de ser capaz de cumprir a sua função, então ele deve reconsiderar a sua posição. O Papa Bento XVI prefaciou a sua renúncia com uma declaração de que agiu "depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus". Sua aposentadoria não é uma mera questão de conveniência pessoal, a rendição de um homem velho a um fardo insuportável: ela se tornou para ele uma demanda da consciência.

Em certo nível, trata-se de simples senso comum: quem investiria em uma corporação multinacional cujo executivo-chefe está velho e doente, ou se inscreveria em um exército liderado por generais senis?

Todos os outros bispos devem apresentar sua renúncia aos 75 anos, todos os cardeais perdem a sua elegibilidade para votar em um conclave aos 80 anos. Até agora, o próprio papado foi pensado como algo acima de tais aspectos práticos. Mas o impensável agora foi pensado, um tabu foi quebrado. Ao fazer isso, o Papa Bento XVI abriu possibilidades libertadoras para os seus sucessores, que agora não precisam temer o papado como uma sentença vitalícia. Ele também estendeu as opções para os cardeais eleitores, que não precisam mais assumir que um papa mais jovem estará ali para sempre, nem que eleger um homem mais velho é encerrar a Igreja na não atividade destrutiva de um inválido de longo prazo.

É muito cedo para um cálculo formal dos débitos e dos créditos desse papado, embora a história, provavelmente, será mais gentil com Bento XVI do que o falso tribunal do jornalismo de frases curtas.

Mas, no entanto, ele já está finalmente avaliado, a sua decisão corajosa, humilde e imaginativa de depôr o anel do Pescador lhe assegura o seu lugar nos livros de história e lhe confere o direito à gratidão da Igreja. Não é nenhum menosprezo aos muitos dons de Joseph Ratzinger dizer que nada no seu papado provavelmente vai lhe cair tão bem quanto a sua maneira de deixá-lo.

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