Deus acolhe Jesus no seu seio

Foto: Cathopic.com

14 Mai 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo da Ascensão do Senhor, 16 de maio de 2021 (Marcos 16,15-20). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O trecho do Evangelho que a Igreja nos propõe para a solenidade da Ascensão do Senhor é tirado da conclusão adicionada mais tarde ao Evangelho segundo Marcos, por parte de “escribas cristãos”, que o completaram com um encerramento menos brusco do que o do relato original (cf. Mc 16,1-8). São versículos que não se encontram nos manuscritos mais antigos e são desconhecidos de muitos Padres da Igreja.

Contudo, a Igreja os acolheu como inspirados, isto é, que contêm a palavra de Deus, tanto quanto o restante do Evangelho e, de fato, estão em conformidade com as Escrituras (secundum Scripturas: 1Cor 15,3.4); são até uma síntese dos finais dos outros Evangelhos (sobretudo dos sinóticos), que relatam os eventos referentes ao Jesus ressuscitado, que ascendeu ao céu e foi glorificado pelo Pai.

De acordo com essa conclusão, Jesus aparece ao grupo dos Doze sem Judas, aos Onze, portanto, enquanto estão à mesa. Aqueles que, chamados por Jesus ao seu seguimento, estiveram envolvidos na sua vida e haviam aprendido dele um ensinamento de autoridade por pelo menos três anos, mas que, na hora da paixão, haviam todos fugido e o abandonaram (cf. Mc 14,50), na aurora pascal, tinham ouvido de Maria de Magdala o anúncio da ressurreição de Jesus (cf. Mc 16,9-10), mas “não acreditaram” nela (epístesan: Mc 16,11); os dois discípulos de Emaús também tinham contado como o Ressuscitado havia se manifestado na estrada “com outra aparência” (cf. Mc 16,12-13), “mas não acreditaram (epísteusan) nem mesmo neles” (v. 13).

Por isso, quando Jesus finalmente “apareceu aos Onze discípulos enquanto estavam comendo e os repreendeu por causa da falta de fé (apistía) e pela dureza de coração (sklerokardía), porque não tinham acreditado (epísteusan) naqueles que o tinham visto ressuscitado” (Mc 16,14).

 

Ascensão do Senhor (Foto: Vatican Media)

 

Essa é a verdade que deve ser dita e foi dita na Igreja (este texto é a prova disso) quando o triunfalismo e a adulação das autoridades ainda não eram dominantes. Os Onze foram tomados pela dúvida profunda, foram incrédulos após a morte de Jesus, assim como tinham sido durante o seu seguimento, quando ele havia sido obrigado a se voltar para a sua comunidade, dizendo: “Vocês ainda não entendem e nem compreendem? Estão com o coração endurecido? Vocês têm olhos e não veem, têm ouvidos e não ouvem?” (Mc 8,17-18).

Os Onze, na verdade, ainda estão na situação de incredulidade que Jesus havia repreendido aos seus opositores, escribas e fariseus (cf. Mc 10,5), e aos habitantes do seu vilarejo de Nazaré (cf. Mc 6,6). Uma situação, portanto, desesperadora, a das futuras testemunhas, assaltadas pela incredulidade! Como poderão anunciar a boa notícia, se nem elas acreditam?

Nesse encerramento – preste-se atenção – depois das repreensões, Jesus não mostra sinais para levar seus discípulos a acreditar, como a perfuração das mãos e dos pés (cf. Lc 24,39-40) ou a do lado (cf. Jo 20,20.27), mas, apesar da persistência dessa pouca fé, ele envia justamente eles para uma missão sem fronteiras, verdadeiramente universal. Uma missão cósmica, se poderia até dizer: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura”.

Aonde quer que irão, em todas as terras e em todas as culturas, os discípulos de Jesus devem anunciar a boa notícia, proclamar o Evangelho a toda a criação. Desse modo, Jesus certamente indica a orientação universal da pregação, mas também esclarece que a boa notícia diz respeito a toda criatura, animada e inanimada, portanto também aos animais, aos anjos e aos demônios. Não há mais as barreiras do povo eleito de Israel, não há mais as fronteiras da terra santa: diante daqueles pobres discípulos titubeantes, está toda a criação e toda criatura!

O Evangelho não pode ser contido nem em um povo, nem em uma cultura, nem mesmo em um modo religioso de viver fé no Deus único e verdadeiro: os enviados devem deixar para trás terra, família, vínculos e cultura, para olhar para novas terras, novas culturas, nas quais o simples Evangelho poderá ser semeado e dar frutos abundantes.

