Patentes preservadas, vidas perdidas. Vacinas da covid-19 reforçam a lógica do mercado sobre o bem comum

Edição: IHU

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 06 Março 2021

A pandemia de covid-19 pôs em xeque as formas de organização social e política e mostrou-se um desafio para a ciência. Para alguns pensadores, seria a possibilidade de mudança de paradigma e construção de novos sistemas políticos e econômicos, calcados na solidariedade, no bem comum e cuidado com o meio ambiente. O surgimento das vacinas poderia marcar essa transformação, não apenas com o fim da pandemia, mas encerrando também as lógicas de mercado sobre os suprimentos básicos e essenciais para a sobrevivência das pessoas. Segundo a ONU, no final de fevereiro, 75% das doses produzidas no mundo estavam em posse de 10 países, enquanto 130 países não receberam nenhuma dose. Em 05 de março de 2021, quase quatro meses depois de lançada a primeira vacina contra a covid-19, pouco mais de 2% da população teve acesso a algum imunizante.

 


Porcentagem do total da população que recebeu todas as doses prescritas pelo protocolo de vacinação.

 

Logo no início da pandemia em fevereiro de 2020, muitos temiam que a desigualdade socioeconômica causasse um impacto profundo na mortalidade da covid-19. O entendimento de que o vírus não seria o mesmo para todos manifestava-se tanto nas possibilidades de tratamentos quanto na possibilidade de manter o distanciamento. A descoberta das vacinas preconizou uma esperança, mas novamente apenas para alguns. Assim como o contágio e o tratamento dos sintomas são impactados pelas condições sociais, a imunização tem se mostrado igual.


Média de mortes causada pela covid-19 nos últimos sete dias. Em 05 de março de 2021, apenas Brasil e Estados Unidos ultrapassavam a média de mil mortes.

O risco das desigualdades se manifestarem em todas as esferas do combate à pandemia já era alertado desde o início da pandemia por entidades como a Redbioética da UNESCO e a ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Redbioética expressou em nota de 16 de março de 2020 que “sua preocupação sobre os critérios que podem ser adotados quando os recursos não forem suficientes e reivindica que estes estejam regidos por padrões éticos, por médicos e cientistas em todos os casos, evitando toda forma de discriminação ou seleção que limite o acesso de alguns indivíduos em favor de outros”.

Em manifesto de 30 de março de 2020, a ONG Médicos Sem Fronteiras escreveu “solicitamos aos governos que se preparem para suspender ou anular as patentes de ferramentas médicas contra a covid-19, mediante a emissão de licenças obrigatórias. Eliminar as patentes e outras barreiras é fundamental para ajudar a garantir que existam provedores suficientes que vendam as ferramentas contra a covid-19 a preços que todos possam pagar”.

O médico Márcio da Fonseca, assessor da Campanha de Acesso aos Medicamentos, afirmou “Nos países onde as corporações farmacêuticas obrigam o cumprimento das patentes, animamos os governos a colocar em curso os mecanismos para anular estes monopólios, para que possam garantir o fornecimento de medicamentos acessíveis e salvar mais vidas”.

Nos meses seguintes a pandemia de covid-19 assumiria um crescimento exponencial no número de infectados e de mortos. As deficiências dos sistemas de saúde em relação a leitos, estrutura e profissionais e a inexistência de remédios contra o vírus acentuaram-se onde as políticas e comportamentos favoreceram a expansão do contágio. A produção das vacinas parecia uma incerteza, alguns cientistas temiam até mesmo que fosse impossível desenvolver uma vacina contra o coronavírus.

O desafio de desenvolver uma vacina em tempo recorde contra um vírus ainda desconhecido assumiu a mesma forma de disputa de outras mercadorias no sistema internacional. As maiores farmacêuticas do mundo, com o apoio dos Estados mais ricos do mundo, entraram uma disputa especulativa no mercado financeiro – como relatam Silvia Ribeiro, neste artigo, e Mathieu Montalban, economista francês, nesta entrevista à revista Alternatives Économiques, ambos publicados em português pelo IHU – e uma disputa entre os Estados mais poderosos, conformando um “nacionalismo das vacinas” – como denominou Francesco Guerrera, diretor do Barron's Group na Europa.

 

O desafio da ciência

 

Desde março de 2020 as indústrias de medicamentos iniciaram as pesquisas aceleradamente para desenvolver fármacos para combater o vírus ou criar imunidade ao vírus. A startup Moderna, dos EUA, pagava até 1.100 dólares para quem se voluntariasse para fazer parte dos testes.

