Representação do sagrado na arte indica abjuração da fé

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13 Abril 2018

"A obra dos pintores Makoto Fujimura e Claudio Pastro, e do escritor Shusaku Endo, revela uma cultura que suprime a individualidade."

A opinião é de Martim Vasques da Cunha, autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial) e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira' e  pós-doutorando pela FGV-EAESP, em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 08-04-2018.

Segundo ele, "tanto o Cristo Sofredor como o Cristo Imperador são lados distintos desta mesma experiência chamada Encarnação – o encontro do humano com o divino diante do inevitável confronto com a morte. Fujimura, Endo e Pastro mostram que a função do artista é sempre retratar a comunicação inefável com este mistério maior que, entretanto, também incorpora um sofrimento quase impossível de ser articulado – mas que nos faz descobrir uma terrível beleza oriunda dessas obras".

"A partir daí, - conclui - a arte deixa de ser uma busca do belo pelo belo, transformando-se no silêncio semelhante a uma ferida dolorosa. No fim, ela é o anúncio da única vitória que nos resta, apesar de todos os obstáculos ao redor, pronto para preencher esses espaços ocultos e ainda desconhecidos do nosso coração".

Eis o texto.

O escritor francês Leon Bloy dizia que “há espaços no coração do homem que ainda não possuem existência, e o sofrimento neles atua para que possam existir.” Os pintores Makoto Fujimura e Claudio Pastro concordariam com esta afirmação – como fica claro quando lemos tanto o livro mais recente de autoria do primeiro, Silence and Beauty – Hidden Faith Born of Suffering (Silêncio e Beleza – Fé Oculta que Nasce do Sofrimento, IVP Books, 263 págs), como a minuciosa e fundamental pesquisa que Wilma Steagall De Tommaso fez sobre a obra do segundo, O Cristo Pantocrator – da Origem às Igrejas no Brasil, na obra de Claudio Pastro (Ed. Paulus, R$ 115, 295 págs).

Fujimura é um artista sino-americano que se inspirou no romance Silêncio, do escritor japonês Shusaku Endo, para refletir sobre o papel do artista em um mundo destruído por traumas que estão além da nossa compreensão. Segundo ele, nos últimos 70 anos, o Oriente nipônico e o Ocidente dos EUA foram vítimas dos seus respectivos Marcos Zero (“Ground Zero”) – as bombas atômicas de Nagasaki e Hiroshima e o atentado terrorista de 11 de setembro que destruiu as duas torres do World Trade Center.

A partir da escrita de Endo, Fujimura recupera outro Marco Zero da cultura japonesa, situado no século 17, quando o Japão ainda era um regime feudal – no caso, a perseguição sistemática aos cristãos, seja japoneses ou missionários jesuítas e franciscanos, obrigados não apenas a suportar torturas excruciantes (como “o suplício do poço”), mas também a cometerem apostasia, pisando em cima de um ícone com o rosto de Jesus Cristo ou da Virgem Maria – o fumi-e –, e assim continuarem vivos.

Esses eventos ajudaram a criar no Japão o que Fujimura chama de “cultura fumi-e”. Trata-se da supressão de qualquer espécie de iniciativa individual, deixando o sujeito em um ostracismo social, no mínimo, ou desesperado pela própria sobrevivência física, em um país que não consegue superar as diferenças metafísicas entre uma visão de mundo fundamentada na adoração de uma natureza imanentista e uma religião aberta ao transcendente por meio do sacrifício de ninguém menos que o Filho de Deus.

A reação a esta “cultura fumi-e” seria justamente o que Shusaku Endo e outros artistas japoneses fizeram – e aqui os nomes mais célebres são os de Tohaku Hasewaga, Matazo Kayama, Katsushika Hokusai e Sen no Rikyu. Eles foram obrigados a criar uma linguagem cifrada e subliminar para expressarem justamente a iniciativa individual que o Japão sufocava a qualquer custo. Perceberam também que não se tratava apenas de uma perseguição contra uma religião específica, mas sim da destruição da própria natureza humana tal como conhecemos – uma característica marcante de qualquer governo com pretensões totalitárias, independente da época histórica que vivemos.

Fujimura se alia a esta tradição artística. E vai além: ele recupera a obra do romancista japonês para fazer a conexão do Marco Zero da perseguição cristã no Japão do século 17 ao Marco Zero das bombas atômicas e do terrorismo que ainda nos atormenta. Para o artista plástico, Endo faz uma meditação intensa sobre o trauma que se manifesta quando o ser humano conhece (e reconhece) o sagrado – e quais são as principais consequências morais e práticas deste encontro.