 

Bianchi destaca: “os enviados devem deixar para trás terra, família, vínculos e cultura, para olhar para novas terras, novas culturas, nas quais o simples Evangelho poderá ser semeado e dar frutos abundantes”  (Foto: Carlos Daniel | Cathopic)

 

O que se pede é uma obra de despojamento bem mais difícil do que a dos simples meios econômicos: trata-se, de fato, de abandonar as certezas, os apoios intelectuais e culturais, as estruturas religiosas praticadas até aquele momento e de mergulhar entre os povos. Certamente, para fazer isso, é preciso fé no Evangelho, no seu “poder divino” (dýnamis theoû: Rm 1,16), e, por outro lado, também é necessário deixar de pôr a fé na própria elaboração ou nos próprios projetos culturais. Quanto mais despojados vamos, mais o Evangelho é anunciado com franqueza e, como semente não revestida caída na terra, germina imediatamente e mais facilmente.

Quantos erros cometemos na evangelização, confiando nos nossos meios, nas nossas “ideologias” e, paralelamente, desprezando as culturas dos outros, que muitas vezes mortificamos para impor a nossa! E a esterilidade da semente do Evangelho, especialmente na Ásia, onde existiam culturas que podiam concorrer com a nossa, ocidental, é um sinal evidente do erro cometido. O Evangelho caiu na terra como uma semente, mas, sendo uma semente revestida demais, por nossa causa, não pôde apodrecer nem, consequentemente, germinar.

Eis a tarefa dos cristãos: sem febre “proselitista”, sem tentar ganhar fiéis a todo o custo, percorrendo os mares e as terras como os fariseus (cf. Mt 23,15) e onde quer que se encontrem, que os cristãos anunciem o Evangelho acima de tudo com a vida; depois, se Deus o conceder, com as palavras. São palavras de Francisco de Assis, retomadas pelo Papa Francisco...

Jesus não pede para convencer nem para impor, mas para viver o Evangelho com alegria, porque esse é o testemunho. Hoje, há muitos cristãos que passam de palco em palco “para dar testemunho”, acabando por contar a própria história ou o sucesso da sua comunidade. Devemos apenas corar ao chamar esse comportamento de “testemunho”!

Melhor aqueles cristãos cotidianos, às vezes duvidosos, como os Onze, que simples e humildemente tentam, a cada dia, ser cristãos onde se encontram, vivendo o Evangelho e amando a Jesus Cristo acima de tudo e de todos. É desses cristãos e cristãs que precisamos, de discípulos e discípulas, não de militantes!

Certamente, diante do anúncio do Evangelho, pode-se “crer” ou “não crer”, aderir ao Senhor Jesus ou rejeitá-lo: para nós, o mistério é grande e não somos capazes de lê-lo completamente... Jesus diz: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado”, mas somente ele, o Senhor, pode ver e julgar quem crê e quem não crê; nós, ao invés disso, não podemos nem nos apropriar do seu juízo nem participar dele.

De fato, crer em Jesus, aderir a ele é uma resposta que só pode ser dada pelo coração inescrutável de cada pessoa. Nós devemos aceitar permanecer no limiar do encontro entre o Senhor e o outro, sabendo que o anúncio do Evangelho opera um juízo e pede conversão e fé em Jesus. Continua sendo verdade que o compromisso da fé, sancionado na imersão da morte de Cristo para ressurgir com ele (cf. Rm 6,1-6), torna os cristãos partícipes das energias da ressurreição, habilitando-os a realizar aqueles sinais que o próprio Jesus operava na sua vida: “sinais” (semeîa), que, em nome de Jesus, significarão o recuo do demônio e das potências do mal, significarão possibilidades de comunicação entre povos e línguas diferentes, significarão saúde e vida plena para os doentes.

Depois desse mandato aos Onze, “o Senhor Jesus foi levado ao céu e sentou-se à direita de Deus”. Essa é a conclusão do Evangelho segundo Marcos: como Elias, o profeta escatológico (cf. 2Re 2,9-18), e como os homens justos e santos que caminharam com Deus (cf. Gn 5,24), Jesus foi elevado pelo poder de Deus ao céu, ao lado dele, e se sentou à sua direita como Messias e Senhor profetizado por Davi no Salmo 110.

Jesus ressuscitado está vivo para sempre em Deus; é o Filho que reina com Deus, partícipe do seu poder e da sua glória, porque é vencedor da morte; é o Senhor do cosmos, proclamado como tal por toda criatura à qual foi anunciado; é o Juiz que virá no fim dos tempos.

Os discípulos, não mais incrédulos, mas sempre homens e mulheres frágeis e tentados pela incredulidade, desde então, vão pelo mundo para pregar em todos os lugares, conscientes de que todas as terras podem acolher o Evangelho e podem ser para eles terra de missão: eles não estão sozinhos, mas o Senhor ressuscitado está com eles, age com eles e confirma a palavra do Evangelho com sinais capazes de indicar a sua autoridade e verdade.

Entre a ascensão e a parusia final, porém, o Senhor Jesus não está ausente, mas está presente mais do que nunca, como sujeito da missão da Igreja entre os povos. Cabe à Igreja crer e ser sempre evangelizada: então, ela será capaz de evangelizar eficazmente, mostrando com sinais e palavras que Jesus age nela e com ela, oferecendo a salvação a toda a humanidade.

 

 

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