O clamor nicaraguense na música de Carlos Mejía Godoy

Carlos Mejía Godoy na Marcha das Flores, em 30-6. Foto: Sebastián Verde Castillo | Facebook

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 20 Julho 2018

A esperança e a desilusão do povo nicaraguense estão nos versos e nas melodias do cantor Carlos Mejía Godoy. Desde o dia 19 de abril a Nicarágua vive uma onda de massacres. A esperança da Revolução Sandinista de 1979, que ontem completou 39 anos, transformou-se em desilusão das lideranças. Hoje a Frente Sandinista de Libertação Nacional é a própria repressão combatida em outras décadas. Nos últimos três meses o governo de Daniel Ortega ceifou a vida de mais de 350 opositores ao seu modelo dinástico de poder, em sua maioria jovens e adolescentes. Mejía que nas décadas de 1970 e 1980 cantava ao lado de parte dos atuais comandantes, hoje canta orando por seus companheiros, desiludidos, revoltados e ameaçados pela Revolução que se perdeu.

Carlos Mejía era um cantor que animava as lutas do passado e nos últimos anos dedicou-se a um trabalho de inserção em comunidades campesinas. Na história da música centro-americana deixou marcada a Misa Campesina Nicaraguense. Expressão teologicamente sensível à realidade que a Igreja latino-americana fez opção naqueles anos pós-Medellín. Mejía compôs em 1975 uma missa de origem na cultura popular, enfatizando os aspectos dos trabalhadores campesinos. O canto de entrada saúda um Deus à imagem e semelhança do povo que carrega a marca do trabalho no rosto suado.

Vos sos el Dios de los pobres

Vos sos el Dios de los pobres,
el Dios humano y sencillo,
el Dios que suda en el calle;
el Dios de rostro curtido;
por eso es que te hablo yo,
así como habla mi pueblo,
porque sos el Dios obrero,
el Cristo trabajador

A síntese que Mejía musicou entre Deus e o povo trabalhador era a expressão artística de uma Revolução que despertava um novo olhar para a esquerda latino-americana. O continente reprimido pelas diferentes ditaduras teve o olhar voltado ao pequeno país da América Central. A guerra de movimento que as Comunidades Eclesiais de Base protagonizaram junto à Frente Sandinista. A Revolução de 1979 convocou as lideranças populares da Igreja latino-americana para saudar Daniel Ortega e a junta sandinista que assumia o governo no lugar da família Somoza, no poder desde 1934. A Teologia da Libertação era um laço forte das forças revolucionárias e guerrilheiras com as comunidades de trabalhadores urbanos e campesinos organizados.

Missa Guerrillera com Ernesto Cardenal


Carlos Mejía Godoy e Ernesto Cardenal

Ao passo que a direita ganhava respaldo no governo, lideranças revolucionárias como Mejía e Ernesto Cardenal tornaram-se inimigos do atual regime, compondo uma ala dissidente do sandinismo. Ambos os citados temem por suas vidas. Não à toa. Cardenal foi processado e condenado no ano passado. “Sou um perseguido político. Perseguido pelo governo de Daniel Ortega e sua esposa, que são donos de todo o país, inclusive da Justiça, da Polícia e do Exército. Não posso dizer mais, porque esta é uma ditadura”, afirmou ao canal Confidencial.

Mejía, pelo mesmo canal, pronunciou uma carta aberta a Ortega. Ademais de declarar a oposição, fez memória da luta sandinista e das mortes que outrora aconteciam por outras mãos. Denunciou uma retaliação que recebeu de um "vassalo" orteguista intimidando-o para se silenciar. O sangue dos revolucionários que escorria em décadas passadas era derramado da mesma forma que o dos jovens e adolescentes de hoje.

“Sabe o que Daniel? Queria ter você na minha frente para te olhar nos olhos e te dizer o seguinte: Sei que isso é muito cru e expressá-lo põe minha vida em perigo. Eu assumo sem temor, porque tenho guarda-costas mais seguros que os teus lacaios que te cuidam. São: Alvarito Conrado, Manuelito Dormus e essa legião de meninos, adolescentes e jovens que mandastes matar e que cuidam meus passos noite e dia”, enfrenta na carta.