Adiantado há alguns anos sobre a possibilidade de uma pandemia atingir o mundo, Bill Gates já financiava pesquisas em biotecnologia para dar respostas a um possível novo patógeno. Em entrevista ao The Daily Show, apresentado por Trevor Noah, e exibido em 01-04-2020 nos EUA, ele afirmou que a Fundação Gates teria mais dinheiro que Estados para financiar o desenvolvimento de um imunizante. O investimento do “bilionário filantropo” o fez ter respaldo dentro da OMS, tal qual um chefe de estado. De fato, embora Gates não tenha sua própria vacina, sua fundação junto com a OMS estará distribuindo 2 bilhões de vacinas aos países pobres por meio do mecanismo COVAX – mas ainda sem uma data confirmada para iniciar.

Outra importante companhia farmacêutica que procurou inovar na produção das vacinas foi a Janssen – da multinacional Johnson & Johnson. Esta vacina foi a última aprovada nos Estados Unidos e tem como principal vantagem ser de dose única. No entanto, criou-se uma polêmica em torno dos métodos e materiais utilizados.

Alguns bispos e líderes da Igreja Católica nos EUA manifestaram preocupações com o fato de a vacina utilizar linhagens celulares derivadas de fetos abortados na sua produção e na testagem. A Arquidiocese de Nova Orleans chegou a recomendar aos fiéis para que utilizassem alguma outra vacina menos moralmente comprometida – apesar de nenhum lugar do mundo permitir as pessoas de “escolherem” com qual vacina querem se imunizar.

O Vaticano, por meio da Congregação para a Doutrina da Fé, já havia publicado um comunicado em janeiro afirmando o contrário, que era “moralmente aceitável” se vacinar com vacinas que tenham alguma conexão remota com o aborto, pois a razão principal da vacinação é o “bem comum”.

A grande novidade de algumas das vacinas da covid-19 foi a abordagem mRNA, por meio do paradigma “Nature Co-design”, segundo a definição do periódico Business Insider, esse método “atua sobre os processos naturais para produzir diretamente as matérias-primas de que a indústria necessita, ao invés de extraí-las do meio ambiente”. Esse é um novo paradigma industrial que poderá ser usado em diferentes pesquisas, mas principalmente de vacinas contra outras doenças.

Contra a covid-19, as farmacêuticas Pfizer/BioNtech e Moderna utilizaram desse paradigma para a produção das vacinas, e foram as primeiras a serem aprovadas internacionalmente. A abordagem mRNA não tem qualquer impacto sobre o DNA do imunizado – como foi circulado em fake news por todo o mundo –, mas sim insere trechos do RNA do vírus, para que o corpo produza proteínas do vírus e ative seu sistema imune. Isso é, o próprio corpo “aprende” a desenvolver uma resposta imunológica sem a necessidade de contato com o vírus.

A tecnologia “Nature Co-Design” pode criar uma nova produção de plásticos por meio de bactérias e até mesmo carne em laboratórios, como noticiou o Business Insider, na reportagem publicada pelo IHU. Estima-se que possa se ter um impacto de 40% na economia mundial.

Confira o vídeo de Luciana Leite, do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan explicando os diferentes tipos de vacinas.


Confira o vídeo de Luciana Leite, do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan explicando os diferentes tipos de vacinas

 

Para ler mais sobre o desenvolvimento das vacinas confira os links abaixo

 

A geopolítica das vacinas: financeirização e desigualdades

 

Essa disputa entre as diferentes tecnologias gerava no plano de fundo outro efeito: um aquecimento do mercado de ações. A especulação financeira respondia conforme novos anúncios eram dados pelas farmacêuticas, o que é normal a qualquer empresa de capital aberto, mas que uma pandemia, como aponta Silvia Ribeiro, coloca a credibilidade dos anúncios em questão.

Ribeiro enfatiza também que a produção das vacinas depende do investimento público e o lucro torna-se privado, como exemplifica e narra neste parágrafo:

 

O diretor-executivo da Pfizer, Albert Bourla, havia calculado friamente vender grande quantidade de suas ações no dia do anúncio da nova vacina, dia no qual experimentaram um aumento súbito de valor, de 5,6 milhões de dólares. Também a vice-presidente da mesma empresa Sally Susman vendeu ações naquele dia pelo valor de 1,8 milhão de dólares. Além da (permitida) violação de confiança, reflete que ambos estimaram que depois as ações poderiam cair. As ações da Pfizer subiram 7,7% e a das BioNtech 13,9%. As da Moderna subiram 13% uma semana depois”.

