Mártires da Argélia: “Beatos do diálogo e da simplicidade”, reconhece postulador

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07 Dezembro 2018

“Após mais de 20 anos, muitíssima gente, principalmente de religião muçulmana, segue indo em peregrinação às sepulturas dos cristãos assassinados na Argélia. Há quase uma forma de devoção, de reconhecimento a estes mártires em meio a um povo martirizado, argelinos com argelinos”. São intensas as palavras que o trapista padre Thomas Georgeon, postulador da causa de beatificação dos 19 religiosos assassinados entre 1994 e 1996, durante a violenta guerra civil argelina que provocou mais de 200.000 mortos, pronuncia para descrever o significado de uma presença amigável, que nem sequer seu terrível fim pôde interromper. No próximo sábado, 8 de dezembro, os 19 mártires, que pertenciam a famílias religiosas, serão proclamados beatos no Santuário de Nossa Senhora de Santa Cruz, em Orã, Argélia.

“Eu acredito que é muito significativo que o Papa Francisco tenha desejado fazer referência à história dos monges de Tibhirine na exortação apostólica Gaudete et exsultate sobre a santidade. Destacou que foi um caminho comunitário, no qual para discernir se juntavam para escutar o espírito, com a finalidade de compreender bem o que o Senhor desejava. Os 19 religiosos viveram esta experiência em um contexto muito particular, o da guerra, mas acredito que é certo para cada um de nós, em nossas decisões. Simplesmente, viviam no meio das pessoas oferecendo o testemunho de que certa foram de fraqueza, de pobreza, pode se transformar em um sinal para o mundo”.

A entrevista é de Luca Attanasio, publicada por Vatican Insider, 04-12-2018. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você pertence à mesma ordem trapista dos sete monges de Tibhirine. Que lugar ocupa esta experiência original dentro da congregação?

No início, não foi uma relação simples, alguns superiores, por exemplo, questionavam-se: “Mas, o que devem estar fazendo nesse lugar tão distante? Que sentido tem estar submergidos em um país completamente muçulmano?”. Mas, eles estavam justamente lá porque essa maneira de viver próximo das pessoas faz com que surja o sentido cristológico, a vida e morte, oração, trabalho na terra para avançar com a empresa que dava emprego a muitos na região. Dividiam os terrenos com pais de família, muçulmanos que moravam próximos de onde viviam. Não estavam em Tibhirine por acaso, cada um deles havia decidido ir para esse mosteiro: alguns atraídos pela pequenez e a pobreza da comunidade, outros porque era um mosteiro submergido em uma terra islâmica e acreditavam que era uma maneira direta para tornar Cristo presente e viver uma convivência e uma fraternidade autênticas. Acreditavam muito no diálogo inter-religioso, mas muito simples, diálogo na vida cotidiana: são beatos da simplicidade.

Monges trapistas (Foto: Aleteia)

Você, além de ser o postulador, escreveu o volume “Nossa morte não nos pertence”, um texto que conta as vidas dos 19 mártires, membros de oito ordens diferentes. Que tipo de Igreja representavam?

O cardeal Duval, ex-arcebispo de Argel, acreditava muito na amizade com os muçulmanos e após a independência disse claramente: “Devemos nos tornar uma Igreja argelina, uma Igreja principalmente de amizade e depois de serviço ao mais pobre, aos pequenos, às mães e famílias”. O primeiro objetivo era o de estar no meio das pessoas e favorecer o diálogo e o encontro pacífico. O bispo de Orã, Pierre Claverie, assassinado em primeiro de agosto de 1996, por exemplo, era verdadeiramente um homem do diálogo, um homem que buscava fazer com que crescessem todas as pessoas com quem se encontrava. Era um verdadeiro pastor. No dia de seu funeral, recordo que uma mulher muçulmana repetia: “assassinaram nosso Bispo”. Os 19 mártires escolheram compartilhar a vida do povo, não podiam e não queriam ir. Quando vejo o compromisso das autoridades argelinas na preparação da cerimônia de beatificação, acredito que se trata de um claro sinal da maneira como estas mulheres e estes homens são percebidos como parte da história do país.

Neste sentido, é muito importante que no ícone da beatificação apareça, pela primeira vez, um fiel muçulmano, o motorista de dom Claverie...

O caso de Mohamed Bouchiki é altamente simbólico. Podemos dizer que representa o nó central da causa de beatificação, é a chave de leitura, o sangue de um muçulmano misturado com o de um cristão. Pouco tempo antes de ser assassinado, dom Claverie disse a um sacerdote de sua diocese que inclusive por um homem como Mohamed valia a pena permanecer, apesar de conhecer as ameaças e riscos de morte. O próprio Mohamed conhecia o risco que corria oferecendo seus serviços a um cristão estrangeiro, e muito mais a um bispo. Após sua morte, encontrou-se um pequeno caderno com o testamento deste garoto de 22 anos: uma página muito densa que apresenta um eco desconcertante com o testamento de Christian De Chergé, prior da abadia de Tibhirine: “Peço perdão a quem escutou sair de minha boca uma palavra ruim devido a minha jovem idade. Agradeço por tudo o que recebi e, neste dia, quero recordar todo o bem que fiz em minha vida. Que Deus, em sua onipotência, permita que eu me submeta e me ajuste a sua ternura”.

O que aconteceu com o mosteiro de Tibhirine, depois dos sete monges trapistas?

Há dois anos, uma pequena comunidade, Chemin Neuf, composta por quatro membros, prosseguem com a obra do padre Jean Marie Lassausse, que se ocupou extraordinariamente do mosteiro, por mais de 15 anos (de 2001 a 2016). Fez um trabalho verdadeiramente extraordinário, porque o manteve e o converteu em uma casa que vive, não em um museu. Esse pequeno lugar se tornou meta de peregrinação e o mais extraordinário é que 95% dos peregrinos são muçulmanos que ficaram profundamente surpresos com a presença gratuita desses homens de oração. Há muita gente que vai rezar na sepultura dos monges, muitíssimos visitam a sepultura do irmão Luc, que era um médico, porque alguns de seus familiares receberam seus cuidados. Há uma forma de devoção, de reconhecimento. Assim como os outros 12, foram uma só coisa com esse povo martirizado. Se não tivessem sido verificados seu sequestros e assassinatos, o mundo nunca teria ouvido falar sobre Tibhirine: um silêncio que se converteu em palavra para o mundo.

 

Assista ao trailer do filme Homens e Deuses, que retrata o martírio dos monges trapistas:

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