Ao fim, recorda de Camilo Ortega, irmão mais novo de Daniel, morto em 1978 pela Guarda Nacional no Massacre do Los Sabogales, em Masaya, no mesmo bairro de Monimbó que foi atacado e controlado por paramilitares deixando 15 mortos na última segunda-feira, 16-7. A localidade foi inspiração para a música "Vivirás Monimbó", de 1978, homenageando os revolucionários mortos. Em 2018, Mejía compôs uma nova versão, reconhecendo a resistência popular desse bairro indígena contra o regime orteguista.

"Daniel, detenha já esse genocídio. Pelo sangue de teu irmão Camilo, assassinado pelo somozismo em Las Sabogales, pare já esta barbárie. Se aproxima o 23 de julho e a lembrança do Sangue Santo, dessa juventude aniquilada em León, tens que te levar a rezar. Em nome desse Deus, com quem tu enche a boca e a alma. Em nome desse Deus, que está vendo este holocausto, deixa de matar. Já Daniel, JÁ", clama Mejía.

Vivirás Monimbó (1978)

Tronaron los atabales
Tremolaron las marimbas
Todos los alcaravanes
Repitieron la consigna
Empuñando la bandera
Rojinegra sandinista,
Camilo Ortega Saavedra
Hacia la aurora marchó

Adelante Monimbó (2018)

Adelante Monimbó,
nadie detendrá jamás esa fuerza incontenible de valor y dignidad.
Adelante Monimbó,
estaré siempre con vos

Han pasado 40 años de aquellos días de gloria,
y se repite la historia


Barricada em Monimbó. Foto: Artículo 66

No início de junho após as mães dos jovens mortos saíram às ruas. Em um ato com milhares de pessoas no centro de Manágua e com Carlos Mejía e Sergio Ramirez à frente, com as imagens dos filhos que foram assassinados, as forças paramilitares de Ortega causaram outras 15 mortes.

Madres de Abril

Viva las madres heroicas
Viva los ventre benditos
Que paieron angelitos
Sedientos de eternidad
Ellos son como luceros
En una noche cerrada
La luz de la libertad

Os jovens mortos na repressão orteguista estão presentes nas novas músicas. A violência de Estado já causou centenas de mortes como o somozismo. O protagonismo de jovens, de suas mães e da Igreja voltam a ser marcas na expressão da cultura popular nicaraguense.

Los Jóvenes de Abril

Un racimo de estudiantes va marchando
por las calles de nuestra Nicaragua
en sus pechos orgullosos va flameando
la bandera azul y blanco.

Aquí... germinaron las flores de Abril
aquí... volvió a brillar el sol
aquí... ya no hay dogmas ni viejas consignas
aquí... solo canta el amor

Oremos

Oremos cada noche oremos cada dia
Oremos todos por los pastores y obispos
Oremos por su santidad Papa Francisco
Que desde Roma reza y clama por la paz

A história da resistência do povo nicaraguense em alguma medida está contada pelas músicas de Mejía. Artista de uma revolução que hoje é o reflexo da desilusão de uma geração e a morte de uma nova. “Ay Nicarágua, Nicaraguita” marcou o sonho de libertação da esquerda latino-americana. A música que era sonho ainda ressoa pela "flor mais linda", embora já esquecida pelos antigos guerrilheiros. “A livre e doce Nicaraguita” está tomada pela violência. O convite do Jesus Cristo da Missa Campesina à comunhão em "um milharal para a colheita de amor" ainda é apenas clamor.

 

Em janeiro, na visita do Papa Francisco ao Peru, Mejía cantou a Missa Campesina pela primeira vez a um pontífice. Em 1989, no pontificado de João Paulo II — que também repreendeu Ernesto Cardenal por sua participação na Frente Sandinista — a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos considerou a celebração inapta para a liturgia. Apesar de ter sido contestada pela Igreja, principalmente pelo arcebispo nicaraguense Miguel Obando no período pós-Revolução, os clamores diante da violência se voltam à esperança de paz.

Canción de Despedida

No hay cosa más bonita que mirar
a un pueblo reunido
que lucha cuando quiere mejorar
porque está decidido.
No hay cosa más bonita que escuchar
en el canto de todos
un solo grito de fraternidad.

No es chiche decir adiós  
cuando la alegría es tanta;  
aquí siento el torozón,
en mitad de la garganta.  
Pero toda esa cavanga
va a ser pronto una sonrisa  
cuando todos regresemos
a la misa campesina

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