Este é o tema principal de Samurai (Tusquets Editores, trad. Mario Vilela, R$ 59,90, 351 págs.), o livro que Endo escreveu como resposta aos sofrimentos descritos em Silencio, e que foi publicado recentemente no Brasil. Aqui, ocorre o inverso da odisseia do padre Sebastião Rodrigues (também adaptada de forma brilhante ao cinema por Martin Scorsese no ano passado): se, em Silêncio, era o Ocidente que mergulhava no coração das trevas do Japão, agora, em Samurai, é o Japão que faz sua peregrinação no centro do poder ocidental, com três samurais (entre eles, o personagem-título verídico, Hasekura Rokuemon) que embarcam numa missão diplomática para intermediar uma negociação comercial entre os senhores feudais japoneses e o reino católico da Espanha.

Como é normal na perspectiva fatalista de Endo, a viagem termina em fracasso – com o adendo de que, durante o percurso desses três emissários, o Japão decide a intensificar a perseguição aos cristãos japoneses. Por uma ironia do destino, Rokuemon e seus companheiros se converteram ao catolicismo para manter o sucesso da missão – e, logo que voltam para casa, percebem que as coisas não são mais como antes. O samurai mergulha no lodo da cultura fumi-e, ao mesmo tempo em que percebe que, apesar da sua conversão não ter sido sincera, ainda assim a imagem do Cristo Sofredor começa a assombrar a sua vida – o que resulta em um impasse trágico.

Makoto Fujimura parte da imagem do Cristo Sofredor, tal como Endo a vê, para mostrar que a arte religiosa dos séculos 19 a 20 deve superar o mero formalismo da estética moderna e retornar às fontes de uma arte sacra, voltada ao transcendente, sem academicismos, e que reafirma o poder do artista em um mundo completamente traumatizado por seus Marcos Zero. Como ele mesmo escreveu em sua introdução às pinturas que acompanham uma versão ilustrada dos Evangelhos (feita para celebrar os 400 anos da publicação da Bíblia na versão do Rei Jaime I, a “King James”), sua obra deve ser entendida como “uma ambiciosa oração dirigida para as gerações futuras”, as quais serão obrigadas a transcender o hedonismo esteticista das artes plásticas e criar algo que supere a jornada das cinzas que sobraram do nosso sofrimento nas últimas décadas.

Mas a figura de Cristo não é apenas marcada pelo sofrimento, como argumentam Fujimura e Endo. No Brasil, o artista Claudio Pastro (1942-2016) mostrou que há um poderoso contraponto que também responde à nossa cultura fumi-e e à nossa época dilacerada por tantos Marcos Zero. No admirável O Cristo Pantocrator, a pesquisadora e professora Wilma Tommaso conta a história secreta do ícone ortodoxo que mostra Jesus não como o Servo Sofredor, e sim como o Imperador do Cosmos, coberto de glória e capaz de mostrar a quem for vê-lo que ele é a única majestade em todo o seu esplendor. Contudo, ela faz mais do que isso: por meio de uma análise exaustiva do trabalho de Pastro, insere o Pantocrator – com suas influências da arte românica, da arte sacra e da iconografia ortodoxa – na sociedade brasileira, elaborando uma ousada conexão do país com o que aconteceu na própria história daquilo que conhecemos como “civilização”.

De acordo com Tommaso, a importância da obra de Claudio Pastro não é apenas a recuperação de um ícone perdido no tempo. É o “retorno às fontes”, segundo as instruções do Concílio Vaticano II, sem perder, contudo, o contato com a modernidade e com o próprio Brasil, absorvendo elementos intrínsecos à nossa cultura, como os traços africanos e a plasticidade rústica, numa síntese que busca o universal e o particular, o sagrado e o profano, sem deixar de fazer uma crítica ao nosso ambiente fumi-e tupiniquim. No centro disso tudo, há a percepção de que o ícone do Pantocrator não é uma mera imagem datada, e sim a manifestação perene (e moderna) da presença de uma pessoa única que se comunica com os fiéis (e os infiéis), exigindo nada mais nada menos que a pura contemplação do seu ser – algo com o qual Makoto Fujimura também concorda em relação ao seu próprio trabalho.

Tanto o Cristo Sofredor como o Cristo Imperador são lados distintos desta mesma experiência chamada Encarnação – o encontro do humano com o divino diante do inevitável confronto com a morte. Fujimura, Endo e Pastro mostram que a função do artista é sempre retratar a comunicação inefável com este mistério maior que, entretanto, também incorpora um sofrimento quase impossível de ser articulado – mas que nos faz descobrir uma terrível beleza oriunda dessas obras. A partir daí, a arte deixa de ser uma busca do belo pelo belo, transformando-se no silêncio semelhante a uma ferida dolorosa. No fim, ela é o anúncio da única vitória que nos resta, apesar de todos os obstáculos ao redor, pronto para preencher esses espaços ocultos e ainda desconhecidos do nosso coração.

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