 

Esses movimentos não foram apenas entre os acionistas das empresas. A tentativa de lucrar e vencer na corrida do capital era de interesse dos Estados. Donald Trump, em março de 2020, teria tentado atrair cientistas alemães da farmacêutica CureVac para produzirem vacinas com exclusividade para os EUA, segundo o jornal WELT am Sonntag.

Embora não tenha existido uma vacina exclusiva para os EUA, a discrepância na quantidade de doses compradas entre os países ricos e pobres estava posto dois meses antes do início das vacinações. Em setembro de 2020, a Intermón Oxfam já denunciava que mais de 50% das doses comercializadas previamente foram compradas pelos países ricos. A reserva de doses de vacinas tornou-se uma disputa geopolítica, de influência doméstica, mas também no sistema internacional, é relatado nesta reportagem de Raúl Rejón e Analía Plaza no jornal El Diario e publicada em português pelo IHU. No caso chinês estava em jogo um poder maior nos organismos multilaterais, no caso estadunidense, sob o governo Trump, a reeleição e a concretização do seu lema “America First” – como argumenta Nicoletta Dentico, neste artigo.

Na América Latina, por exemplo, escândalos em relação à vacinação explodiram na Argentina e no Peru. Em ambos os países, políticos, clérigos e outras autoridades influentes “furaram a fila” da vacinação.

Há também outras percepções sobre a competição e colaboração no desenvolvimento das vacinas. A pesquisadora Maitê Gauto, da Oxfam Brasil, em evento promovido pelo IHU, aponta que foi preciso um esforço de investimento conjunto para se conseguir criar uma vacina tão rapidamente. Mas ela pontua que a desigualdade se manifestou na distribuição das vacinas: “em um estudo da Oxfam, concluímos que os países pobres conseguiriam vacinar apenas 10% de suas populações em 2021”. “O Canadá tinha doses para vacinar cinco vezes sua população, enquanto o Paquistão [que tinha o mesmo número de casos de covid-19] apenas 10%”, exemplificou.

“Conseguimos um fato extraordinário de desenvolver mais de uma vacina em um ano. Não podemos esquecer que os governos mais ricos do mundo investiram desde o princípio nessas vacinas. Mas é preciso que essas vacinas cheguem para todo mundo, nos diferentes países, de maneira mais rápida. Temos uma demanda mundial, que não pode ficar nas mãos de algumas empresas”, defende Gauto.

 

Para ler mais sobre as disputas geopolíticas em torno das vacinas confira os links abaixo

 

Patentes ou vidas

 

O problema apontado por Gauto levanta a discussão sobre as patentes. Em entrevista ao IHU, a pesquisadora afirmou: “A demanda é que as empresas abram mão da patente e, consequentemente, de que o lucro em relação à vacina seja menor para garantir de fato que todo mundo tenha acesso a ela”.

Esse pedido já havia sido manifestado por diversas fontes. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, em entrevista ao jornal Repubblica, da Itália, e publicada em português pelo IHU, defendeu:

Precisamos projetar um sistema de licenças, controladas e eventualmente financiadas pelos governos, identificando e mobilizando as empresas mais eficazes para ampliar a produção de vacinas, mantendo o nome e a marca. Ou uma suspensão de patente limitada à emergência da Covid, talvez mediante o pagamento de royalties moderados às empresas que arcaram com os custos de pesquisa e desenvolvimento. Os monopólios matam”.

Riccardo Petrella, Roberto Savio e Reinaldo Figueredo escreveram em artigo de junho de 2020, publicado pelo IHU, cobrando a quebra de patentes, dando o exemplo do Brasil, sob a presidência de Lula, no caso do medicamento Efavirenz, de combate à AIDS, que apresentou resultados importantes.

A Redbioética da UNESCO também se manifestou pela quebra das patentes, argumentando que a demora para a vacinação em massa pode, inclusive, criar novas variantes. “É urgente que as patentes farmacêuticas sejam suspensas enquanto durar a pandemia, com o objetivo de garantir que as populações mais vulneráveis sejam vacinadas e de evitar que novas mutações sejam geradas”, afirma a organização.

Índia e África do Sul chegaram a apresentar uma proposta de revogação das patentes na Organização Mundial do Comércio – OMC, entretanto, dado o funcionamento do organismo, o qual aprova petições apenas com unanimidade, não foi adiante devido ao impedimento dos países industrializados – e do Brasil.

Giannino Piana, teólogo italiano, vê duas grandes questões éticas nos processos de vacinação: “a equidade social, como expressão concreta da justiça” e “a relação entre liberdade individual e bem comum em um âmbito de relevância particular, o da saúde pública”. O teólogo explica que “não se pode ignorar a consideração de que estamos hoje, graças ao fenômeno da globalização, em uma situação de estrita interdependência em nível mundial, e de que isso nos obriga a exercer uma forma de responsabilidade alargada e a avaliar os nossos comportamentos com base nas consequências positivas e/ou negativas que se refletem em toda a família humana”.

 

Para ler mais sobre o problema das patentes confira os links abaixo

 

Apelo pela Vacina como bem comum

 

A vacina como bem comum torna-se um apelo das principais lideranças progressistas. O Papa Francisco bradou diversas vezes no ano passado: “Vacina para todos”.

Em uma audiência geral, em agosto, ele afirmou: “Seria triste se essa vacina contra a covid-19 fosse dada a prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não universal para todos. E que escândalo seria se toda a assistência econômica que estamos a observar – a maior parte dela com dinheiro público – se concentrasse no resgate das indústrias que não contribuem para a inclusão dos excluídos”.

Em dezembro, na mensagem Urbi et Orbi de Natal, com a vacinação já acontecendo nos países desenvolvidos, cobrou novamente:

“Não podemos deixar que nos vença o vírus do individualismo radical, tornando-nos indiferentes ao sofrimento doutros irmãos e irmãs. Não posso passar à frente dos outros, colocando as leis do mercado e das patentes de invenção acima das leis do amor e da saúde da humanidade. Peço a todos, nomeadamente aos líderes dos Estados, às empresas, aos organismos internacionais, que promovam a cooperação, e não a concorrência, na busca duma solução para todos: vacinas para todos, especialmente para os mais vulneráveis e necessitados em todas as regiões da Terra. Em primeiro lugar, os mais vulneráveis e necessitados!”.

O apelo também foi feito por Mauro Magatti, sociólogo e economista italiano em artigo publicado por Corriere della Sera, e em português pelo IHU. Magatti cobra um posicionamento ético, sanitário e político da União Europeia para transformar as vacinas em bem comum. “Diante de uma calamidade que assola todo o planeta, a vacina deve ser pensada como um ‘bem comum global’. Existem várias razões para ir nessa direção. A primeira é ética. A segunda ordem de razões é de natureza médica. O tempo é uma variável crucial na luta contra o vírus. Finalmente, as razões políticas”, escreveu o italiano. Para ele, o momento é também uma oportunidade de “garantir que a pandemia de covid-19 seja um catalisador para uma mudança sistêmica na gestão das crises globais. A capacidade de responder com eficácia a situações de emergência deve ser vista como um investimento coletivo na segurança e no bem-estar comuns”.

O jornalista Raniero La Valle vai além, compara as vacinas como as riquezas naturais: “A vacina deve ser para todos: mas só pode sê-lo como um bem comum, como o ar, a água, o sol, não uma mercadoria que produziria riquezas ilimitadas para poucos e deixaria de fora milhões de recenseados em toda a Terra”.

O jornalista católico Alberto Bobbio percebe que as iniciativas como a COVAX não expressam o bem comum, mas uma ‘esmola humilhante’. “Aqueles que prometem vacinas gratuitas na ausência de uma autoridade de controle supranacional costumam fazer o jogo do gato e da raposa contra o pobre Pinóquio. Um Ente internacional havia sido proposto por Bergoglio no Natal, pois a OMS estava com problemas a esse respeito mas ninguém, absolutamente ninguém, aceitou a sugestão, nem mesmo para criticá-lo. Sinal de que atingiu o ponto mais delicado. Isso não significa que os pobres não terão a vacina nos próximos meses. Significa apenas que a terão por esmola, caridade que humilha, e não pela solidariedade dos cuidados entre iguais”.

A vacinação segue lentamente pelo mundo. As expectativas de novas relações sociais, econômicas e políticas não aparecem à vista. Mas sim, uma nova indústria, com novas tecnologias e maiores poderes ganhando força.

 

Para ler mais sobre as vacinas como bem público confira os links abaixo